Por Francieli Borges, Porto Alegre, para Desacato.info.
Mês de calor esplêndido e o sol conseguia subir o hálito do chão. Naquela tarde, o dia último, o conjunto de pessoas na frente do TRE desfilava meio quarteirão; era gigantesco, portanto, na cidade mínima. De vez em quando apareciam agricultores silenciosos e magros, espiando o prédio branco. Outras vezes, era a própria fila do desejo único, no silêncio, que se detinha e ficava olhando. Tinha dezesseis anos e julguei imoral organizar um debate entre políticos locais, na escola, e ainda não ter título eleitoral. Eu era a fila também.
Na época, meu grande bordão era achar péssimo que tão jovens fossemos considerados ineptos para dirigir simples automóveis, mas reconhecidos tranquilamente como eleitores com decisões em tão alta esfera. Uma desproporção de importância, sim, senhor. Um elemento de perturbação gigante. Uma ameaça à ideia de responsabilidade social. Naquela tarde, voltei para casa orgulhosa, cara satisfeita, imaginei receber aprovações dos transeuntes. Assumi um ar competente e límpido porque aquele documento na minha mão correspondia a grandes resoluções de problemas gerais.
Acreditei e vivi em uma ideia florida de representatividade. Às vezes minguada, mas presente, apesar de tudo. Era problemática, claro, ainda assim, vivemos bons momentos juntas. Por enquanto, aquela capa que ela usava, o papel verde plastificado, é só uma lembrança moribunda na gaveta – talvez adubo para outra ilusão que me irão plantar. Guardei aquele dia de conteúdo otimista e grave que hoje me é estranho. Ignoro em qual parte desaguou, e se não tivesse testemunha, poderia bem ser sonho.
Nessa quase década de inércia perturbada de tempo em tempo, há estremecimentos que surgem fantasmas no meio de notícias do contexto político recente, fixadas pela repetição de expressões sem conteúdo como grupelhos, anarcóides, lulopetismo. Dias em que, do outro lado, a própria noção de desobediência civil é confusa e esvaziada. Em comum, ouço gritos fantasmas contra políticas de governo; que são, na realidade, contra políticas de Estado.
E assim vamos.
Aquela imagem da qual me ocupei antes, quentinha e acolhedora na recordação, dá espaço para algo que se desenvolve como animal. E se desdobra. E é imenso. Olhando por dentro, julgo às vezes que não me atreverei a percorrer tão grande incógnita. Estou convencida, no entanto, que no Brasil cresce algo que ainda não tem nome, que precisa dialogar, unir quem quer recuperar o espaço perdido; e as urnas, como as concebemos agora – sem independência de classe, sem protagonismo popular – não têm a ver com isso. Hoje, a democracia é uma palavra-valise de ocasião.