Tecnologia que afronta

 Por Mara Narciso*.

Túnel do tempo: a pessoa chega ao restaurante, pega uma mesa central, coloca o celular tijolão sobre a mesa, pede uma bebida e começa a telefonar falando alto. Os outros frequentadores, atirados a condição de plateia, ouvem embasbacados a toda aquela encenação. O privado tornado público era, na época, um gesto indicativo de status. Quando começou seu uso, o aparelho celular e as chamadas eram caríssimos. Quase não tinha ninguém com outra parafernália igual para, também pagando caro, receber a ligação. Alguns, de forma cautelosa, disseram que não usariam aquilo, mas, assim que foi reduzido o preço, quiseram um aparelho igual.

Ter a liberdade de falar de qualquer lugar, achar alguém onde estiver, chamar por socorro numa estrada ou encontrar um caminho dentro da cidade são vantagens incontestáveis. Foram tantos os ganhos com essa tecnologia que, em relativo pouco tempo se popularizou, cumprindo os vaticínios do Ministro Sérgio Motta, que falou que todos teriam um e este custaria o mesmo que um sorvete.

Novos comportamentos surgiram advindos do uso do telefone celular ou tele-móvel dos portugueses. A citada liberdade idealizada inverteu-se numa condição de controle dos passos alheios. Aos pais com filhos menores foi um achado, desde que eles não desliguem o aparelho. Maridos e mulheres enciumados, além de telefonar passaram a abrir o telefone vasculhando telefonemas, o que faz relacionamentos caírem por terra.

Inúmeras funções foram acopladas ao celular. Tornaram-se prática comum os torpedos ou mensagens de texto, ouvir música e o uso da internet. As pessoas escancararam suas privacidades aos gritos, já que um bom sinal é inconstante nas quatro empresas de telefonia. Sem falar dos abusos das contas com vergonhosas cobranças indevidas, fatos sobre os quais o governo deveria tomar providências para evitar a exploração predatória dos usuários.

Na rua, os que telefonam distraídos são vítimas fáceis de ladrões, pois estão em outro mundo e não vêm o agressor se aproximar. Nos elevadores, mesmo sem conseguir falar direito, as pessoas falam e falam. Assim como a internet, o artefato aproximou quem está longe e afastou quem está perto. Nos ambientes cheios de gente, os telefonadores não se acanham de falar coisas íntimas, de tal forma que quem está ao lado, acompanhando o desenrolar da conversa, sente-se constrangido, ou, ao contrário, impelido a dar opinião.

O celular é uma extensão do corpo e da mente, e essa simbiose tem riscos. Em algumas situações é preciso parar de telefonar e prestar atenção ao que se está fazendo. É sensato não ligar enquanto se dirige, porém, poucos acreditam que isso poderá causar desastres. Uma moça americana não sobreviveu para comprovar, mas ela dirigia e enviava simultaneamente SMS – Short Message Service – numa estrada.

Nos bancos é proibido usar o celular devido ao golpe “saidinha de banco”. Outros momentos também deveriam ser respeitados, como shows, cerimônias religiosas, subidas e descidas de avião e durante a consulta médica.

É comum, durante a consulta, a pessoa ou acompanhante atender três ou mais telefonemas, ter conversa longa, e o médico estupefato interromper seu trabalho e ficar olhando. Mesmo quando há um aviso para desligar o celular, o pedido não é obedecido. Não atende rápido, pedindo desculpas por atender, dizendo que ligará depois, não. Fala que é inadiável, atende e toma o tempo do médico. Outras pessoas na sala de espera também têm seus tempos roubados. Novidades na área, pois passou a acontecer algo pior. No decorrer da consulta chega um torpedo. A pessoa lê, ri e começa a responder imediatamente. O médico falando, fazendo as perguntas de praxe, tentando resolver o problema que ora se apresenta, e a pessoa de cabeça baixa, olhando seu brinquedo, digita letrinhas para o outro lado da cidade ou do mundo. Caso o médico fale alguma coisa, interrompendo o palavrório, é considerado mal-educado. Na realidade, quem está faltando com a boa educação?

*Mara Narciso é médica e jornalista diplomada – 1º de julho de 2012.

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