Por Bruno Lima Rocha.
As denúncias de trabalho análogo à escravidão ocorridos em Bento Gonçalves, serra gaúcha (em região de maioria italiana), têm um modus operandi: se dão através de contratos terceirizados para colheita do vinho e apanha de aves (mas também na derrubada de árvores para acácia negra e colheita da maçã), trazendo à tona um problema estruturante. Existe uma hegemonia conservadora (mitômana, racista, xenófoba e com inclinações para a extrema direita) na região sul do Brasil e, especificamente, em municípios pequenos e médios, com população majoritária de origem italiana, alemã, polonesa e ucraniana. Mas, como chegamos a esse ponto? Quais os movimentos do capital tão bem aplicado neste giro à direita? Quais os erros fundamentais da esquerda social brasileira?
Nas décadas de 1970, 1980 e 1990, a ascensão das lutas sociais no campo tinham como sujeito social fundante a família colona. Ou seja, basicamente famílias de pequenos/as agricultores, uma boa parte delas com origens italianas tentando escapar da invialidade do minifúndio camponês diante da revolução verde e do avanço do capitalismo mecanizado e transnacionalizado no setor primário. No início do século XX, a tradição de terras coletivas – de base originária – se mesclava com as colônias de povoamento compostas por imigrantes europeus (acima já citados), dando origem aos faxinais, terras faxinalenses (com maior incidência no estado do Paraná e com presença majoritária de poloneses e ucranianos).
Já as linhas de colonização e suas respectivas Igrejas formavam o sentido comunitário, especialmente em colônias de origem alemã e italiana, incluindo aquelas colocadas para além do Vale do Rio dos Sinos, subindo a Serra do Rio Grande do Sul. Com sabedoria maquiavélica, o Império brasileiro “importou” teutos e depois peninsulares, posteriormente chamados de italianos. A geração de bisnetos e tataranetos dos oriundi está muito distante do imaginário de classe trabalhadora e da presença de luta social coletiva, tão marcada no Brasil desde a prevalência do trabalho liberto (década de 90 do século XIX) até a primeira década do século XXI.
Longe de querer fazer um debate de profundidade, quero constatar o óbvio e lembrar das possibilidades perigosas desta perda de hegemonia na classe trabalhadora de maioria eurodescendente do interior do sul brasileiro. Qualquer semelhança com a mobilização de fascistas se opondo ao resultado eleitoral de outubro de 2022, não é nenhuma coincidência. Quando o empresariado local é hegemonia na pertença cultural de um município, isso garante a maioria – ao menos a maioria mobilizada – com capacidade de promover a adesão “popular” para a direita e a extrema direita.
Mitos importantes e caminhos inadiáveis
Nas raízes da luta popular brasileira após a abolição formal, está presente o anarquismo como forma de organizar o mundo de trabalho e promover a luta de classes às últimas consequências. Assim como vários, cresci escutando um mito histórico equivocado, de que as ideias anarquistas chegaram ao Brasil através de navios imigrantes de maioria italiana. Não é verdade, pois além de alguma experiência de insurreições camponesas após a unificação, a maior parcela da imigração aqui veio pela fome e pela expulsão de lavradores de suas terras. Outra evidência: mais da metade do anarquismo brasileiro de base sindical era afrodescendente, e 80% dos imigrantes italianos (da Itália antes e logo após a unificação) eram analfabetos nas línguas nativas (aqui vieram antes do idioma italiano moderno ser estipulado). Mas, repito: como mito fundador o espírito de “lavoratore oirundi” era muito bom.
Hoje o mito é outro. De que existe uma “raça superior” dedicada ao trabalho e de origem europeia (basicamente do Veneto da Península e de uma região que hoje sendo Alemanha, antes da unificação prussiana era disputada com a França). No início do século XXI, a mídia sulista faturou mundos de dinheiro com a campanha “o Brasil de bombacha“. Esses “gaúchos bombachudos” (“a saga da raça guerreira”) que desbravaram o Oeste brasileiro eram colonos, filhos, netos e bisnetos, a maioria sem terra, que foi beneficiada pela tese de expansão da fronteira agrícola pela ditadura militar.
São tão “gaúchos” (homens sem lei nem rei na etimologia de origem, filhos e filhas bastardas da violação de mulheres guaranis pós Guerra das Missões), quanto os latifundiários brasileiros, croatas e alemães de Santa Cruz de la Sierra (o celeiro boliviano sempre às turras com o altiplano andino aymara e quechua, foco de infecção endêmica de dengue e da extrema direita) são cambas de origem guaranítica. A mitologia “cruceña” gerou as bases de uma quase intervenção militar brasileira, quando do golpe promovido pelo “cruceño” Hugo Banzer (agosto de 1971 a julho de 1978), assim como o financiamento da absurda eleição do ex-ditador na forma de “político modernizante”, também sustentado pelo agronegócio para exportação, do departamento de Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. Qualquer semelhança entre a declaração racista da Câmara de Indústria e Comércio (CIC) de Bento Gonçalves – que tenta justificar os contratos terceirizados sem direitos trabalhistas – com a eleição do Comitê Cívico pró Santa Cruz (manipulada por pequenos grupos de oligarcas) não é coincidência.
Todo o respeito à luta dos cambas cruceños, liderados por heróis e heroínas latino-americanas, como Ignacio Warnes, Ana Barba, Florencia Mendoza (e dezenas de outras), assim como líderes guerrilheiros à altura de José Manuel Mercado e José Manuel Baca (el Cañoto). As forças irregulares e milícias indígenas são as responsáveis, de fato, pela derradeira independência do Alto Peru (Bolívia). Já no século XX, nenhum respeito pelos que manipulam esse sentimento em nome da unidade “cívica” com o latifúndio para exportação. No século XXI, menos respeito ainda pela mobilização da extrema direita – aproveitando os erros do MAS e de Evo Morales – que propiciaram um golpe de Estado protofascista entre novembro de 2019 até as eleições de outubro de 2020. Não por acaso, os mesmos bolsonaristas que fingiam não ver o trabalho análogo à escravidão no Brasil, apoiaram o golpe de Estado na Bolívia.
Esta mesma relação aparece na serra gaúcha. O colonedo que deu ao país a base original da luta pela reforma agrária (e as primeiras bases do MST) vive sob captura econômica e ideológica do empresariado local, em todos os sentidos da vida comum. Eram minoria, consolidaram hegemonia e agora são maioria, o que explica o crescimento da extrema direita na região.
Na base da pirâmide estão as famílias sistemizadas em projetos produtivos integrados no agronegócio voltado para exportação. A lei de terceirizações e a perda de direitos trabalhistas após o golpe com nome de impeachment, ocorrido no Brasil em abril de 2016, são os instrumentos para recrutar trabalhadores de outros estados e países vizinhos. Uma parte do caminho inadiável é revogar a chamada reforma trabalhista (que na verdade nos retira direitos), ampliar a fiscalização dos direitos do trabalho e acabar com as terceirizações ilegais. Na outra parte, desmontar a estrutura mentirosa do “agro é pop, é tech, é tudo” para criar um sistema nacional de abastecimento desvinculando do capitalismo agrícola transnacionalizado, valorizando e promovendo a agricultura familiar e camponesa (com base na agroecologia e autocertificada).
Bruno Lima Rocha é cientista político, jornalista profissional e professor de relações internacionais
Obs: A opinião do autor não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.