Sociólogo Victor Caglioni: A decisão do prefeito César Junior ‘não condiz com o processo civilizatório’

Vitinho

 

Entrevista de Raul Fitipaldi, para Desacato.info. 

O Prefeito de Florianópolis, César Souza Junior, afirmou que“A educação e a religião são atribuições da família. A prefeitura e o Estado não podem se intrometer, até porque há muitos outros pontos importantes a serem discutidos (dentro do Plano Municipal de Educação). Da minha caneta, nada que diga respeito à ideologia de gênero será encaminhado à Câmara. Assumimos aqui esse compromisso público”.

Desacato – Que significa isso para você como sociólogo e pedagogo?

  1. Caglioni*: Sociologicamente isso significa a omissão da parte pública a respeito da proteção e avanço social nas questões de gênero. Também mostra que as decisões políticas são pautadas não no bem comum da sociedade, no sentido de que possa haver uma ética moldadora de uma moral mais adequada ao exercício da democracia onde o estado parte da premissa que todos realmente possam usufruir dos mesmos “pesos” no que se refere ao respeito, leis-direitos civis, deveres etc…

A forma mais negativa dessa premissa apontada pelo gestor público é que ela não condiz sequer com o chamado “processo civilizatório”, por que afinal o estado sempre interveio na família, desde as primordiais pautas de higienização que visavam outras ordens de saúde pública, aos acordos de núpcias, de separação entre tantas outras pautas apontadas ao longo do despertar da modernidade. Muitas dessas pautas nasceram de setores dominantes inclusive.

O controle da sexualidade sempre pareceu caminhar junto com o controle daquilo que poderíamos chamar de “pulsão” da sociedade, é quase como ir moldando e controlando a capacidade de mobilização da mesma, no entanto em vertente, diríamos mais aos moldes do “partido democrata norte americano”, a gestão política e econômico -criativa do corpo+mente tem progressos maiores (incluso no consumo e no fortalecimento do poder) quando há maiores liberdades individuais, de sensação de liberdade, e portanto cada um é responsável por sua vida e pela corrida do “ouro”, de ser bem sucedido etc… afinal quando você pode focar em outros objetivos, como carreira, consumo, tudo converge para o “progresso material” e o fortalecimento do poder já estabelecido, estão inclusos ai, o fortalecimento da mulher no mercado de trabalho e dos direitos LGBTs.

Na contramão desse processo que podemos chamar de expansão do capitalismo e da democracia (sugiro a Obra do Cientista Político argentino José Nun: La rebelión del coro: estudios sobre la racionalidad política y el sentido común” – Editorial Nueva Visión, 1989) visível em empresas de tecnologia, alas progressistas da igreja católica, anglicana, judaica entre outras; vem o conservadorismo de parte de sociedades, geralmente atreladas ao “capitalismo clássico” de setores mais antigos que ganham respaldo em setores emergentes, que desejam ascender as mesmas posições sociais, e claro tomam como referencia posturas de comportamento, de cultura não revogável (aquela que não vê sentido na juventude-contra cultura!).

Esse é um processo antiquado e que não combina com a imagem de cidade “cool” ou “descolada” que tanto vendem as agencias de turismo, que o tem no público LGBTs por exemplo um de seus principais consumidores.

Pedagogicamente falando: desde os tempos da graduação e baseados em inúmeros teóricos de várias ciências sociais, pedagógicas e psicanalistas discutíamos o quanto o exercício do poder, via força física ou de coação jurídica (ou a falta dela) serve como uma forma de educar a população, que “conosco ninguém pode!”, que melhor não mexer com “esses grandões”, ou seja, ensina-se através do aparato estatal e midiático que há gente poderosa “contra qual não se deve contestar”, quando na verdade, essa “gente poderosa”, só detém o poder porque nós autorizamos socialmente que assim seja. Então temos uma pedagogia de opressão, em que não se pode demonstrar que o poder concedido por nós deve ser usado de forma a propiciar o progresso social-econômico de toda população,no entanto parafraseando Paulo Freire, seria um tanto ingênuo pensar que um movimento diferente possa vir de “cima para baixo”.

Pensar em gênero não retira direitos, não deseduca ninguém, não prejudica em absolutamente nada os setores que hoje fazem parte do status quo, aliás uma maior abrangência de direitos, de entendimento da diversidade humana, é uma corrente contínua que beneficia absolutamente a todos em uma sociedade, inclusive aqueles resistentes a esse progresso democrático. O problema é que mexemos com o “poder” e o “medo de perdê-lo”.

Desacato – O Prefeito está atuando contra o interesse comum que determina a laicidade dos poderes públicos?

  1. Caglioni – Infelizmente, sim! Do ponto vista do processo democrático passa por um maior esclarecimento que nós humanos temos diferentes formas do exercício de nossas individualidades e claro da sexualidade. O Estado partindo da premissa da laicidade deve garantir a todos os cidadãos, um mesmo nível de direitos e obrigações para o convívio em sociedade. Não faz parte de um processo democrático, nem dos conceitos mais primários do direito, o tratamento diferenciado dos cidadãos, ainda que uma democracia jovem e com capitalismo de desigualdades potencializadas, tenha dificuldades com todos esses conceitos e faça claras distinções entre indivíduos.

O público então deve prezar para que os indivíduos possam discutir, refletir sobre o que o mundo apresenta aos mesmos, com segurança, (obviamente não há espaços aqui, para defender que qualquer um assuma um discurso extremista-radical, que atue de forma a prejudicar o próximo e que o mesmo fique impune de atos em contra seus semelhantes) mas o acesso à reflexão, à liberdade e segurança do exercício da mesma deve ser garantido aos indivíduos e isso passa pelo Estado, pela laicidade do deste.

Desacato – Qual o prejuízo social desta interferência?

  1. Caglioni – Um dos prejuízos, é que tapa-se o sol com a peneira, no que diz respeito à existência de uma demanda social, que será cada vez mais evidente e como dissemos vai em contra ao que a própria indústria midiática relata da sociedade local. A falta de possibilidade de reflexão do tema, vai acentuar discursos que julgam pessoas, que não agregam não somam, não juntam, não pacificam os setores da sociedade.

Uma das premissas da grande maioria das correntes filosóficos religiosas é a educação para a paz, e ignorar setores da sociedade, sejam eles referentes a gênero, classes sociais, religiosos etc… é uma das razões iniciais para a segregação social, quanto maior for a segregação, maior a violência e menos paz todo o coletivo terá.

Então como forma cíclica, a diminuição da segregação social em todas essas vertentes, é fator determinante para o exercício da democracia, mais próxima portanto de se tornar uma comunidade, algo tão bonito e característico em vários bairros de toda a região de Florianópolis. Na corrente contrária quanto maior for o controle e expansão das segregações, maiores são as possibilidades de processos ditatoriais gestionarem a sociedade, ainda que falamos num macro, esse processo é sentido pela população desde a perspectiva local.

Desacato – Quanto de preconceito com as pessoas com outras orientações (e os diversos ismos) que legitimamente representam a diversidade social pode esconder esta postura do Executivo Municipal de Florianópolis?

  1. Caglioni – Talvez, podemos assumir como raciocínio que: sim, há evidentemente posturas de alguns lideres políticos, pautadas em suas crenças que legitimam preconceitos, explicito em diversos discursos de políticos em todo o mundo que não é diferente no Brasil.

Como é conhecido em todo o mundo, o Brasil é um dos países onde a diversidade (inclusive sexual) é estampada nas ruas, E essa diversidade é refletida na composição de nossas famílias, que majoritariamente não são compostas pela tradicional ordem; um homem, uma mulher, crianças e animais de estimação.

Esse tipo de posicionamento portanto, não faz jus à realidade de grandes parcelas da população, é um contra senso.

No entanto é preciso ficar atento às questões de ordem política, porque quando há poder, dinheiro e outros fatores que caminham próximos desses, historicamente as convicções em nosso país, são negociadas. Quer dizer, é possível que para alguns gestores talvez as questões de gênero, não importam realmente em suas convicções e poderiam ser trabalhadas sem qualquer empecilho, mas em troca de apoio discursivo, econômico entre outros, esses são ignorados e/ou combatidos, independente se toca ou não em feridas próprias.

Desacato – Por que têm tanto poder de decisão as instituições religiosas majoritárias, como o catolicismo e os setores evangélicos, em matérias que lhes são alheias de direito, embora não de postura confessional?

  1. Caglioni – As instituições religiosas são encarecidas de poder por quem à elas conferem sua fé e o direito de falar por elas, mas não são as instituições religiosas que exercem esse poder, são líderes que assumem em seus corpos e falas posicionamentos. Há uma quantidade de pessoas religiosas de diversas correntes que não concordam com os posicionamentos inflamados de alguns líderes religiosos mais conservadores contra grupos e ou ações sociais que extirpam as vítimas desse processo de segregação; são pessoas que tem na fé e em suas instituições espaços de sociabilidade, de amizade.

 No entanto, quando esses líderes agregam a sua imagem e/ou a de outros políticos a essas filosofias de vida, encontradas como “conforto” pelos indivíduos em suas religiões, essas pessoas institucionalizam que estes são portadores dessa boa nova, que “lhes fazem bem”, o que para eles são caminhos, possibilidades de suportar a vida, de dar sentido a mesma e tentar ser feliz etc… E isso é muita coisa para a grande maioria das pessoas.

O representante, aquele que “fala e orienta” para esses caminhos, tem o respaldo discursivo e até afetivo da maioria dos fiéis dessas instituições. Uma vez que um discurso ganha “rosto” para ele ser institucionalizado é um estralar de dedos, agregue a isso muitas possibilidades financeiras e bingo, temos em mãos o “poder” concedido. E com raras exceções, o poder sempre visa mais poder!

Desacato – A vitória, segundo o Pastor Everson Mendes é uma vitória da família e do povo crente em Deus. Para você quem é o vitorioso aqui e quem o derrotado, se os há?

  1. Caglioni – Conforme dito anteriormente, quando temos avanços sociais, isso inclui a maior reflexão sobre as questões de gênero, sobre o formato de nossas famílias, todos saímos ganhando, porque a questão envolve absolutamente a todos. Nesse sentido, não há ganhadores.

Quando pensamos no processo de gestão de poder, de status quo ganhou o conservadorismo, que ignora o fato que todos podemos ser crentes em Deus, inclusive todo o setor da população que é segregado com esse posicionamento, ignora que família é formada por elos afetivos e não biológicos, basta ver o posicionamento da grande maioria dos indivíduos adotados em relação a seus pais adotivos, assim como o alto quadro de “desentendimento” que muitas famílias tão somente geneticamente concedidas, tem nos dias atuais. Além é claro de que não é preciso ser muito observador para perceber que os lares brasileiros são compostos por formações familiares diversificadas.

É claro que todas estas formas de família, passam por desentendimentos e todas podem crer em Deus por exemplo, por tanto, família é formada por laços afetivos e em suas condições essenciais são “iguais” sejam quais forem suas formalidades, e ai caberia perguntar, sobre a premissa da democracia, em que consistiria uma vitória perpetuar a ignorância coletiva sobre algo tão humano como o gênero, como a sexualidade, se não somente conservar um tabu!

Desacato – Beneficia à construção saudável e ao desenvolvimento da família esconder a existência de diversas orientações sexuais, e mesmo, ocultar as questões de sexualidade, ou implica em risco e exclusão, em particular para as famílias pobres cujos filhos vão à escola pública?

  1. Caglioni – Então, sobre as premissas abordadas antes, temos a evidencia que a não abordagem reflexiva sobre a sexualidade humana, sobre gêneros, propicia a propagação da falta de conhecimento coletiva sobre o tema, que por sua vez resulta no fortalecimento das bases sociais que sustentam a segregação social de “diversidades” e segregações acentuadas não combinam com o fortalecimento da democracia.

E uma vez que estamos tratando de estado, o alunato da escola pública é o público primeiramente afetado. Ainda que seja possível ver algum progresso no ambiente escolar público, por parte de um professorado que vem mudando pouco a pouco suas posturas

Fica a mercê o pobre por sua condição econômica desfavorável (inserção laboral, estudos, uniões civis, exploração sexual…)

Desacato – A colega Elaine Tavares sentencia que, talvez, o que interesse ao prefeito ao assumir esta postura é perpetuar a ignorância. Você vê desse jeito, ou tem mais por baixo do tapete?

  1. Caglioni – Penso que, em relação a aquilo que refletimos sobre a pedagogia do opressor, Elaine tem razão em sua fala, afinal é bem mais fácil gestionar, governar, ter poder, quando o quadro social e de desconhecimento das condições de humanidade que todos temos for de menor conhecimento, maior ignorância.

Agora, pensando politicamente, estamos tecnicamente a um ano das próximas eleições, ter apoio de líderes que estão institucionalizados por seus fiéis, pode ser mais promissor que ter mulheres, a comunidade LGBTs e outras possíveis minorias como apoio. É claro que esse é um risco, afinal, Florianópolis já é uma região que determinadas minorias não são tão minorias assim no sentido de números mesmo! E determinadas pressões políticas desse viés podem resultar em “tiros no pé” numa gestão futura, onde o que está debaixo do tapete, inevitavelmente vem a tona, vide o Congresso Nacional.

Desacato – Suas considerações finais, por favor…

  1. Caglioni – Na contramão do próprio desenvolvimento capitalista Florianópolis poderia tornar-se socialmente um polo de maior democracia, de menor segregação social, de um processo político educativo referencial, afinal essa possibilidade combina mais com o próprio funcionamento da cidade, que já possui vários exemplos de dinamismo (inclusive educativos) que identificam a cidade e seu povo em vários lugares do mundo, (ainda que existam tantos outros pontos a serem trabalhados).

*Victor Caglioni é Cientista Social, Universidade Regional de Blumenau – FURB

Posgraduado em Pedagogia de las diferencias pela Facultad Latino Americana de Ciencias Sociales – FLACSO  Unesco, Argentina.

Mestre em Sociologia, Universidad Nacional General San Martin, (conveniada a UFRGS-UnB), Argentina.

 

Foto do arquivo do entrevistado.

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