Theotonio dos Santos e a teoria do fascismo dependente

Por Leonardo Godim.

Surgido no seio da pequena-burguesia e do lumpesinato, o fascismo só se torna um movimento poderoso capaz de assumir o controle do Estado quando é apoiado pelo grande capital. Esse apoio se faz necessário em momentos históricos determinados e via de regra está ligado à necessidade de reprimir o movimento operário, seja pela iminência de um processo revolucionário ou como punição pela sua derrota na tentativa de tomada do poder.


Introdução

Muitas linhas já foram lidas e escritas desde o final de 2018 sobre a questão do fascismo no Brasil. O debate, por sua vez, passa longe de estar esgotado. O desenvolvimento da política do governo de Bolsonaro e as demonstrações de força de sua base fascista ou proto-fascista ergueram novos elementos para análise deste fenômeno no Brasil e dão luz aos possíveis caminhos que a conjuntura política pode traçar. Trago aqui uma singela contribuição.

Existe no Brasil uma tradição marxista tão rica quanto ignorada. Ainda que o esquecimento seja a regra para os intelectuais orgânicos da classe operária brasileira, esta tradição sofre deste verdadeiro mal nacional de forma ainda mais dilacerante. Falo aqui da geração de militantes da Política Operária. Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra, Theotonio dos Santos e Érico Sachs, entre outros que de novo a história – ou a falta dela – nos rouba o conhecimento.

Pois foi no bojo das formulações tão originais quanto brilhantes que este grupo desenvolveu durante a década de 1960 que Theotonio dos Santos formulou sua teoria do fascismo dependente. Foi analisando as mudanças profundas que o capitalismo brasileiro e latino-americano vinha atravessando e as determinações destas mudanças na luta de classes – em consonância com as teses de Ruy Mauro Marini – que Teotônio apontou algo que, por hora, só pude encontrar em sua própria obra: a tendência à fascistização das sociedades latino-americanas e, no mesmo sentido, a iminência do socialismo como horizonte político das classes trabalhadoras. Eis o novo dilema latino-americano.

As economias de nossa América se alteraram muito da época de Teotônio até hoje. O fim das ditaduras latino-americanas e o surgimento do “ciclo progressista” em nossos países, capaz de dotar de relativo consenso uma sociedade tão rasgada pela contradição capital e trabalho quanto o Brasil, parecem refutar as teses de nosso autor. Mas existe algo, se não tudo, que me parece permanecer não só valido, como esclarecedor.

Theotonio, arrisco dizer, nos dá uma sólida base de sustentação para afirmar que o bolsonarismo não é um “raio vindo de um céu sem nuvens”. Vejamos.

Atual debate sobre o fascismo no Brasil

Um verdadeiro mal se infiltra no debate sobre a questão do fascismo no Brasil e o apodrece antes mesmo que este nos dê qualquer resposta. É o mal do pragmatismo. Já não é a teoria que nos ilumina o caminho e sustenta as teses sobre qual política deve defender a classe operária. Opera-se o inverso. A teoria vem depois da formulação política e a justifica, adequando-se a ela. Eis nossa miséria.

Um pragmatismo de direita

De um lado, o liberalismo de esquerda torna o fascismo um jargão preguiçoso e insolente contra tudo que não lhe agrade. No plano de fundo desta vulgarização, existe uma concepção de mundo que separa a política entre democratas versus fascistas. Caracterizando toda política coercitiva da burguesia como fascismo, ignora-se que não existe poder da burguesia sem a violência física. Já não se trata – para eles – de uma luta dos trabalhadores contra o Estado burguês, e sim de uma luta dos democratas contra os fascistas. Não existe, para estes, tal coisa como Estado burguês. Nada mais cômodo ao oportunismo.

É esse abandono de um horizonte estratégico de ruptura contra o capitalismo que constitui o fundamento deste uso arbitrário do termo fascismo. Sua perspectiva pequeno-burguesa da luta de classes não vê na luta antifascista mais do que bandeiras democráticas que pouco ou nada penetram no seio da classe operária. Os partidos oportunistas usam então do medo ao fascismo como último recurso para agregar simpatizantes nos seus momentos de decadência. Assustam o pequeno-burguês pacifista e moderado gritando que chegamos ao fascismo para atraí-lo ao seu lado.

Este senso comum agradável até demais para os partidos oportunistas tem como resultado sufocar a política independente e revolucionária da classe operária em nome do “mal menor”. Os oportunistas veem na próxima esquina, depois do fascismo, sua política de colaboração de classes – hoje falida, desmoralizada e ridicularizada – reinaugurada. E nessa ilusão infantil de retornar a um passado que não encontra mais apoiadores nem entre os trabalhadores nem entre a burguesia, fazem o trabalho sujo dos partidos da ordem. Enganam a classe trabalhadora para entrega-la desarmada aos projetos dos partidos democratas burgueses.

Acusam as críticas ao oportunismo de “fazer o jogo da direita” ao mesmo tempo em que se aliam com a burguesia “democrática” e “liberal” para opor o fascismo. Não almejam, nunca, a unidade real dos trabalhadores. Almejam sempre a submissão dos partidos revolucionários à política reformista. São eles os verdadeiros sectários. Seu jargão é: “calem-se, operários revolucionários. O fascismo está aí e contra ele, somos o melhor remédio”. Pois bem. Não são.

À esquerda, o dogmatismo

Nosso problema seria menor se contra esta vertente do debate, se apresentasse o marxismo revolucionário na sua vitalidade e rigorosidade. Não é esta, todavia, a nossa realidade.

Ao pragmatismo de direita, vários camaradas respondem com pragmatismo de esquerda. Em um dogmatismo infértil, querem refutar os liberais de esquerda dizendo que não existe de nenhuma forma fascismo no Brasil, nem nunca existiu e nem nunca existirá. Em malabarismos teóricos, fazem de tudo para justificar seus pontos de vista porque, de fundo, tem absoluto medo de encarar de frente o debate sobre como conduzir a luta antifascista.

Seu argumento principal é o de que a caracterização do fascismo é um mero recurso teórico para justificar a submissão da política revolucionária à política reformista. Neste argumento, salta aos olhos algo inadmissível: estes camaradas estão afirmando que caso houvesse de fato uma ameaça fascista, a política reformista de luta antifascista seria a política necessária!

Ao mesmo tempo que sabem que a submissão dos revolucionários aos reformistas levaria a um atraso enorme em nosso trabalho de massas, não são capazes de ver outra saída à questão do fascismo e solucionam seu impasse enfiando a cabeça na terra: pronto, não há fascismo e a questão está resolvida. Como é brilhante o partido dos avestruzes.

A estes camaradas, é urgente que alguém lhes conte que existe uma política antifascista revolucionária. É urgente que alguém lhes conte que a realidade, diferente dos avestruzes, não enfia sua cabeça na terra e cobra de todos o preço da ignorância. Ainda que hoje a conformação de um Estado fascista seja apenas uma possibilidade histórica – e Bolsonaro, um verdadeiro fascista, não tenha todos os poderes em sua mão –, não nos preparar para ela é um caminho muito mais certo à derrota do que a alternativa oportunista.

O novo caráter da dependência e o dilema latino-americano

Em 1969, exilado no Chile, Theotonio dos Santos publica sua primeira grande obra. Reunindo dois livros escritos anteriormente de forma separadas e fazendo várias modificações, Socialismo o Fascismo: El nuevo caráter de la Dependência y el Dilema Latinoamericano sintetiza uma série de análises e reflexões que Theotonio formulara em sua trajetória política em torno de um eixo fundamental: a América Latina, tendo por modelo de análise o Brasil, passou após a Segunda Guerra Mundial por um profunda mudança em seu padrão de acumulação e a esta mudança corresponde num novo patamar da luta de classes e das lutas revolucionárias do povo latino-americano.

A integração capitalista mundial operada pelos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial mudou o futuro dos países latino-americanos. A começar pelo Brasil, Argentina e México, esses países passaram de economias agrário-exportadoras, rurais e camponesas para países predominantemente urbanos, com uma indústria manufatureira forte e um proletariado industrial cada vez mais numeroso. A inserção da grande empresa estrangeira em nossas economias, que no Brasil tem como marco o ano de 1955, alterou não só a composição do bloco da classe dominante, mas de toda luta de classes.

Em uma nova composição da economia brasileira, onde a grande empresa estrangeira ocupou os setores mais modernos e dinâmicos e passou a influir diretamente na política nacional, os antigos arranjos de classe não eram mais possíveis. As oligarquias tradicionais perdem posições na hierarquia de classes e burguesia brasileira se vê ante um impasse: seu antigo arranjo nacionalista apoiado na nascente classe operária e na pequena-burguesia urbana não é mais possível sem romper não só com o imperialismo que atua agora diretamente em nossa economia mas também sem colapsar em conjunto o modelo capitalista. O populismo morreu.

Seus herdeiros, porém, não. É justamente por essa mudança qualitativa no bloco das classes dominantes, descartando qualquer possibilidade de uma política de colaboração de classes, que transforma radicalmente o movimento operário e o movimento nacionalista. Órfão das classes dominantes que até então o sustentavam, o nacionalismo se tornará na mão da pequena-burguesia urbana e da crescente classe operária uma arma de combate ao imperialismo sem outro horizonte a almejar que não o socialismo. O abandono (e a verdadeira inviabilidade histórica) de um projeto de desenvolvimento capitalista autônomo, fruto das próprias transformações do modo de produção capitalista em todo mundo, imprime à luta dos trabalhadores um radicalismo cuja grande expressão é Cuba e seu caminho ao socialismo.

A luta anti-imperialista ganha um fôlego com a inserção direta das grandes empresas em nosso solo, une-se as reivindicações operárias por salário, à luta dos camponeses por terra e aponta ao socialismo como resposta à dependência. A radicalização da política na América Latina não é uma opção, é uma inevitabilidade histórica.

A resposta das classes dominantes frente a este rasgo intransponível é a política de força. Um a um, os países latino-americanos caem em sombrias ditaduras militares que estancam a sangria do abismo entre as classes dominantes e dominadas. Aniquilam as lutas dos trabalhadores e impõem o arrocho salarial que, como prova Ruy Mauro Marini em seu livro Subdesenvolvimento e revolução, é tão indispensável à burguesia brasileira e à grande empresa estrangeira. Tentam, a partir do estancamento, uma modernização que alivie as tensões deste continente cujo povo se torna uma centelha prestes a explodir revoluções.

Theotonio previu a inviabilidade de que tais modernizações alterassem o quadro no qual a política de força é a única capaz de conter esta radicalização política. Não há aqui tempo nem preparo da minha parte para concordar ou discordar de sua tese. Apresento aqui, sua conclusão em torno do fascismo.

Para Theotonio, ainda que o conflito fundamental da sociedade brasileira até 1964 não tenha se dado ideologicamente em uma disputa entre socialismo e fascismo, o governo militar instaurado a partir do golpe inaugurava a ideologia fascista em nosso país. Analisando diversos casos de outros países da América Latina e remontando as origens do fascismo na Europa, Theotonio conclui aspectos fundamentais da questão.

Primeiramente, a diferença do fascismo como movimento político e como conformação de Estados fascistas. “[…] Podemos admitir a existência de um Estado fascista que não tenha sido criado por um movimento fascista, mas por uma ocupação ou um golpe militar, tal como ocorreu na Europa entre 1939 e 1945. Por outro lado, podemos admitir a chegada ao poder de um movimento fascista de forma subordinada, que não consegue instaurar um Estado fascista, mas somente formas parciais desse Estado.”

Surgido no seio da pequena-burguesia e do lumpesinato, o fascismo só se torna um movimento poderoso capaz de assumir o controle do Estado quando é apoiado pelo grande capital. Esse apoio se faz necessário em momentos históricos determinados e via de regra está ligado à necessidade de reprimir o movimento operário, seja pela iminência de um processo revolucionário ou como punição pela sua derrota na tentativa de tomada do poder.

O grande capital, em nosso caso, é a burguesia brasileira e a grande empresa estrangeira. De tal forma que seria estranho cobrar do fascismo dependente um nacionalismo que ultrapasse os limites dos próprios interesses do grande capital que coordena e captura para si o movimento fascista. O fascismo real, no poder, não pode ser idêntico às ambições mais idealistas da pequena-burguesia que muitas vezes dá seu impulso inicial. Ele está preso às determinações do padrão de acumulação capitalista de seu período, aos interesses das classes dominantes que o sustentam e aos limites da própria luta de classes sobre a qual ele se ergue.

Theotonio conclui elementos que buscam explicar fundamentalmente o fenômeno das ditaduras militares. Seu momento histórico era o da conformação do que ele chamou de Estados fascistas pelos golpes militares em nosso continente, de forma que o que caracterizava aquele período eram movimentos fascistas fracos, que cumpriam exclusivamente o papel de desestabilizar os governos locais até o momento do golpe militar. A partir dali, opera-se um grau de autonomia do Estado fascista em relação ao movimento fascista, que via de regra passa a ocupar apenas marginalmente os governos militares.

Tais reflexões levam a uma análise da luta antifascista no continente. Observando o caráter universal da implementação de regimes de força nos diferentes países, Theotonio aponta que a luta antifascista se tornará ampla e se aliará irremediavelmente com a luta anti-imperialista.

Cada vez menos o grande capital pode conviver com as liberdades democráticas nos países dependentes latino-americanos, tornando o fascismo seu instrumento necessário. Assim, a luta pelas liberdades democráticas se torna, cada vez mais, uma luta de horizonte socialista, se levada até as últimas consequências.

Ainda assim, a mera derrubada das ditaduras militares não pode ser o único objetivo das frentes antifascistas. A única forma de tornar a luta antifascista uma luta de massas é dando consciência ao conjunto dos trabalhadores que a derrota definitiva do fascismo só é possível com o socialismo.

A hegemonia sobre o movimento antifascista definirá os termos da ruptura. A burguesia e a pequena-burguesia buscam a hegemonia sobre o movimento antifascista justamente como salvaguarda a seus interesses caso os regimes fascistas caiam em ruínas. Esta se torna, então, a questão fundamental. A via democrático-burguesa ou a via revolucionária para a luta antifascista.

“A única garantia de vitória contra o fascismo e de abertura de condições para uma ofensiva revolucionária das massas é a independência política organizativa do proletariado, sua consciência socialista e, principalmente, como resultado e parte desse processo, a ação firme e decidida do movimento popular e de seus partidos de vanguarda para agrupar em torno de si todas as forças atingidas pelo fascismo.”

Considerações finais

As reflexões de Theotonio dos Santos sobre a particularidade do fascismo nos países de capitalismo dependente, o fascismo dependente, podem abrir o caminho para uma compreensão mais precisa do atual momento político brasileiro. Além disso, sua diferenciação entre Estado fascista e movimento fascista pode ser indispensável para compreensão do que é de fato o governo Bolsonaro. Com estes dois elementos teóricos, podemos dar embasamento para duas conclusões polêmicas no debate sobre o fascismo no Brasil.

Primeiro, podemos afirmar com segurança que recusar a tese do fascismo no Brasil por este não se portar da mesma forma que o fascismo italiano ou alemão em relação ao nacionalismo é ignorar os fundamentos do capitalismo brasileiro. É preciso superar as análises ideológicas do fascismo e penetrar nas suas determinações. O fascismo brasileiro só pode ser um fascismo dependente, um fascismo onde a burguesia brasileira aceita seu papel submisso em relação ao imperialismo. O fascismo dependente é a ditadura aberta do grande capital em um país de capitalismo dependente, logo, jamais poderá representar algo que rompa com este mesmo capitalismo.

Segundo, podemos responder aos camaradas que afirmam que o Brasil não pode ser considerado um Estado fascista hoje dizendo: sim, vocês estão corretos. Todavia, um movimento fascista com uma base social ainda difusa, mas em processo de amadurecimento político, venceu as eleições de 2018. E esse movimento fascista não será retirado do poder sem resistência. Tolerado por frações da burguesia, herói de outras, Bolsonaro segue no poder e forma seu próprio partido. Se ele conseguirá dar continuidade à explosão de popularidade que recebeu em 2018 ou se morrerá na política brasileira como farsante, somente o futuro poderá nos dizer.

Alerto, por último, que as conclusões sobre o caráter fascista do movimento político que hoje se fortalece no Brasil não devem nos amedrontar mais do que nos incitar à luta. A análise concreta é a única capaz de oferecer uma prática revolucionária. Se esta análise nos faz concluir que virão pela frente anos difíceis, é nossa tarefa preparar-nos para anos difíceis com firmeza. A ilusão e fantasia jamais estarão de nosso lado.

 

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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