Sob comando militar, Incra já vive censura interna

Cnasi.- Um dia após o aniversário do golpe de 1964, a censura parece ter voltado a se instaurar nos órgãos públicos federais. Dessa vez, o alvo foi notícia divulgada na rede de comunicação interna do Incra, denominada incranet. A postagem, que comunicava aos servidores o lançamento do livro da professora aposentada Áurea Oliveira Silva, foi retirada do ar menos de uma hora após a publicação por solicitação do gabinete, sob o comando do general João Carlos Jesus Corrêa.

Antes
Depois

A intenção do texto era divulgar o evento e o trabalho da autora, mas a temática parece ter incomodado a cúpula militar. Com o título “O Estado Autoritário e a Pedagogia do Silêncio – 1964-1979”, o livro aborda como a população foi ensinada a calar-se durante os anos de repressão, com enfoque na realidade catarinense. O texto de divulgação trazia o testemunho da autora, que foi presa, exilada e retornou ao Incra após a anistia, em 1986. Embora trouxesse elementos oficiais da memória da instituição, como a reintegração da autora ao quadro do Incra (disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/3561410/pg-23-secao-2-diario-oficial-da-uniao-dou-de-11-08-1986?ref=previous_button) após processo julgado pela comissão interna de anistia (constituída pela Portaria/INCRA/P/n9 204/86 alterada pela Portaria/INCRA/P/n9 321/86), a divulgação do conteúdo não foi avaliada como de interesse aos servidores do Incra.

A atitude parece convergir com a estratégia da atual gestão do executivo federal, que busca esconder fatos históricos do passado, cobrindo-os com um manto de Fake News divulgadas através das redes sociais.

Confira, abaixo, o texto na íntegra:

Servidora aposentada lança livro em Florianópolis/SC

Áurea Oliveira Silva, servidora aposentada do Incra em Santa Catarina, lança nesta segunda-feira (01/04) o livro “O Estado Autoritário e a Pedagogia do Silêncio – 1964-1979”. O evento acontece às 19h30, na Galeria de Arte Ernesto Meyer Filho, localizada na Assembleia Legislativa de Santa Catarina.

Áurea Oliveira Silva

A obra aborda a repressão ocorrida no período retratado e traz muito da vivência da própria autora. Áurea ingressou no Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) em 1966 e atuou nos assentamentos do interior do estado do Rio de Janeiro, porém, foi perseguida pela ligação com as Comunidades Eclesiais de Base, o que a fez deixar o trabalho. Tal condição foi reconhecida por comissão de anistia instituída no Incra em 1986, que culminou com a readmissão da servidora aos quadros da autarquia.

No período em que esteve ausente da função pública, foi presa pelo Departamento de Ordem Política e Social. Transferida para a Operação Bandeirantes, foi interrogada e torturada por dez dias. “Pior de tudo era ouvir que ninguém sabia onde eu estava e que iria desaparecer ali”, revela.

Áurea cita desaparecidos políticos e conta que no seu caso foi liberta por não ter envolvimento com as guerrilhas, foco central da busca por “subversivos” na época. “Eu não era ligada a partidos políticos, apenas tinha uma inconformidade com as diferenças sociais que eu observava desde a adolescência na Bahia”. Na década de 70 foi exilada no Chile e posteriormente emigrou para Canadá e Moçambique, retornando ao Brasil com a anistia em 1980.

No Incra, a educadora pôde contribuir para a redução das desigualdades sociais que tanto a incomodavam com a implantação de assentamentos em Santa Catarina, atuando no desenvolvimento de projetos da reforma agrária até se aposentar, na década de 90.

Pedagogia do silêncio
Lançado pela editora Insular, o livro é consequência da dissertação de mestrado “Aprender a calar e aprender a resistir: a pedagogia do silêncio em Santa Catarina”, defendida pela pedagoga no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e aborda como os indivíduos em Santa Catarina responderam à repressão instaurada pelo regime militar na época retratada. Amparada em autores como Antonio Gramsci e Paulo Freire e compreendendo a educação em seu sentido amplo, “que não se dá somente nos bancos escolares”, a autora trabalha o conceito da educação relacionada ao silêncio (a pedagogia do silêncio) e seus desdobramentos: a coerção e a resistência.

“No livro analiso como a ditadura proibiu a voz horizontal das organizações sociais, utilizando os conceitos do cientista social argentino Guillermo O’Donnell, e como surgiu então a voz oblíqua”, explica Áurea. A autora complementa exemplificando a voz oblíqua como as poesias e músicas que criticavam a política na época utilizando metáforas.
Aos 75 anos, Áurea ainda mantém firmes seus ideais e a vontade de contribuir para a memória do país, planejando um novo livro, sobre suas experiências, para breve.

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