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A Europa está no centro da crise mundial. Sua economia vinha se recuperando lentamente após a pandemia, e agora enfrenta uma guerra em seu próprio território, o que não acontecia nessas proporções, há várias décadas. A crise econômica, social e política atual tem alcance mundial, impactando praticamente todos os países do globo. As medidas de austeridade na Europa, adotadas principalmente na última década, fracassaram. Com tais
políticas, os países nem conseguiram reduzir a dívida pública (obsessão entre os governos), nem conseguiram fazer suas economias crescerem. Os esforços para reduzir as dívidas públicas levaram a cortes significativos na despesa pública e nos investimentos.
É um círculo vicioso: baixos níveis de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) conduzem a uma queda na arrecadação de impostos com aumento proporcional da dívida pública. Estudos realizados na Europa indicam que os países que apostaram em maior austeridade e cortes de despesa pública, como a Grécia e Itália, acabaram aumentando seus níveis de dívida pública.
Os efeitos da crise são, também, desiguais entre as economias. Na Alemanha os salários praticamente não caíram nos últimos anos, ficaram estagnados. Já outros países, como Irlanda e Espanha, dois dos mais impactados, assistiram seus rendimentos médios caírem cerca de 25%, ou mais, na última década (em termos reais, ou seja, em poder de compra).
A inflação, que já passa dos 10% em doze meses no continente, tem sido alavancada pelos preços da energia, que segundo o Eurostat (Serviço de Estatística da União Europeia) aumentaram mais de 40% neste ano. Em seguida estão os alimentos, cujos preços dependem diretamente também do custo da energia, dentre outros. A inflação no continente, como ocorre em qualquer parte do mundo, afeta principalmente as famílias mais pobres, e os trabalhadores de uma forma geral.
Em função da crise de energia, o governo da Alemanha, que é a quarta economia do mundo (atrás apenas de EUA, China e Japão) e motor da economia europeia, está prevendo recessão para o ano que vem. A taxa de inflação anual na Alemanha atingiu a marca de dois dígitos em setembro, pela primeira vez desde o início dos anos de 1950. O crescimento previsto da União Europeia para este ano é de 2,7% na média, o que significa que alguns países não irão crescer. É uma conjuntura de baixo crescimento com inflação alta.
A guerra da Ucrânia pegou em cheio a economia europeia. O continente depende visceralmente das matérias primas e da energia originárias da zona de guerra. A indústria alemã, a mais pujante da Europa, e que figura entre as quatro mais potentes do mundo (junto com China, EUA e Japão), está ancorada no suprimento de energia barata da Rússia e nas matérias primas essenciais também. A Ucrânia e a Rússia produzem quase um terço do trigo e da cevada do mundo e são grandes exportadores de metais.
Com a guerra houve uma ruptura das cadeias de abastecimento. O aumento dos custos de muitas matérias-primas, fizeram subir o preço dos alimentos e de outros bens e serviços básicos. A Alemanha ao longo das últimas décadas construiu um vigoroso sistema industrial integrado com os países vizinhos. Nessa configuração o gás russo fornecido a preços compatíveis representa item essencial. Setores intensivos em energia (químicos, fertilizantes, aço, alumínio etc.) já se encontravam em crise antes da guerra, quando aumentaram as tensões na região, com elevação dos preços dos insumos.
A dependência da Alemanha em relação ao fornecimento de energia da Rússia é estrutural e objeto de antigo debate dentro do país. Na Segunda Guerra Mundial, a operação Barbarossa, a invasão da União Soviética pelas potências do Eixo, iniciada em 22 de junho de 1941, dentre outros objetivos, foi realizada para acessar as reservas de petróleo do Cáucaso e os recursos agrícolas dos territórios soviéticos. A guerra na Ucrânia foi um acelerador de tendências, pois a crise já estava colocada no mundo todo e foi bastante
agravada com a pandemia de Covid-19.
As sanções impostas pela OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) à Rússia, tiveram o objetivo de excluir o país do sistema capitalista global, de suas relações de comércio, de trocas e meios de pagamentos. Foi um bloqueio visando destroçar, desossar, a economia da Federação Russa.
Mas as sanções causaram poucos danos ao país, justamente porque esse já vinha se preparando há algum tempo para essas barreiras às relações com os países desenvolvidos. A Rússia acumulou, por exemplo, grande quantidade de reservas internacionais, que no início de fevereiro estavam estimadas em US$ 468,6 bilhões, quase um quarto disso em ouro e aproximadamente 13% em renminbi (moeda oficial da China).
Além disso, a Rússia também fez acordos com grandes países subdesenvolvidos (ou em desenvolvimento), como os membros do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), mas sobretudo a China. As exportações de petróleo e gás, a grande fonte de receita da economia russa, foram rapidamente redirecionadas dos países europeus para a Índia e a China.
Por outro lado, a alta dos preços de petróleo e gás, causada pela guerra, assim como de outras matérias primas, não apenas anulou os efeitos das sanções, como elevou as receitas, se comparadas às dos anos anteriores. As sanções prejudicaram fundamentalmente a Europa, que perdeu grande parte de seu suprimento de matérias primas baratas advindas da Rússia.
A crise geral e a guerra estão levando os países a uma espécie de corrida armamentista, com experimentações de novos equipamentos. Em março a Força Aérea Russa usou, pela 1ª vez, um míssil hipersônico na guerra. Segundo o governo o armamento teria sido lançado contra um depósito subterrâneo de mísseis na região de Ivano-Frankivsk, a cerca de 50 quilômetros da fronteira com a Romênia, país membro da OTAN. Os mísseis supersônicos andam em velocidade cinco vezes superior à velocidade do som.
Não há, até o momento, sistema de defesa que consiga bloquear esse tipo de míssil. É de se presumir que OTAN esteja correndo para tentar gerar um antídoto contra esse tipo de arma. O império norte-americano obviamente está usando a guerra também para conhecer melhor os recursos do inimigo e fazer novos experimentos.
O mundo está em transição, cresce um vigoroso movimento, encabeçado por China, Rússia, Índia, Irã e Turquia. Esses países lideram o chamado Sul Global, cujas populações somadas representam cerca de 87% da população mundial. Logo, a atual ofensiva dos norte-americanos contra Rússia e China, e todos os países do Sul Global, concretizada neste momento pela ardilosa guerra da Ucrânia, está sendo realizada contra 87% da população mundial.
Com a guerra e a crise de energia, se acelera na Europa a tendência mundial à desindustrialização. Este é um problema estrutural que vem de longe e que decorre do deslocamento de empresas para a Ásia, especialmente para a China, nas últimas quatro décadas. A Crise econômica, a Covid-19, a guerra na Ucrânia, a crise energética e alimentar, estão revertendo esse processo, em parte. Os países estão preocupados com a cadeia de suprimentos e com segurança energética e alimentar. Além de políticas de segurança nacional, que voltaram ao topo das preocupações políticas dos países no mundo.
Fica muito evidente que, se a Rússia não tivesse reconstruído suas forças armadas nos últimos 20 anos, a partir da assunção de Vladmir Putin, o país teria ficado à mercê da ganância imperialista no conflito da Ucrânia. Para entender esse conflito na Europa, tem que compreender a história recente da Ucrânia e suas relações com a Rússia. Visualizar o processo, somente a partir da deflagração da guerra a partir de 24 de fevereiro, é engolir em seco a narrativa mal improvisada pela OTAN.
A guerra na Ucrânia é mais uma guerra por procuração que os EUA promovem no mundo, como tantas outras. O presidente dos EUA, Joe Biden, tem falado recorrentemente que o conflito na Ucrânia faz parte de um processo mais amplo, de enfrentamento das economias concorrentes no mundo, fundamental neste momento de crise grave. A China está apoiando a Rússia, dentre outras razões, porque sabe que, vencida a Rússia na Ucrânia, pode ser a bola da vez, com Taiwan servindo como pretexto.
A crise mundial e a postura imperialista dos EUA e seus satélites na Europa, coloca uma situação mundial que tende a se arrastar pelas próximas décadas. Os EUA sofrem uma crise de hegemonia e não irão entregar os pontos sem briga. Não aceitam, por exemplo, uma economia com várias moedas, como desejam os países que compõem o BRICS. A decisão dos BRICS de substituir o dólar como moeda internacional e adotar suas respectivas moedas como referência, foi decisiva para os EUA perpetrarem o golpe de 2016 no Brasil.
Em relação à situação internacional, escreveu Michael Hudson, analista financeiro de Wall Street: “Esta fratura global promete ser uma luta de dez ou vinte anos para determinar se a economia do mundo será uma economia dolarizada centrada nos EUA, ou uma economia multipolar, multi-monetária mundial centrada no coração da Eurásia, com economias mistas públicas/privadas” (artigo transcrito no site do 247, em 11.11.2022).
José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.