Por Miguel Urbano Rodrigues.
Desde que regressei a Portugal, em 2004, havia renunciado praticamente a ler livros recém publicados. Relia, relia muito: romances, ensaios, obra históricas que me tinham marcado, que haviam contribuído para me modelar.
De repente, no último ano, recomecei a ler novidades editoriais. Mais de um livro por semana.
Porquê? Não sei e não tento encontrar explicação. Aconteceu.
Em Maio comecei a ler um livro estranhíssimo que me tinha sido recomendado por Jean Salem: O Fim do Homem Soviético-Um Tempo de Desencanto, de Svetlana Aleksievich.*
A minha companheira, Caty, gostou. Ela estudou na Universidade de Kiev, de 1985 a 1991, e visita a Rússia, em trabalho, frequentemente, sobretudo Moscovo. Voltou a Kiev, esteve na Bielorussia, na Crimeia, na Sibéria Oriental, em Murmansk, em aldeias do Mar de Barents. Ao sugerir-me a leitura (antes da atribuição do Nobel), disse-me que na sua opinião o trabalho de Svetlana Aleksievitch esboça facetas do panorama humano contraditório do grande país varrido pelo vendaval que destruiu a sociedade que ela conheceu.
O livro desencadeou em mim um estado próximo da angústia.
A sobrevivência do homem soviético
O livro de Svetlana não é um ensaio, nem uma narrativa. Não cabe no género memórias. O que é então?
A autora tem hoje 67 anos. Tinha 43 quando a URSS desapareceu.
O que fez? Reuniu um feixe de estórias contadas por gente muito diferente, com mundividências incompatíveis.
Abomina o socialismo, e em conferências, entrevistas e artigos não esconde um anticomunismo agressivo. Mas no livro que a tornou famosa não condena explicitamente a fração da humanidade que o inspirou. Essa é uma conclusão para a qual empurra o leitor. Os depoimentos contraditórios reunidos em O Fim do Homem Soviético provocaram em mim uma sensação de náusea.
O êxito do livro, que foi considerado em França «o melhor do ano» em 2013, demonstra que atingiu o objetivo. Para isso foram decisivos a seleção das personagens entrevistadas e os seus depoimentos.
O que diz Sevtlana que outros escritores não tenham dito?
Segundo ela, o comunismo tinha «um plano louco», transformar o homem antigo. E conclui que obteve êxito: «no laboratório do marxismo-leninismo criou-se um tipo humano especial- o Homo Sovieticus». Na categoria engloba, além dos russos, os bielo russos, os turcomanos, os ucranianos, os cazaques, todos os povos da desaparecida União Soviética.
Atualmente são cidadãos de estados diferentes e falam línguas diferentes, mas a escritora acha que são «inconfundíveis».
«Estamos todos», escreve, «cheios de ódio e preconceitos».
Regista os vestígios daquilo a que chama a «civilização soviética», mas inspiram-lhe repugnância.
Svetlana acha que no início dos anos 90, a maioria dos russos era feliz. Mas o sonho do paraíso durou pouco.
«Os estudantes de hoje – reconhece – já descobriram, já sentiram o que é o capitalismo- a desigualdade, a pobreza, a riqueza descarada, têm diante dos olhos a vida dos pais para quem nada restou do país saqueado».
A escritora sublinha com amargura que «Tudo o que é soviético está outra vez na moda», «Renascem ideias antiquadas, sobre o Grande Império, sobre a ‘mão de ferro’ , ‘sobre a via russa especial».
«Encontrei – escreve – jovens com a foice o martelo e o retrato de Lenin nas camisolas. Saberão eles o que é o comunismo?»
Essas evidências servem-lhe de alavanca para a montagem de um livro que falseia a História.
Depoimentos contraditórios
Ao longo de quase 500 páginas, depoimentos contraditórios alternam com estórias do quotidiano na URSS, de amor, de violência, de odio, de esperança, de desespero, de suicídios, de heroísmo e crueldade, de miséria, de traições e medo, de fome, de luta pela sobrevivência, estórias que evocam vivências anteriores à guerra e outras posteriores.
Svetlana falou com intelectuais, operários, industriais, deportados, colaboracionistas, antigos guerrilheiros.
Pretende transmitir uma postura de objetividade, de isenção. Mas não consegue.
Visitei a União Soviética uma dúzia de vezes a partir de 1975, estive ali duas vezes durante a Perestroika e passei dez dias em Moscovo em 2011.
Não parece acertada a atribuição a Svetlana Aleksievitch do Nobel de Literatura. A motivação da Academia Sueca foi política.
No seu agora famoso livro, ela, com talento literário inegável, parte de situações concretas, de depoimentos gravados, para a construção de uma obra que apresenta uma imagem falsa da URSS e dos seus povos.
O seu Homo Sovieticus projeta uma imagem caricatural, por vezes odiosa, dos filhos, netos e bisnetos dos homens e mulheres que foram sujeito da Revolução de Outubro. Não reconheci nele o povo que aprendi a amar e admirar.
- Svetlana Aleksievich, O Fim do Homem Soviético-Um tempo de desencanto, Porto Editora, 469 páginas, Porto, Abril de 2015.
Serpa e Vila Nova de Gaia, Outubro de 2015
Imagem tomada de: www.lux.iol.pt
quando o nobel no foi politico?
já sei que garcía márquez o tive, e borges, nao, por conservador, dizem.
cada momento exige reposicionamentos, na hipocresia dos que ainda tem o poder mundial; por isso as (enganosas) “viradas” á esquerda e depois o ataque explicito, como en este caso.
quando soube, pela imprensa, e li a resenha do que ela fazia, achei que era outro solyenitzin.
y era, nomás.