Tenho fome. É Verdade. Por Marco Vasques

Foto: Leonardo de França

Por Marco Vasques, para Desacato.info

O Brasil é um país sem sonho. Sim, não há sonho possível num país em que grassam pessoas nas ruas sem condições mínimas de alimentação, higiene e moradia. É verdade que essa não é uma realidade nova e que as desigualdades sociais sempre foram um dilema a ser enfrentado num país de dimensões gigantescas como o nosso. Tais desigualdades, quer os opositores queiram, quer não, foram duramente combatidas no governo do Partido dos Trabalhadores. Quem afirma isso não é este colunista que vos escreve nem sua vontade, mas os números e as políticas públicas destinadas ao combate à fome. Mesmo com muita preguiça, qualquer pesquisa rápida mostrará que instituições de credibilidade, nacionais e internacionais, corroboram isso.

O simples fato de que produzimos, anualmente, alimento suficiente para nutrir o triplo da população existente no mundo deveria revoltar, causar espanto e indignação em qualquer ser racional. Estudos apontam que, hoje, no país, existem mais gados que gente. Somos o maior exportador de frango do mundo. Somos o maior produtor de soja do mundo também. Áreas que antes eram destinadas ao cultivo do arroz estão diminuindo para ampliar, ainda mais, o cultivo de soja. Aliás, soja que vendemos para outros países, que, por sua vez, alimentam seus animais com o grão. Não é racional alimentar animais de outros países e deixar mais de 50 milhões de pessoas na pobreza e outras 13 milhões na extrema pobreza.

Mas no país sem sonho tudo é possível. A dor insuportável de uma família não reverbera nos corações dos gestores eleitos para erradicar as desigualdades e cuidar de nossas vidas. Há outro complicador nisso: a revelação do racismo estrutural, pois 73% dos pobres deste país são pessoas pretas ou pardas. Por isso não há solução fácil. Para se encarar o problema da fome, temos que enfrentar o racismo, a misoginia, defender e estar ao lado dos povos originários, acabar com a homofobia e toda sorte de desigualdade, pois, no fundo, tudo é acentuado, afirmado, marcado e estratificado pela condição econômica.

O Brasil é um país sem sonho. Somos o país que mais mata pessoas da comunidade LGBTQI+. E isso também tem a ver com a condição econômica, já que a esses corpos resta o legado do submundo e dos lugares inseguros. É aterrador saber que 33% de todo alimento produzido no mundo vão para o lixo. Sim, 10% são desperdiçados na colheita, 50%, no transporte, 30%, nas centrais de abastecimento e 10%, entre supermercados e consumidores. Esse é o caminho que leva 33% de todo alimento do mundo para o lixo; contudo, engana-se quem pensa que a coisa não pode ser pior. Sim, pode. Porque no país sem sonho tudo pode piorar.

O sistema econômico também faz com que uma parcela da produção de alimento seja extraviada de propósito. As taxas de câmbio, a variação das bolsas, enfim, este mundo abstrato que não alcançamos também é responsável pela perda de alimento. Grandes agricultores e indústrias enormes preferem queimar, enterrar e até jogar no mar alimentos excedentes para causar impacto no mercado. Sim. No país sem sonhos, jogamos comida fora, mesmo que uma multidão enfrente a mais severa pobreza.

Na semana passada, ao parar no semáforo, um jovem, negro, estava com um cartaz que dizia o seguinte: “tenho fome”. Logo abaixo, em letras maiores, em vermelho, outro escrito: “é verdade”.  A inscrição suplementar revela muito, pois não somos apenas o país do desperdício, do racismo, da misoginia, da homofobia; somos, também, o país dos pulhas, dos larápios, dos abutres e, sobretudo, somos o país da mentira. Por isso, a complementação “é verdade” abaixo da frase “tenho fome” se inscreveu como tiro fulminante no meu coração.

Chorei sem cerimônia. Para minha sorte, tive uma mão para afagar minhas lágrimas e para amparar meus soluços. Tenho vergonha do que nos tornamos. Preferimos bajular e salvar o sistema, a economia, 0 mercado financeiro, os empresários de grande porte a proteger a vida diária, a proteger os homens que vivem catando lixo, a proteger quem busca comida dentro do lixo do lixo, para sustentar seus amados e se manterem vivos em algum sonho perdido no infinito. Chorei também de impotência, de saber que estamos todos sendo empurrados para a falência, para a pobreza, para a morte, para o ódio sem nenhuma cerimônia.

É tão escancarada, tão grosseira e tão estúpida a nossa condição como Nação, que o filho do estrume que nos governa usou como argumento para o não funcionamento da CPI da Pandemia a necessidade de distanciamento social. Essa gente é tosca, cospe em nossa cara. E sabe qual é a grande tristeza? É que o nosso tio aplaude, o nosso primo reverencia, nossos vizinhos festejam o estado funesto para o qual estamos sendo encurralados. E há algo ainda pior? Há!

Esta gente se acha gente da família, de deus e do bem. Renunciamos à vida. Renunciamos ao sonho. Todos sabemos que os milicianos defenderam a abertura irrestrita durante a pandemia, promoveram aglomeração, incentivaram o não uso de máscara, fizeram chacota da doença, não compraram vacina no momento adequado, indicaram remédios ineficazes e de alta periculosidade à população, tripudiaram sobre as vítimas e seus familiares… E a lista não finda! São muitas as desrazões. São tantos os disparates, que esta semana, ouvi um senhor com altíssimo poder aquisitivo defender o coiso e suas ações. E disse, com todas as letras, que “se o meu presidente mandar eu comer merda para salvar minha vida, eu como”. Achei justo: quem votou em merda merece se alimentar de estrume.

Mas o problema é que eles não estão sozinhos no mundo. Nós precisamos respirar o mesmo ar desta gente estúpida e sem espírito. E estamos comendo menos, estamos vivendo menos, estamos com índices de desemprego altíssimos, estamos morrendo aos montes, estamos levando milhares de pessoas rumo à pobreza, estamos rodeados de pessoas com ódio, estamos sendo enterrados mortos e vivos. Por isso somos um país sem sonho. Enquanto houver uma pessoa no mundo passando fome, frio, sede e sem habitação, não há sonho coletivo possível. E o resto? O resto é egoísmo e morte. No país da mentira, dizer que se tem fome não basta mais. É preciso afirmar que a fome é verdadeira, real e que macula de tristeza nossos olhares.

Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.