A morte do dançarino, ator e modelo Demetrio Campos, neste domingo (17), interrompeu qualquer tipo de celebração do Dia Internacional de Combate à LGBTfobia para lembrar que a data ainda é de luta. A notícia, que circulava via redes sociais, trazia a imagem de um jovem de sorriso largo como “mais um homem trans negro que foi suicidado pela violência transfóbica e do racismo”.
Aos 23 anos, Demetrio enfrentava uma forte depressão e estava desempregado, segundo relatos de pessoas próximas ao artista. Natural de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, o jovem tornou-se conhecido por divulgar sua resistência e a luta durante o processo de transição para existir enquanto homem trans, negro e periférico no país que mais mata transgêneros do mundo e em que 75,5% das vítimas de homicídio são negras.
“Para homens pretos e até mesmo mulheres travestis pretas, as coisas ficam bem mais difíceis depois que você transiciona. O mundo não vira um ‘mar de rosas’ e as coisas não ficam totalmente ‘de boas’. Você é perseguido pela polícia muito mais. E alvo de agressão muito maior. As pessoas são muito mais racistas com você. (…) Eu tenho medo de andar na rua por simplesmente andar na rua”, chegou a declarar Demetrio em um vídeo.
Movimentos sociais e ativistas lamentaram a morte do artista, chamando atenção “para os obstáculos sociais” impostos pelo preconceito da sociedade. E que são agravados neste momento de crise sanitária e econômica pela pandemia do novo coronavírus. Levando ao limite físico e, principalmente, mental, os corpos já vulneráveis anteriormente.
A solidão da pessoa LGBT
Essa já é, inclusive a principal questão que vem sendo negligenciada na pandemia, na avaliação da médica de Família e Comunidade Ana Paula Andreotti Amorim, integrante do Grupo de Trabalho de Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
“Nesse momento em que se pensa muito no cuidado biológico, na transmissão e no problema pulmonar e infeccioso, é muito comum se negligenciar esses sofrimentos emocionais. E eles não só maltratam, como matam as pessoas”, alerta a médica, que é também especialista na saúde da população LGBT.
“E nas pessoas que já sofrem preconceitos e exclusões tanto familiar, como nos ambientes de trabalho, mesmo com muitas pessoas dizendo que no ambiente de trabalho não existe exclusão, mas sempre existe uma homofobia, bifobia, lesbofobia, transfobia velada, isso interfere sim na plena saúde mental de uma pessoa”, explica Ana Paula acrescentando que “essa exclusão traz as pessoas para um lugar de solidão na sociedade”.
Saúde mental e desemprego
Dados preliminares de uma pesquisa do coletivo VoteLGBT, divulgados neste domingo, confirmam que os problemas de saúde mental durante o isolamento social são a maior preocupação entre 44% das lésbicas, 34% dos gays, 47% dos bissexuais e pansexuais e 42% dos transexuais que responderam à pesquisa que tenta entender como essa população tem passado pela pandemia.
O estudo, realizado em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ouviu mais de 10 mil pessoas de forma anônima. E questionou sobre saúde, acesso à informação e trabalho e renda – a segunda maior preocupação do grupo, em que 21,6% afirmaram estar desempregados.
No país, hoje, a taxa de desemprego geral está em 12,2%, segundo o IBGE. O que reforça que a “população LGBT é uma das mais vulneráveis. Assim como as populações que moram em favelas, periferias, com condições de moradia inadequadas e as mulheres pelo risco de violência doméstica. As unidades de saúde têm que saber olhar para essas populações e saber fazer essas avaliações”, ressaltou a médica de Família e Comunidade.
Em 23 de abril, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) lançou nota à sociedade e às autoridades brasileiras, reiterando a necessidade de que gênero e orientação sexual – assim como raça, classe, idade e deficiências – fossem levados em conta e discutidos no combate ao coronavírus. No documento, a associação aponta o silêncio da mídia e da sociedade sobre a população LGBTI+ como uma “evidência de sua persistente invisibilidade social”.
A entidade também confirma que todo o estigma e preconceitos sobre a população LGBT implicam em um menor acesso inclusive ao sistema de saúde e proteção.
Dificuldades históricas
Historicamente, a comunidade deixa de acessar aos serviços de saúde, não porque eles não existam, mas porque nesses locais ainda se perpetuam práticas discriminatórias que afastam, ao invés de acolher, segundo Ana Paula. Desde 2013, no governo de Dilma Rousseff (PT), o país conta com a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis e Transexuais. Mas “não ter a intenção de ser bifóbico, lesbofóbico, homofóbico, transfóbico não faz com que as pessoas não sejam”, destaca a especialista.
“E esse é um agravamento também. Existem situações de violência institucional que são muito frequentes. Desde a profissional da recepção que não sabe acolher direito as pessoas, não sabe como registrar identidade de gênero, orientação sexual na ficha de cadastro, até o agente comunitário, ou enfermeiros e médicos que não sabem fazer a abordagem correta. Essa exclusão e violência, porque isso acaba sendo uma violência, é uma vulnerabilidade muito grande, as pessoas acabam deixando de buscar o serviço da mesma maneira que as outras pessoas”, afirma a médica de Família e Comunidade.
“Tudo isso é somado aos agravamentos biológicos, que são mais comuns nessa população. Então, por exemplo, a população LGBT fuma mais, usa mais álcool, usa mais drogas do que a população em geral. As mulheres lésbicas têm maior tendência de obesidade do que as mulheres da população em geral. Os homens gays têm mais HIV do que a população em geral. E tudo isso não é por ser gay ou lésbica em si, e sim por conta de todas essas séries de exclusões”, justifica.
O retrato da falta de acesso
Na semana passada, quando a RBA levantava os impactos da pandemia junto à população trans do Norte ao Sul, a professora de teatro Xan Marçall, arte-educadora e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Cultura e Sexualidade (Nucus) vinculado à Universidade Federal da Bahia (UFBA), contou que, além de, em quatro meses, ter sofrido dois despejos, também já sentia impactos em sua saúde física e mental.
No seu único momento semanal, em que se conecta com as crianças de 2 até 6 anos, para lecionar suas aulas de teatro, ela lembra que não está isolada do mundo por completo. Mas é pelo vídeo também que ela vê as primeiras mudanças desse período em seu corpo. Era nesse semestre, tumultuado por essa crise sanitária, que a artista iniciaria seu acompanhamento de terapia hormonal pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que até então já fazia, desde o início de sua transição, mas por conta própria.
Em janeiro, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma nova portaria ampliando o acesso a procedimentos para a mudança de sexo na rede pública. Mas a realidade é que muitas pessoas iniciam o processo de forma autônoma, em função de todos os estigmas – destacados pelos especialistas – que afastam os serviços de saúde dessa população.
“A pandemia inclusive dificulta, porque a gente não está tendo acesso a trabalho ou algum tipo de apoio à terapia hormonal. Então, por exemplo, muitas manas que não têm acesso ao capital e ao dinheiro vão ter que fazer a interrupção do seu tratamento hormonal. E isso mexe com disforia, com autoconfiança”, lembra Xan.
Negligência do Estado fere
Por ser uma pessoa que vive com HIV, a professora também realizaria neste semestre exames para verificar seu sistema imunológico, já que precisou trocar o medicamento antirretroviral a pouco tempo. “Não ter acesso ao acompanhamento médico agora é uma das coisas que me deixa à revelia”, teme.
Além do cuidado com a saúde mental, o acesso ao tratamento de HIV também é uma questão que preocupa especialistas. Segundo o coordenador Área de HIV/Aids da Aliança Nacional LGBTI+, Augusto Menna Barreto, as implicações econômicas associadas a falta de um auxílio emergencial neste período, têm causado dificuldades no deslocamento até à rede pública, com muitas pessoas deixando-o de acessar por não ter condições financeiras.
“Isso é um perigo e um problema. É o que a gente fala, essa pandemia não está matando só as pessoas por coronavírus. Essa pandemia está matando por outros agravos que não estão sendo cuidados e por outras situações que são comuns e estão sendo negligenciadas”, afirma a especialista em saúde LGBT.