Sul do Amazonas se consolida como fronteira de queimadas e desmatamento na Amazônia

Dados disponibilizados pelo Inpe mostram evolução da degradação ambiental no estado do Amazonas e preocupa pesquisadores (Foto: Christian Braga/Greenpeace/27/07/2022).

Por Alicia Lobato, para Amazônia Real. 

O sul do Amazonas confirma ser a nova fronteira do desmatamento, queimadas e incêndios florestais no estado, mesmo com promessas das autoridades do governo estadual e federal de combate ao fogo ilegal. Entre janeiro e julho deste ano os municípios com maior área de desmatamento, segundo o Sistema Deter (Detecção de Desmatamento em Tempo Real),  plataforma do  Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (Inpe), foram Apuí e Lábrea, ambos do Amazonas. Em terceiro lugar ficou Altamira, no Pará.

No útimo dia 28 de julho, o município de Apuí, estava debaixo de uma impressionante nuvem de fumaça, sinalizando que a temporada de fogo não daria trégua em várias partes da Amazônia, incluindo o sul do Amazonas, que a cada ano se consolida como um das áreas de maior impacto de desmatamento e queimadas. No dia seguinte, o coordenador de monitoramento de queimadas do Inpe, Alberto Setzer, enviou, com exclusividade, uma imagem de satélite à Amazônia Real destacando a gravidade da situação do município, com forte presença de atividade de pecuária e com alto índice de desmatamento. Em 2022, Apuí tem liderado os focos de queimadas no estado, com 1.385 de janeiro até nesta data (18 de agosto), ocupando 30% do total no Amazonas.

“Bons exemplos de grandes desmates com queimadas nestes dias no Amazonas”, alertou Alberto Setzer, na ocasião (veja imagens com cobertura de fumaça abaixo).

Mesmo com a situação crítica do sul do estado, os dados deste ano do período de janeiro às primeiras semanas de agosto, que se somam a 3.800 focos, se mostraram menores que do ano de 2021, onde atingiram 5.751. Em ambos os anos, o Amazonas ocupou a terceira posição dos focos por estado.

Apuí fica na região da BR-230, a rodovia Transamazônica, e está sempre presente na lista dos municípios que mais queimam e desmatam. Outros municípios do sul do Amazonas que também figuram neste ranking do fogo são Manicoré, Humaitá e Lábrea. Para Alberto Setzer, a situação atual é preocupante.

“Em alguns locais aumentou bastante, como o estado do Amazonas. Mas ainda é cedo para dar qualquer balanço desse ano porque o pior realmente acontece nos meses de agosto, setembro e outubro. Dependendo de como as nossas leis forem aplicadas, sabemos que é proibido fazer queimadas e quando a fiscalização é mais intensa diminui o número”, disse Setzer à reportagem, ao avaliar a situação de queimadas nas áreas mais pressionadas da região amazônica.

Já entre os estados da Amazônia com maior número de focos de queimadas desde janeiro até o dia 15 de agosto, segundo o satélite de referência do Inpe, Mato Grosso está em primeiro lugar, com 7.065 focos de queimadas; Pará em segundo lugar, com 5.424; em seguida vem o Amazonas, com 3.800 focos; Rondônia ocupa a quarta posição com 1.368 focos.

Em comparação com o mesmo período de 2021, houve uma diminuição dos focos em Rondônia, que no ano passado contava com 3.075 focos, e no Pará, que atingiu 6.454 focos.

Nos primeiros dez dias de agosto, o Inpe registrou 3.390 focos de queimadas na região Norte, situação agravada com o início do período da estiagem (menos chuva), que geralmente vai até o mês de outubro.

Focos de queimadas na BR-319

Segundo o Observatório da BR-319, uma rede de organizações socioambientais que atuam no Amazonas, como Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (Idesam), Greenpeace e WWF, os municípios no entorno da rodovia  BR-319 (Manaus-Porto Velho), no sul do Amazonas, apresentaram em junho de 2022 um aumento de 9% no número de focos de queimadas em comparação ao mesmo mês, em 2021. Entre os municípios estão Lábrea, Canutama e Borba, que também estão na lista de municípios com maior número de focos de queimadas.

A pesquisadora de políticas públicas do Idesam, Paula Carolina Guarido, explica que os 87% dos focos de queimadas detectados em Canutama, Humaitá, Manicoré e Tapauá, municípios localizados no sul da rodovia, ocorrem até 5km de estradas oficiais e ramais. Ela afirma que a BR-319 e os ramais que surgem a partir dela acabam sendo vetores de focos de calor nesses municípios. “Os municípios monitorados pelo Observatório BR-319 que apresentam os maiores números de focos de calor, assim como os que apresentam os maiores desmatamentos, estão no sul da rodovia BR-319”, diz.

A BR-319 é uma rodovia federal que tem início em Manaus, capital do Amazonas, e termina em Porto Velho, capital de Rondônia. No dia 28 de julho de 2022, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) expediu a licença prévia para as obras no trecho do meio da rodovia BR-319, que corresponde do km 250 ao km 655,7, abrangendo os municípios de Beruri, Borba, Tapauá, Canutama, Manicoré e Humaitá.

Em nota divulgada no dia 1º de agosto deste ano, o Observatório da BR-319 afirmou ser essa medida “evidentemente eleitoreira, com clara motivação política”. Segundo o documento, a licença prévia ignora etapas importantes do processo de licenciamento, como as consultas às comunidades que serão atingidas, como povos indígenas e tradicionais.

Paula Carolina Guarido analisa que o avanço do processo de licenciamento da BR-319 “pode gerar graves consequências socioambientais”. De acordo com ela, a ausência de uma discussão que inclua os povos das comunidades “representa um caso de violação de direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais, que não foram consultados segundo a convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), cujo Brasil é signatário”. Ela lembra também que a localização da rodovia conecta uma região marcada pelo desmatamento a outra região que ainda está conservada, facilitando assim a circulação.

“Soma-se isso ao enfraquecimento das instituições e tem-se um problema grave de aumento de ilegalidades na região, como aumento de desmatamento, da degradação florestal, dos focos de calor, da grilagem de terra, expulsão de povos e comunidades tradicionais de suas terras, enfim, uma catástrofe socioambiental”, afirmou a pesquisadora,

Na mesma nota, o Observatório da BR-319 comenta que a área em torno da BR-319 está repleta de terras públicas sem destino, podendo ser um dos maiores incentivos ao avanço do desmatamento da floresta.

O colunista da Amazônia Real, Carlos Durigan, geógrafo e diretor do Wildlife Conservation Society (WCS), uma das organizações que integram o Observatório da BR-319, explica que, apesar da licença prévia ainda não constituir a licença de operações, e podendo ainda demorar para que as próximas etapas sejam concluídas, o fato gera preocupações com o futuro da região.

“Contribuem ainda com este cenário negativo a fragilidade da gestão pública em conduzir as ações de comando e controle desses ilícitos e o fato de estarmos entrando em período eleitoral, onde é comum testemunharmos na região um afrouxamento das atividades de fiscalização”, analisa o geógrafo.

Nesta terça-feira (16), a rede Observatório do Clima divulgou informe destacando que, com a expectativa da pavimentação da BR-319, o Amazonas tornou-se o “novo epicentro da destruição florestal”. A organização informou que, conforme os alertas de desmatamento pelo Sistema Deter, do Inpe, o Amazonas ultrapassou Mato Grosso no ranking dos estados com mais florestas devastadas pela segunda vez desde o início da série histórica do Deter-B, em 2016. Em 2022, o sistema Deter registrou 8.590 km2 de alertas de desmatamento. Deste total, 2.292 km2 foram no Amazonas, ficando atrás apenas do Pará.

Localizados na zona de influência da BR-319, os municípios de Lábrea (AM) e Apuí (AM) foram respectivamente o primeiro e segundo com maiores áreas de alertas de desmatamento de toda a região.

“É mais um número que estarrece, mas não surpreende: o desmatamento fora de controle na Amazônia resulta de uma estratégia meticulosa e muito bem implementada de Bolsonaro e seus generais para desmontar a governança socioambiental no Brasil”, disse Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima, que já se posicionou oficialmente sobre a pavimentação, alertando para os impactos.

Ausência de fiscalização na Amazônia

Registro de queimadas entre Porto Velho (R) e o sul do Amazonas, feito em sobrevoo pelo Greenpeace ao longo do mês de julho deste ano (Foto: Christian Braga / Greenpeace)

De acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), as duas primeiras semanas de agosto tiveram bastante tempo seco em grande parte do estado do Amazonas, incluindo o município de Apuí, e a previsão até o dia 19 de agosto é de temperaturas máximas que podem atingir até 38ºC no sul do estado e prevalecerá o tempo mais seco.

O diretor do monitoramento de queimadas do Inpe, Alberto Setzer, afirma que a mesma situação dos últimos anos tem se repetido. “De um lado você tem a metereologia sem chuva, criando condições do uso e da propagação do fogo, e por outro lado você vê o pessoal utilizando fogo com bastante intensidade”.

Para o pesquisador, as imagens capturadas pelo satélite mostram que está havendo uma degradação intensa da região sul do estado do Amazonas, sendo possível verificar uma expansão do desmatamento.

Procurado, o Governo do Amazonas, por meio da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, enviou nota protocolar e genérica, informando apenas que “as ações de combate às queimadas ilegais e ao desmatamento estão ocorrendo de forma permanente, desde março deste ano, e tem como base de operações e foco o sul do estado”.

A nota também afirma que o estado “capacitou 215 brigadistas florestais, que recebem, pela primeira vez, uma remuneração mensal do estado para atuação”. Sobre a situação de municípios como Apuí, foi afirmado que os registros de focos de calor foram em áreas de dominialidade federal. Sobre a atuação dos brigadistas, o Governo do Amazonas afirma que estão distribuídos em 12 municípios prioritários, entre eles Apuí, Lábrea, e Canutama.

Amazônia Real entrou em contato com o Ibama, questionando sobre quais ações estariam sendo realizadas na região, mas o órgão nao respondeu até a publicação desta reportagem.

No dia 14 de julho deste ano, em autorização emitida pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), foi afirmado que  a Força Nacional de Segurança Pública serviria como apoio ao estado do Amazonas no combate a incêndios e queimadas. Segundo o Diário Oficial da União, o apoio seria desde o dia 15 de julho até 15 de novembro de 2022, e os municípios seriam Humaitá, Lábrea e Novo Aripuanã.

Amazônia Real também entrou em contato com o Ministério da Justiça para saber de que forma esse apoio estaria acontecendo. No entanto, a nota enviada pela assessoria apenas repassou que a atuação é em conjunto com o estado do Amazonas e que atua desde o ano passado em Apuí no combate aos incêndios florestais e às queimadas, por meio de profissionais do Corpo de Bombeiros, viaturas e equipamentos de combate ao fogo.

Os altos números de focos de queimadas divulgados pelo Inpe trazem uma nova perspectiva para o decorrer do ano em relação às queimadas, período que deve se intensificar nos próximos meses, e vão refletir principalmente no quanto já foi desmatado em 2022.

De acordo com o cientista Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o Amazonas é o campeão em termos de velocidade, embora o Pará continue tendo as maiores áreas total desmatadas esse ano.

“A posição de destaque do Amazonas é quase só devido à parte sul do estado. Se essa atividade se espalhar para novas áreas de floresta, o resultado seria catastrófico devido à vastidão das áreas em risco de serem atingidas nos próximos anos”, analisa o pesquisador.

Decretos não inibem o uso do fogo

Queimada registrada pelo Greenpeace, entre 28 e 31 de julho de 2021, no município de Apuí (AM) (Foto: Christian Braga/Greenpeace)

Em 2020, o presidente Jair Bolsonaro (PL) assinou o decreto 10.424, publicado no dia 15 de julho daquele ano no Diário Oficial da União, que mencionava a proibição da queima de floresta para a agropecuária pelo prazo de 120 dias. Mesmo com os decretos assinados pelo presidente, o uso do fogo continua sendo uma forma encontrada por muitas pessoas para limpar o terreno, principalmente para o uso de pastagem.

O fogo também é usado como uma forma de queimar a vegetação derrubada, facilitando o trabalho para o plantio. Incêndios podem se iniciar até mesmo por um descuido ao queimar folhas secas, no entanto, todo incêndio é causado por ato humano, observando o fato da Floresta Amazônica ser um ambiente com bastante umidade, mesmo em períodos de secas.

Para o pesquisador Philip Fearnside, “essencialmente todo o fogo é feito por pessoas, pois o fogo iniciado por raios é raro na Amazônia”. O doutor em ecologia e biologia evolucionária afirma que incêndios florestais de maneira geral não são propositais, visto que incêndio culposo em florestas são raros.

Quando se pensa nas razões dos altos números de focos de calor na região sul do estado, pode-se recordar também o número de áreas para pasto, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2020 o município de Apuí estava em terceiro lugar com o maior número de cabeças de gado no estado, com 160 mil cabeças, ficando atrás do município de Boca do Acre, que contava com cerca de 220 mil, ocupando a segunda posição e do município de Lábrea, que ficou na primeira posição com quase 320 mil cabeças de gado.

Em 2021, Lábrea ficou em primeiro entre os municípios com os maiores números de focos de queimadas do estado do Amazonas, com 32,9 % dos focos e em 2022 (janeiro a 11 de agosto) ocupa a quarta posição, com 5,5% dos focos. Apuí e Lábrea também são os municípios da Amazônia Legal que mais desmataram nos primeiros sete meses de 2022, sendo Apuí o município com a maior área desmatada e com o maior número de avisos de desmatamento, com 1.472 avisos. A relação do fogo com o desmatamento se dá pelo fogo ser a forma mais prática e barata de limpar um terreno.

De acordo com Philip Fearnside, o rápido avanço do desmatamento e queimadas no sul do estado do Amazonas “é um alerta para o futuro provável em vastas áreas de floresta que estão prestes a serem abertas pelas rodovias planejadas, principalmente a BR-319”. Para ele, os atores que vivem nessa região podem migrar para as novas áreas de floresta, como as de terras públicas não destinadas, “que são as mais atraentes a grileiros e outros atores”, afirma o pesquisador.

Troca de ministros e a permanência da agenda anti ambiental

Ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, e o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, durante a COP 26. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Em junho de 2021, novamente o governo federal suspendeu pelo mesmo período o uso de fogo no território nacional em novo decreto,  assinado por  Bolsonaro e pelo ministro do Meio Ambiente, Joaquim Álvaro Pereira Leite, que assumiu o cargo no mesmo mês. O então ministro ocupou a vaga deixada por Ricardo Salles, que deixou a função após ser exonerado.

A gestão de Ricardo Salles foi marcada por uma política anti ambiental e de retrocessos nas leis ambientais do país, sendo ele o responsável pela frase “ir passando a boiada”, dita em uma reunião no Palácio do Planalto em 22 de abril de 2020. De acordo com Salles, o governo deveria se aproveitar da pandemia da Covid-19 para alterar leis ambientais. O novo ministro assumiu uma postura não tão diferente de Salles em relação a uma agenda anti ambiental. Isso se mostrou evidente principalmente pelo desmonte de órgãos de proteção ao meio ambiente, como o Ibama.

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