Teatro x Especulação Imobiliária: um duelo em praça pública

Imagem: Reprodução.

Uma ação de despejo expedida no último dia 15 coloca em risco a permanência do grupo Pessoal do Faroeste em sua sede, na Rua do Triunfo, região da Cracolândia. O Pessoal do Faroeste ocupa o espaço há oito anos, mas nos últimos tempos encontrou dificuldade para arcar com o pagamentos das mensalidades, o que levou o proprietário do imóvel, João Roberto de Ângelo, a pedir reintegração de posse e rescisão do contrato de locação. A Cia, cujas produções retratam a vida social e política do povo brasileiro por meio do imaginário popular, tem um olhar especial à cidade de São Paulo, especificamente o centro, onde tem a sua sede, a Luz do Faroeste. Caso se cumpra a ação, o grupo será obrigado a deixar o espaço no número 301 da Triunfo.

O diretor do grupo afirma que existe uma possibilidade de negociação com recursos do Fomento ao Teatro, o advogado do proprietário, por outro lado, afirma que o grupo deve quitar o valor para a continuidade do acordo entre as partes. O imbróglio não é tão incomum numa cidade repleta de grupos artísticos e refém de uma especulação imobiliária acostumada a cravar os caninos no pescoço da população. Tão pouco é novidade por aqui que alguém, ou um grupo de teatro, seja jogado na rua em nome do cumprimento da lei. Todos os dias, São Paulo vive a aflição do despejo. É triste, é feio, é de fazer morrer a esperança.

Nos últimos anos, assistimos a centenas de casos semelhantes ao do Pessoal do Faroeste. Não é raro trombar com amigos por aí e ouvir que esse ou aquele grupo está com a corda no pescoço, devendo as calças e as ceroulas, afundado em dívidas e preocupações por conta do aluguel, cada vez mais alto pelas bandas de “sunpablo”.

A história geralmente é a mesma: o grupo de teatro chega a um lugar jogado às traças pelo estado, que sofre com problemas comuns às grandes cidades, como tráfico e miséria. Ali onde ninguém quer morar, onde ninguém quer nem mesmo passar, o teatro chega de mansinho, pisando miúdo. Aos poucos, na base do afeto e da coragem, constrói pequenos vasos comunicantes que passam a injetar uma nova vida, primeiramente às ruas, mas que logo se espalha pelo bairro todo. A coisa acontece feito mágica. Aliás, eu creio que seja mesmo mágica, coisa de Dioniso. E tudo fica tão vivo e bonito que chega a encher o peito de tanto orgulho e esperança no bicho homem.

Talvez o enredo da tragédia do Pessoal do Faroeste não seja exatamente esse, mas duvido que seja muito diferente. A verdade é que hoje, não só em São Paulo como no Brasil inteiro, é muito complicado manter um espaço artístico funcionando.

Mas tudo que é bom dura pouco. Eis que de uma hora pra outra surge ele, o vampirão, a especulação imobiliária. Nada para em pé. Os aluguéis disparam aos fim dos contratos, as grandes construtoras crescem os olhos, os políticos coniventes e criminosos dão seus jeitos. O artista, aquele da fome, sempre acaba no olho da rua, na sarjeta da existência asfixiado pelo poder da grana que insiste em destruir as coisas belas.

Talvez o enredo da tragédia do Pessoal do Faroeste não seja exatamente esse, mas duvido que seja muito diferente. A verdade é que hoje, não só em São Paulo como no Brasil inteiro, é muito complicado manter um espaço artístico funcionando. O problema maior é sempre financeiro, mas tal problema é o resultado de outros pequenos que, aos poucos, tornam cada vez mais inviável a um grupo ter seu próprio espaço no Brasil atual; não que um dia tenha sido fácil, é claro. Afinal, é complicado se fazer teatro no Brasil, ainda mais nesse Brasil de agora que transformou artistas em inimigos públicos.

Mas mesmo assim, com a corda no pescoço, é preciso lutar. Lutar nesse mesmo país de sempre. Ser artista no Brasil é saber que o tempo por aqui urge, arde, machuca e até mata. É combater com arte a fome, que por aqui não é um estado, mas uma herança maldita passada de miserável a miserável feito uma sentença que se recebe ao primeiro suspiro e se carrega no lombo até o fim dos dias. Assim, nessa tragédia tupiniquim, é que decidimos ser artistas, então é preciso segurar a onda mesmo que a maré bata forte.

Resistência é algo que desenvolvemos de acordo com o vento. Por isso, em primeiro lugar, é preciso saber pra que lado o vento toca, e por aqui, na coluna “Em Cena”, o vento sempre vai soprar a favor do artista e contra a tropa de choque. Nos solidarizamos com os colegas do Pessoal do Faroeste e fazemos coro para que a resistência de hoje seja a re-existência de amanhã. São Paulo não precisa de mais shoppings, de mais igrejas ou de mais restaurantes. São Paulo precisa de vento, de ventilação, de um furacão que lhe abra as janelas, os peitos e os olhos. De um vendaval que lhe arranque as cabeças e as calças; que lhe acenda os sentidos. É disso que São Paulo precisa, e é justamente por isso que o teatro teima, insiste.

É bem verdade que às vezes é difícil ter esperança. Sabe-se lá o motivo desse mistério, mas o fato é que, de tempos em tempos, esse bichinho chamado esperança some do coração e o horizonte torna-se obscuro, e a gente é todo medo e desespero. É um terror danado. Mas é também verdade que toda tormenta passa, e que barco que se nega a enfrentar tempestade se quer chega a deixar o porto. O teatro é isso: insistência, violência, combustão, beijo na boca, arrepio, enfrentamento, cuspe na cara e o diabo. O teatro é isso ou não é nada. Podem cortar seu coro, quebrar seus ossos, queimar sua carne. Não importa. O teatro é fogo: arde, amorna, mas nunca cessa.

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