Por Joana Gorjão Henriques (Texto)
Jorge Andrade só fala crioulo. Sabe português mas escolhe a língua cabo-verdiana como meio de comunicação para afirmar a sua africanidade e marcar a distância do passado colonial. “O crioulo é uma arma de intervenção”, explica no estúdio da Rádio de Cabo Verde, onde dirige o único programa de rádio que fala das questões africanas. “A nossa capacidade de perceber, comunicar, pensar, sonhar é toda em crioulo. A gente sente-se livre quando se expressa em crioulo, e se sente oprimido quando fala a língua dos colonos.”
Clarificando, Jorge Andrade não é contra Portugal, nem contra os portugueses ou contra a língua portuguesa — é contra o imperialismo cultural europeu “sobre África e os africanos”. Nem sequer tem problemas em falar português. Mas sempre que puder usa o crioulo. Sempre que consegue, força os portugueses a tentar ouvir e falar em crioulo.
Ele é uma figura carismática e isso percebe-se pela forma como chega ao bairro Ponta d’Água em Junho deste ano, se senta em plena rua em frente a um grupo de jovens e fala das questões raciais qual pastor a espalhar uma mensagem, cheio de convicção e fé. É um homem que não está com meias palavras para dizer o que pensa. Tem umas longas rastas, presas numa espécie de barrete branco, que lhe cai para a camisa branca e gravata escura.
Talvez por sabermos que viveu vários anos nos Estados Unidos, ao vê-lo em conversa com os jovens do bairro, lembramo-nos de figuras como Martin Luther King. Mais facilmente recorre a uma palavra em inglês do que em português para explicar melhor o que pensa. O grupo de cerca de dez jovens olha-o e ouve-o atentamente. A noite vai caindo, mas nem por isso há desmobilização ou desinteresse — pelo contrário, a conversa aquece à medida que mais gente se junta no passeio. “O interessante é que os africanos que estão fora do continente têm mais conhecimento sobre África do que nós que estamos cá”, comenta. “O nosso conhecimento de África é quase nulo”, lamenta, quando fala para os jovens. “A presença de África dentro da Bíblia, por exemplo, como é?”
Jorge Andrade falará do papel da religião e das novas igrejas, que ficarão mais lotadas se não se conseguir passar a cultura africana aos jovens, acredita. “Se África é uma religião, eu sou um pastor”, comenta. “Mas cada um é pastor da sua própria consciência.”
A missão diária de Jorge Andrade, que anda de bairro em bairro de forma discreta, é espalhar a palavra sobre a africanidade entre os jovens que têm sido bombardeados com as imagens miserabilistas de um continente onde existiu uma História antes de os europeus lá chegarem.
Aparece uma mulher no grupo, Keyla. Vem aprender sobre África e pan-africanismo, algo que não se ensina na escola. Um dos jovens, Tosh, 35 anos, explica que acha interessante o ensino e a narrativa oficial, desde cedo, terem passado a ideia de que os cabo-verdianos são diferentes dos “irmãos da costa ocidental”. Mandados para postos de chefia em outras colónias pelos portugueses, “até hoje os cabo-verdianos acham que não são africanos, que são mais inteligentes, mais sábios do que os irmãos que estão no continente”. Isso “veio desde a colonização, foi-nos incutida essa ideia. Hoje está a repercutir-se na nossa sociedade. Temos um grande problema de identidade. Mesmo que a História o mostre, o cabo-verdiano rejeita porque está no nosso DNA desde a colonização. Essa é a sociedade que temos, uma autêntica confusão”.
Tem havido ao longo dos anos várias definições de Cabo Verde como um país que não está nem em África nem na Europa. Muitos dos próprios cabo-verdianos incorporaram este conceito, ao ponto de essa ambiguidade fazer parte da definição de identidade que é descrita por algumas pessoas. Com isso vem a questão da mestiçagem, que Jorge Andrade define como “uma violência”: “Na hora em que se pensa em mestiçagem, pensa-se automaticamente em violação sexual” de uma africana por um europeu. “Na nossa cor de pele, é constante a lembrança do impacto do colonialismo e da escravatura”, afirma.
Uma das bandeiras de Jorge Andrade é o ensino da História de Cabo Verde antes da chegada dos europeus a África: “África tinha milénios de civilizações grandes e fortes”, contextualiza. “Essa é uma falha grave, Cabo Verde fala da sua identidade a partir da chegada dos europeus. Como é que um povo pode construir a sua história num acto de degeneração? Nunca um cabo-verdiano se pode sentir livre quando a sua História começa com a escravatura — fica com crise de identidade quando pergunta: quem sou eu?” Um pequeno exemplo: “Havia o império do Mali, séculos antes da chegada de portugueses; África teve a sua renascença antes, com o Egipto.”
Jorge Andrade não tem dúvidas de que a distanciação que os cabo-verdianos fazem de África é uma questão racial. “Enquanto houver supremacia branca, todas as coisas estão confundidas.”
Ele define-se como um afro-cabo-verdiano. Lembra que no arquipélago há sangue do Senegal, Gâmbia, Mali, Guiné-Bissau — a mistura não é apenas Cabo Verde e Europa. Acha determinante transmitir histórias da História aos jovens cabo-verdianos para repor uma versão que é silenciada — e para elevar a auto-estima, fazê-los levantar a cabeça.
“Somos africanos, obviamente. Mas, na prática, qual foi a política aplicada desde 1975 em defesa dos interesses africanos? Nenhuma. O Ministério da Educação que modelo de educação tem?” Da Saúde ao Direito, as referências vêm todas de Portugal — e as soluções não são, nem podem ser, as mesmas porque os problemas africanos são diferentes dos europeus.
A ambiguidade é tal que um cabo-verdiano chega a uma agência de viagens na Praia, a capital, na ilha de Santiago, e só vê pacotes turísticos para a Europa — nem um para África, acusa. “Sabe que não havia mapas de África em nenhuma livraria em Cabo Verde? Como é possível num país que é um exemplo de democracia não ter um mapa só de África?”
A projecção que os europeus fazem sobre o africano, o domínio económico, social, político e cultural que exerce influência e determina a capacidade de desenvolvimento ou de subdesenvolvimento com base na raça é o que significa para ele o racismo. “Malcolm X dizia: ‘Quem vos ensinou a odiar a cor da vossa pele? Quem ensinou a odiar o formato do vosso nariz, da vossa boca, da textura do vosso cabelo? Foi o mesmo homem que quer continuar a ter domínio sobre vocês’.”
A ambiguidade cabo-verdiana foi produzida e alimentada pelos portugueses — até hoje. Em 1822, todos os habitantes do império colonial português foram considerados cidadãos; o estatuto do indigenato foi aplicado até aos anos 1960 em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau — era indígena a maioria da população nativa, à excepção dos assimilados, que tinham de cumprir determinados requisitos como comer à mesa com garfo e faca e falar português. Porém, foi reconhecido um estatuto especial a Cabo Verde pela “maior mestiçagem e proximidade de Portugal”, e em 1947 os cabo-verdianos seriam reconhecidos como cidadãos. Foram também enviados para a Guiné-Bissau para fazer parte da administração colonial. Por outro lado, assumiram o papel inverso nas roças de São Tomé e Príncipe, para onde foram fazer trabalho forçado quase até à independência. Esta é, porém, uma narrativa que tem sido bastante silenciada na história cabo-verdiana.
Como escreve António Tomás na biografia sobre Amílcar Cabral, O Fazedor de Utopias, “as várias administrações portuguesas nunca souberam claramente o que fazer de Cabo Verde”. “Enquanto a Guiné, Angola e Moçambique eram inequivocamente colónias de indigenato, Cabo Verde era um caso à parte. Os seus naturais eram civilizados e o arquipélago, legalmente, estava a meio caminho entre a colónia e a região adjacente, como a Madeira e os Açores. E era mais por razões logísticas do que políticas que nunca tinha sido dotado de um estatuto semelhante ao das ilhas portuguesas do Atlântico.”
África tatuada no braço
Edson Liver, 23 anos, tem o mapa de África tatuado no braço. Está a estudar Ciências da Educação e quer pôr os assuntos africanos nos currículos escolares. É sábado, mas dia de actividades na Universidade de Cabo Verde, e Edson fala-nos da sua paixão pela africanidade ao som da música que vem do pátio. Tem ido a reuniões com Jorge Andrade. Em muitos pontos, o seu discurso cruza-se com o dele. “Foi através dele que hoje reconheço a nossa história. A única rádio que tem um programa africanista é a RCV+. A única!”
Aliás, fez a tatuagem depois desse despertar. “Os conteúdos que estudámos na escola eram sobretudo europeus. Precisamos de afirmar a nossa identidade. Somos africanos geograficamente e politicamente, mas não temos a base para nos reconhecer como tal”, explica sobre a tatuagem que fez. Sente que na sua geração há um desinteresse por essa vertente da identidade cabo-verdiana. Não se fala do herói da independência Amílcar Cabral e de outros heróis nacionais como ele acha que se deveria falar; a consciencialização dessa africanidade é o trabalho mais complicado, reconhece.
Aos 24 anos e licenciada em Ciências Sociais, Evandra Moreira está a fazer um estágio no Instituto Cabo-Verdiano para Igualdade e Equidade de Género e a trabalhar como assistente de pesquisa. Também ela tem consciência de que existem problemas raciais e, apesar de considerar que não há racismo em Cabo Verde, a verdade é que se apercebe de que os cabo-verdianos têm atitudes de discriminação para com os africanos continentais. “A forma como tratamos os europeus e os irmãos africanos é diferente”, observa.
A valorização do que é ocidental e a desvalorização do que é africano nota-se na forma de os cabo-verdianos se vestirem, se pentearem — tudo remete para o Ocidente. “Até na forma de falarmos. Não nos preocupamos com as línguas das vizinhanças, é indiferente os pratos típicos, não nos preocupamos em ter relações de proximidade com os países africanos, mas queremos abraçar o que vem de fora e ter relações com a União Europeia, o Brasil, a América…”, critica.
Preocupa-a a linguagem usada, por exemplo, para elogiar mulheres — “é preta mas é bonita”. Ainda que seja comum as pessoas dizerem que não são racistas, a prática revela outra realidade, defende Evandra. Exemplo, ouvido na rua: no imaginário nacional um turista, só porque é de pele escura, então não é turista; turista tem de ser de pele clara, cabelo comprido e liso…
Banidos do testamento
O historiador António Leão Correia e Silva (n. 1963), actual ministro do Ensino Superior, Ciência e Inovação, tem uma visão mais optimista de Cabo Verde: “Das poucas sociedades de passado colonial, de passado escravocrata, que conseguiu desmontar, desconflituar a questão racial”, segundo ele. “Ninguém tem mais ou menos chances de ascensão social ou profissional ou política por ter a pele mais clara ou mais escura”, defende. Não existe na sociedade cabo-verdiana uma questão racial, o que não quer dizer que não existam resquícios disso. De uma pessoa bem-sucedida diz-se que se tornou branca, por exemplo. “O branco ficou uma metáfora do sucesso.”
Apesar disso, defende que o mito luso-tropicalista de que a colonização portuguesa é integradora e nela a “questão racial se diluiu” não é rigorosa “à luz de uma análise histórica”. “O racismo é uma ideologia oficial portuguesa e a mestiçagem foi combatida como política de Estado.”
Também um dos autores da História Geral de Cabo Verde, Correia e Silva, estudou vários testamentos de morgados, e nesses documentos notou “uma clara hierarquia entre filhos”. “A ideia era passar ao filho varão, legítimo e branco. Quando eram as mulheres a herdar, a questão era mais tensa — porque a defesa da mulher é a defesa da pureza racial; o homem pode ter filhos [com as indígenas], mas ficam na sanzala. Achava piada porque, em muitos testamentos, quando a mulher herdava, havia uma cláusula quase obrigatória — se casar com um homem preto, fica deserdada. A defesa da raça era uma coisa importante, porque a raça adquiria um valor simbólico.”
A sociedade é contraditória, mas não se pode dizer que, por causa disso, “como alguns querem concluir, não tinha uma ideologia racista: tinha”. Por outro lado, em alguns momentos, a mestiçagem foi uma estratégia de ascensão social. Durante o período da escravatura dizia-se que “a mulher que tinha paciência seduziria o branco para ter um filho, porque na escravatura o filho mestiço era um passo para a alforria — libertação do escravo — e, em casos mais raros, para o filho ser legitimado”.
A partir do século XVII, Cabo Verde deixou de ser um centro atlântico de distribuição comercial de mercadorias e de ter capacidade de atrair novos brancos, continua. Os brancos foram tendo filhos mulatos, “esses mulatos vão assumindo poder”: “Fala-se da ascensão do mulato, da ascensão do negro: não é sanzala que se torna casa grande, [o que acontece] é o abatimento da casa grande.”
Porém, o nacionalismo cabo-verdiano não apareceu por causa da questão racial, acredita. A reivindicação da independência ligou-se a uma especificidade cultural do arquipélago, que não estava a ser valorizada no quadro do império, defende. A geração do escritor Eugénio Tavares (1867-1930) acreditava num Portugal unitário, não num Portugal e suas colónias separadas. Essa geração “queria que o acesso aos cargos públicos não fosse objecto de discriminação pelo lugar de nascimento, pela raça”. A paridade tinha como fim des-racializar — “também tinha os seus aliados metropolitanos que defendiam o acesso à escola”. O historiador acrescenta: “A revolução de 1822 prometeu isso, quando veio a república de 1910 promete-se isso e vive-se em Cabo Verde um grande entusiasmo. Criou a ideia na elite de que ela era capaz. Como teve acesso à educação e como a sociedade se convence de que o capital escolar como acesso ao cargo público era muito mais seguro do que um investimento fundiário, a reivindicação pelo acesso à escola politiza-se muito cedo.”
A sociedade é essencialmente crioula mas compósita, conclui o ministro. “Às vezes, olhando de África continental, eles acham que Cabo Verde é demasiadamente euro-atlântico para ser África; olhando de uma Europa, é demasiadamente negro-africano para ser Europa. Talvez seja todas as coisas, talvez haja várias componentes, mas é uma África de fronteira”, defende.
Mito da mestiçagem
Há, porém, assimetrias regionais. Hoje, o senso comum atribui uma identidade imaginada à ilha de Santiago como aquela onde a população apresenta mais traços do continente africano, enquanto nas ilhas do Barlavento a população é vista como a mais intelectual, mais culta, mais próxima da Europa: os sampadjudo são os naturais das ilhas do Barlavento e os badio de Santiago.
Há um contexto histórico para isso. Por exemplo, São Vicente, uma das cinco ilhas habitadas do Barlavento, e considerada culturalmente a mais próxima da Europa, só seria habitada no século XIX, lembra, por outro lado, a historiadora Iva Cabral.
Na sua casa em Terra Branca, um bairro na Praia, a também reitora da Universidade Lusófona de Cabo Verde diz: “Isso de dizer-se que Cabo Verde é uma sociedade mestiça de pele não é verdade”, comenta. “É uma sociedade mestiça culturalmente, mas em termos de pele não. Quando Cabo Verde nasce, no início do século XVI, havia 200 vizinhos brancos na Cidade Velha e 5 mil negros. Por mais que o português fosse fértil, era muito difícil miscigenar tudo isso; em finais de século XVIII, havia 2% de brancos.” Depois da independência, “houve uma saída do fundo do poço de toda uma população negra que estava escondida” — o lado africano foi sempre silenciado.
Iva Cabral é filha de um dos maiores ícones da África lusófona, Amílcar Cabral. Tem tido um papel interventivo na gestão da sua memória. Pouco tempo antes de nos encontrarmos, tinha-se insurgido contra o facto de se ter equacionado transferir o mercado do Plateau para a área da Várzea em frente à Biblioteca Nacional, onde está a enorme estátua construída em 2000 em honra do “fundador da nacionalidade cabo-verdiana”. Achava essa mudança — assim como muitos intelectuais que levantaram a voz no mesmo sentido — um desrespeito pela memória “de Cabral”.
Comparando com personagens como o navegador português, Diogo Gomes, que terá chegado a Santiago no século XV e tem direito a uma estátua numa das zonas de destaque da cidade, perto do Plateau, Amílcar Cabral foi secundarizado, defendem alguns. A imagem mais vistosa do seu pai está, porém, desenhada na fundação com o seu nome, na Praia. É um mural em cores vivas, onde Cabral aparece com a sua boina e os seus óculos. No andar de baixo da fundação há fotografias, obras sobre a sua vida, obras suas. Carlos Reis, um dos administradores da Fundação Amílcar Cabral, também concorda que a memória de Cabral é maltratada no país. “Não se explica, não se desenvolve, não se aprofunda o suficiente Amílcar Cabral.”
Nascida em 1953, Iva Cabral editou em 2015 a obra A Primeira Elite Colonial Atlântica, onde analisa a formação da elite de Santiago. Comenta que é difícil falar em relações raciais em Cabo Verde hoje. “Historicamente, em Cabo Verde, a cor da pele depende da posição social. À primeira elite endógena chamava-se ‘brancos da terra’. Não diria que há racismo, o racismo é de classe. Depende da situação social em que a pessoa se insere. Em Portugal, quando ando no autocarro, nota-se a dicotomia branco-negro, a pessoa é julgada pela cor.”
A verdade é que “a elite cabo-verdiana se achava branca” e “superior à maior parte da população”. “A independência é que abre as portas à cultura africana, ao elevador social quando os camponeses têm a possibilidade de ir à escola — não havia essa possibilidade porque havia só dois liceus, um na Praia, que abre nos anos 1960, e outro no Mindelo, que é inaugurado em 1917.”
A determinada altura, Portugal quis fazer da elite cabo-verdiana uma faixa intermédia entre si e o resto das colónias — apenas da elite, porque o resto da população era maltratada, houve grandes fomes em Cabo Verde, lembra — e essa intermediação deixou marcas, não só no próprio arquipélago, analisa Iva. “Portugal pôs de lado a população de Santiago por ser negra, e escolheu a elite mindelense por ser mais próxima.”
Na ilha de São Vicente, onde havia um porto, a mestiçagem foi forte e a cultura europeia mais presente “porque não teve escravidão”, acrescenta Iva Cabral. “Quando o Mindelo aparece como cidade, já a escravidão está no fim. A cultura é diferente. Quando é para abrir um liceu, Portugal escolhe a ilha mais parecida culturalmente, onde há menos escravos e menos rebelião. Santiago era uma sociedade rebelde. Desde o início havia escravos e rebeldia.”
Cabo Verde é uma sociedade escravocrata — serviu de entreposto de escravos a partir do século XV — “que nasce racista”, diz Iva Cabral. E o inconsciente de uma sociedade escravocrata “é muito pesado”; ainda está presente o “problema de sermos africanos ou não”, justamente porque “quando se fala em África fala-se em escravidão e é todo o peso da escravidão que ainda existe no nosso subconsciente”.
Uma das consequências é que há um desconhecimento das raízes familiares. Os nomes africanos eram amputados, apenas quem tem família mista fica com acesso a informação do lado português. “Nós, cabo-verdianos, não conhecemos o nosso passado — a população não tem geração. O passado da minha mãe eu sei, vem de Trás-os-Montes, mas não conheço o passado do lado do meu pai. O nome conta. E aqui o nome foi retirado, a religião, as danças, as cantigas foram proibidas — tudo isso fica no subconsciente.”
Espelho para controlar a cor
No tempo da escola andava com um “espelhinho redondo” no bolso, um “instrumento precioso” para controlar o tom da pele e verificar se o Sol o estava a bronzear demais. Nascido na ilha de Santo Antão, André Corsino Tolentino, 69 anos, reformado da carreira diplomática desde 2013, e ex-combatente do PAIGC, conta-nos este episódio na sala de sua casa, onde há várias estatuetas africanas penduradas na parede. “A tonalidade da pele era um factor muito importante, portanto espreitava de vez em quando para verificar se estava a ficar mais branco ou mais negro. Porque era visível e esse critério tinha valor social e valor para as candidaturas ao serviço administrativo nas outras colónias. Lembro que as famílias eram classificadas de acordo com o tom da pele.”
Mestiço, Corsino Tolentino só tomou “verdadeira consciência” da questão racial quando estava em Portugal, onde foi tratado por “negro ou não branco”. “Aqui a gente geria a situação por um não-dito. Mas, quando vou para Portugal estudar, as pessoas vêem-me e dizem: ‘Mas este não é nosso, não pertence ao nosso grupo.’ Aí tomei consciência clara de que afinal não pertencia à comunidade branca e portuguesa.”
Acabaria por se envolver definitivamente na luta de libertação nacional, fazendo aquilo que diz “ser uma evolução entre evitar o sol e ter um espelhinho a desejar que a cor da pele seja o mais clara possível até [à tomada de] uma posição da assunção orgulhosa da africanidade”.
Corsino lembra que “a teoria colonial era muito baseada nas relações raciais”, mas hoje acha que Cabo Verde é “das nações mais integradas do mundo”. O ex-ministro da Educação é dos que defendem que existe uma noção de cabo-verdianidade em que todos sentem que pertencem a uma comunidade. Mas discorda da ideia de que o arquipélago está entre a Europa e a África — “se formos ver a geografia e a evolução sociológica, vamos ver que fica sim entre África e a América do Sul, e humanamente tem Portugal na sua composição; isso é que criou este caso singular”.
O povoamento de Cabo Verde começou no século XV e levou 400 anos desde o povoamento da primeira ilha, Santiago, à última ilha, Sal, lembra. A utilização do critério racial para impor um poder político foi subtil, sobretudo quando comparado com Angola ou Moçambique, onde havia o estatuto do indigenato, defende o ex-embaixador.
A partir dos séculos XVIII/XIX, o arquipélago foi apresentado como “algo que mais tarde veio a ser utilizado por Gilberto Freyre no luso-tropicalismo”, e Cabo Verde servia de “prova de que o sistema não era discriminatório e nem sequer justificava chamar-se ‘colónia’”, continua. “O regime colonial caiu na armadilha da teoria da integridade territorial. Desde cedo Portugal pretendeu ser diferente dos outros impérios coloniais europeus e estabelecer a integridade do Minho a Timor. Uma das estratégias foi utilizar Cabo Verde dentro do contexto global do império português: durante muito tempo, o cabo-verdiano foi visto como uma espécie de adjunto do sistema colonial, uma espécie de cúmplice para dominar as outras colónias — em Angola e Moçambique, os cabo-verdianos são conhecidos como chefes de posto, trabalhadores das plantações, patrões. Isso continua a custar-nos muito, ainda hoje nas nossas relações com os vizinhos da África ocidental atiram-nos com isso à cara.”
Choque em Portugal
De 1998 a 2005, o sociólogo Francisco Avelino Carvalho viveu em Portugal a pensar que ia concluir o curso a uma sexta-feira e regressava no sábado. Mas descobriu Lisboa e foi ficando. Agora com 45 anos, Francisco Carvalho diz que as questões raciais em Cabo Verde não são problemáticas nem centrais.
Aliás, pelo contrário: existem todos os ingredientes para a sociedade cabo-verdiana ser revanchista porque o sistema colonial foi de uma enorme violência, mas ele defende que conseguiu “dar a volta a esses condicionalismo históricos” e desenvolver relações sociais entre diferentes grupos que “não são vincadas pela raça”. “Para mim, a questão dos dois grupos, sampadjudo e badio, merece de longe muito mais atenção do que as questões raciais em Cabo Verde. A forma como as percepções são construídas podem desembocar em processos muito mais complexos.”
Não foi em Cabo Verde mas em Portugal que o director-geral das Comunidades descobriu que “era negro, preto” — como Corsino Tolentino, anos antes. “Dentro da nossa forma de ver o mundo, do nosso quadro mental, a questão racial não vem ao de cima. Em Lisboa, sentimos que as questões raciais são importantes e tornam-se como elementos estruturantes da organização da reacção entre as pessoas em determinados contextos.” Não faziam, porém, parte do seu quadro mental vários factos com que se deparou em Portugal, como “um português racista que muda de rua quando se apercebe de que caminha em direcção a um negro”; estar sentado num autocarro e o lugar ao seu lado ser o último a ser ocupado; ideias feitas de que determinadas características negativas estão associadas à cor da pele. “Chegando lá, deparo-me que havia um desencontro entre a minha representação e a que encontro.”
O que existirá, então, na sociedade cabo-verdiana que o levou a imaginar um Portugal que não existe? O luso-tropicalismo vingou em Cabo Verde? “O que poderá ter acontecido é que não chegámos a ter produções reflexivas sobre essa situação vivida, impingida pelo sistema colonial.”
Falar de colonialismo brando não faz para si sentido, como também não faz sentido falar de racismo subtil — são “jogos de palavras”. “Para quem discursa, é brando e subtil; mas pode ser a pior forma de violência para o indivíduo que é objecto desse discurso. O grau de subtileza ou de violência é tremendamente subjectivo e tem que ver com aquilo que as pessoas sentem.”
Apesar de ser uma questão fundamental, o racismo não é abordado na escola, diz. E deveria. Até para desmontar questões como a utilização da raça feita pelo sistema colonial e a associação dos africanos a preconceitos raciais — isso levou, em muitos casos, à dissociação da identidade cabo-verdiana ao continente africano.
Há, de resto, um inquérito feito aos cabo-verdianos em que boa parte não se considera africano — e, desses, muitos são das ilhas do Barlavento, lembra. “É um tremendo absurdo um cabo-verdiano considerar-se não africano — e são bastantes. Tem que ver com ideias preconceituosas herdadas do período colonial; a ideia primária que se criou do africano é a ideia de um bruto, violento, inadaptado, incapaz, selvagem.”
Limitação geográfica
Artista plástico reconhecido internacionalmente, hoje também deputado do partido MpD (Movimento para a Democracia), Abraão Vicente (n. 1980) criou recentemente uma série de quadros a partir da ideia de passaporte. “O nosso documento diz-nos onde podemos ir, quem podemos ser e que expectativas podem ter em relação a nós”, explica. São várias telas em que pediu passaportes a amigos e usou o dele para servir de metáfora do que tantos africanos hoje passam. “Vejo racismo nas limitações que advêm de seres de onde és; é muito mais do que a cor da pele”, afirma.
Por achar que o racismo se trata também de uma questão burocrática que limita o acesso a territórios geográficos de pessoas “que viveriam em igualdade de circunstâncias com quem lá está”, criou esta obra. Estudou em Portugal e apenas quando tinha de renovar o visto ou mostrar documentos é que se sentia estrangeiro. Acabou por pedir a nacionalidade portuguesa, por via dos bisavós, para não ter mais problemas. “Tenho dupla nacionalidade, mas em nenhum momento me sinto a representar Portugal. A minha nacionalidade é também uma questão burocrática, foi quase uma vingança perante as dificuldades que tive.”
Estamos na varanda do seu apartamento na Praia, um edifício relativamente novo para onde se mudou recentemente com a mulher, a cantora Lura. Nas paredes de casa estão obras suas e cartazes de concertos de uma das grandes estrelas da música nacional. “Os cabo-verdianos dizem-se não racistas, construímo-nos como povo a partir da claridade como mestiços. Mas é uma falsa questão quando se conhecem as dinâmicas sociais de Cabo Verde e como nos relacionamos. Apesar de sermos supostamente mestiços, não sermos um país de negros e pretos como os demais africanos, Cabo Verde não pensa na questão racial só como questão de pele, ela é intimamente ligada ao exercício do poder e do poder financeiro. Vemos pessoas de cor negra que não se vêem como negros, vêem-se como culturalmente brancos. Há ilhas como São Vicente e Fogo onde essa questão é mais evidente. Quando fala de si mesmo, o cabo-verdiano vai sempre buscar o parente branco em vez de buscar o parente negro.”
Nas relações sociais, nota-se que as pessoas mais claras são tratadas com maior aceitação — nas instituições, na procura de trabalhos… Por outro lado, critica, as pessoas do interior de Santiago, mais escuras, são discriminadas. “O poder acaba por filtrar o negro. Ulisses Correia da Silva, presidente da Câmara da Praia, é o primeiro santiaguense preto a candidatar-se a primeiro-ministro. Todos os outros foram mestiços, mulatinhos.”
Estas distinções notam-se nas relações familiares, a maioria das grandes famílias apresenta-se como descendente de portugueses, analisa. “Não existe o negro cabo-verdiano. Ancoramos toda a nossa tradição familiar nos próprios apelidos portugueses. Até à independência, as grandes famílias eram portuguesas. Após a independência, construiu-se outra forma de consolidação do poder, que são as famílias que estiveram ligadas à luta pela independência.”
Ele, que é mestiço, claro, e só se sentiu negro quando foi para Portugal estudar Sociologia, sublinha que, mesmo “na parte artística, só era convidado para exposições de artistas africanos”, preenchendo a quota de cabo-verdiano. “O rótulo é desnecessário — um artista é um artista. A construção de lusofonia, da ideia de que somos herdeiros de alguma coisa, é feita em pressupostos que são demasiados frágeis para nós cidadãos minimamente informados. A nossa relação é sempre intermediada…” Olhando para o contexto dos outros países africanos lusófonos, Abraão Vicente analisa: “Como nação, ficamos com esta nostalgia um pouco idiota de acharmos que somos mais próximos de Portugal que os outros porque somos clarinhos, somos mestiços, não temos propriamente uma cultura africana enraizada.” Ora isso “é uma mera ilusão”.
Há dois anos escreveu um livro, 1980-Labirintos, em que referia justamente que “ser africano em Cabo Verde é um tabu”. Completa, porém: “Nitidamente, sou africano porque vivemos muito mais sob influência real de África do que da União Europeia. Mas dizer isso seria um erro porque saio à rua e vejo que somos sustentados pela Europa — todos os projectos são financiados pela cooperação europeia.” Ao mesmo tempo, duvida de que a mestiçagem hoje venda, que venda sobretudo essa ideia de “dizer que somos um pouco europeus e um pouco africanos”: “Nem os europeus nos compram nem os africanos: então, Cabo Verde está numa encruzilhada que é assumir a cabo-verdianidade não como construção histórica a partir de leituras cabo-verdianas mas assumir o batuque, o funaná.”
Os preconceitos para com africanos
No mercado de Sucupira, na Praia, podem encontrar-se muitos imigrantes africanos. É um espaço fechado, onde passa sempre imensa gente. Entra-se nos corredores estreitos e tudo se vende — roupa, bugigangas, sapatos, perfumes, incensos, ervas, fruta. A multiculturalidade africana sobressai, com as mulheres que usam os panos típicos de algumas regiões e os produtos da culinária africana à venda — frutos secos, malaguetas, milho, mandioca, batata-doce, grão, inhame, banana verde — ao lado de ténis de marcas anglo-saxónicas e de mulheres vestidas de jeans ou minissaia.
Em 2009, a antropóloga Eufémia Vicente Rocha publicou uma tese sobre xenofobia e racismo em Cabo Verde. Parte da sua pesquisa foi no Sucupira. Estudou sobretudo a imigração vinda do continente africano, que tem aumentado, e durante a pesquisa surgiram questões ligadas à sexualidade e à racialização. Dos imigrantes africanos, os cabo-verdianos diziam coisas como: “Têm um pénis muito grande, uma performance sexual alucinante a ponto de prejudicar as mulheres, escangalhar os úteros e passar doenças.”
Ao longo da sua pesquisa, foi ficando óbvio o tal imaginário identitário dos cabo-verdianos em que há a ideia de que são superiores aos outros africanos, reclamando por isso uma aproximação à Europa. Isso foi em parte instigado pelo próprio sistema colonial, construído à base de distinções raciais, sublinha. “Quando as elites e os claridosos [movimento literário que nasceu nos anos 1930 e revindicava o direito a uma identidade cultural autónoma ligada à cabo-verdianidade] reclamam da metrópole uma atenção especial, referindo-se à sua performance administrativa e à presença forte do ensino, querem uma posição especial. Por isso essa aproximação com Portugal e Europa. A intenção não era cortar relações com a metrópole, mas ganhar uma posição destacada. E aí surge também a questão de os cabo-verdianos serem cidadãos portugueses e não indígenas como os cidadãos de outras colónias. As elites gozam desta posição e tentam tirar proveito dela. O outro pólo, a África, é moldado na mitologia ocidental: a África da escuridão, do oculto, do mistério, das fantasias e fábulas. É essa África que os intelectuais recusam.”
A própria antropóloga viveu uma situação exemplificativa desta relação com África. Quando começou a fazer trabalho de campo, foi “conquistada por dois interlocutores”. Em casa, um prédio que a mãe construiu no bairro de Tira Chapéu e onde vivem Eufémia e as irmãs, os pais perguntavam regularmente como tinham corrido as pesquisas e quando ela contou que estava a ser conquistada por um deles ouviu: “Manjaco, não” — manjacos é como os cabo-verdianos chamam aos negros do continente africano. “A possibilidade de nos unirmos a um português ou a um espanhol já não é mau. O facto de me unir a um imigrante faz com que eu estrague a minha raça. Se me unir a um branco, europeu, estou a compor a raça. Mesmo que tenhamos cabo-verdianos negros, sempre sobressaem determinados tópicos. Diz-se: ‘É preto mas fino.’ São estas distinções raciais engendradas no âmbito do colonialismo que hoje se tentam recuperar — o facto de a branquidade se manter como algo a privilegiar. As lógicas raciais do tempo do colonialismo que pensamos que ficaram para trás voltam a aparecer.” Outro exemplo, a morabeza — o bem-receber — “funciona bem com os portugueses, mas não com o imigrante oeste-africano”. “Ainda temos a sombra do branco como cooperante, diferentemente do imigrante oeste-africano que está cá para disputar connosco e traz imensos problemas para resolver.”
Professora no Departamento de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Cabo Verde, onde ensina disciplinas de Antropologia e dirige o mestrado em Segurança Pública, Eufémia Rocha nota nos alunos “o mesmo discurso de há décadas”: a excepcionalidade do povo cabo-verdiano, a mestiçagem e o facto de, mesmo a raça estando presente, não tocarem no assunto. “Essa excepcionalidade é inventada, forjada. Há uma elite do século XIX/XX que tem todo um objectivo em relação à metrópole e engendra a cabo-verdianidade: a maneira de ser própria do cabo-verdiano.”
Sociedade geneticamente racial
Tem a idade da independência, 40 anos, e estudou, como muitos cabo-verdianos, em Portugal. Cursou Sociologia entre 1994 e 1999, e depois fez o mestrado em Estudos Africanos, ambos no ISCTE. Em 2003, foi para Angola aprender “na escola da vida”.
Nardi de Sousa está na sala de aula da Universidade de Santiago, um edifício que fica junto ao mar, perto da Ponta Temerosa. As janelas estão abertas para deixar entrar o vento. Fala dos dois mitos que prevalecem em Cabo Verde: as tão referidas mestiçagem e relação com África, que afecta não apenas o país internamente como a relação com o exterior. Desenvolvendo: “A ancestralidade africana é muito importante para nós para repor o verdadeiro papel de África como farol do conhecimento. Toda a instituição da escravatura foi inventada para retirar o protagonismo e justificar a marginalização do próprio continente”, afirma. “Esta diluição da África” — aliás, título de um livro do reitor da universidade de Santiago, Gabriel Fernandes, que na altura em que estivemos em Cabo Verde não estava disponível para a nossa reportagem — “que acontece na academia, nos media, e continua a dar imagem de África como terra de selvajaria e de brutalidade faz com que os países africanos olhem para Cabo Verde com desconfiança. Isso afecta a relação que temos com os africanos e com os europeus. Os africanos sentem por vezes que há uma discriminação”.
A produção antropológica do século XVIII “transmitiu conhecimentos distorcidos e falsos”, coincidindo com a propagação da teoria evolucionista que defendia que “os europeus eram a invenção máxima da natureza e o africano era selvagem”, nota, e isso ainda hoje tem resquícios. “Claro que marcou uma mentalidade e as pessoas procuravam aproximar-se dos traços europeus.”
Cabo Verde criou a história imaginada de que a mestiçagem começou no arquipélago e isso foi “um pouco fruto da historiografia portuguesa”. Depois “olha para si próprio como o país que tem mais mestiçagem em África” e “aí entramos no discurso luso-tropicalista”, que fez com que muitos cabo-verdianos exigissem ter um papel diferente na hierarquia colonial.
Fotógrafo e cineasta, César Schofield Cardoso, 42 anos, é mestiço, de olhos claros. Classifica-se politicamente como negro. O facto de existir o fenómeno da exclusão, que tem justamente a ver com as relações raciais, fá-lo posicionar-se desse modo e afirmar a sua africanidade, “como forma de valorização, equilíbrio e diversificação do que somos”. Insiste também na questão do ensino da História de África. “Costumo lembrar que somos uma sociedade geneticamente racial, nos formámos em relações raciais — uns, europeus brancos, em relação a outros, negros africanos.”
A verdade é que a narrativa construída coloca Cabo Verde como uma aparente confirmação do luso-tropicalismo “e da teoria que a convivência dos portugueses e povos colonizados terá sido pacífica, harmoniosa”. A intelectualidade cabo-verdiana, desde os claridosos, é responsável pela propagação dessa ideia por ter vincado esse discurso do luso-tropicalismo de que em Cabo Verde há uma harmonia racial. “Mas estamos a aprender que isto não é bem verdade, principalmente porque na actualidade começamos a ter fracturas. Até onde é sustentável esse modelo de sociedade que vem de antigas relações raciais? Até onde podemos conter uma sociedade que tem divisões profundas entre uma pequena elite e uma maioria que não consegue uma integração plena? Até onde será sustentável a grande desigualdade social?”
Racismo em Cabo Verde?
Se se perguntar a um cabo-verdiano se há racismo no seu país, ele vai dizer que não. O sociólogo Redy Wilson responderia o mesmo — “a não ser contra os estrangeiros”. Recentemente, à imagem do que acontece com outras ex-colónias como Angola e Moçambique, começou a aparecer “um certo ressentimento” por causa da presença de portugueses, “ainda por cima numa posição de dominação” — portugueses que chegam com atitudes racistas a Cabo Verde. “Não estou a dizer que são todos assim, mas há muitos portugueses que não vieram de um tipo de sociedade e espaço onde havia uma certa proximidade [com a população negra].”
Mas “o que muitos defendem é que existe o privilégio branco e é preciso chamar o orgulho negro para colocar África no centro. Isto não é racismo.”
Estudioso dos grupos de gangues em Cabo Verde, Redy Wilson diz que houve um “encontrão, não propriamente um encontro, entre o português e o cabo-verdiano”. Ele próprio é também fruto disso: tem família metade portuguesa, metade cabo-verdiana. Autoclassificar-se racialmente é “um grande problema”, ri-se. “Uma vez estavam em Portugal uns alunos da Universidade Nova a fazer uma pesquisa com um questionário à americana e chegou um momento que havia a raça e foi complicado. Que raça eu sou? Fui para mestiço. Depois havia mestiço asiático, mestiço africano… Na questão identitária, sou africano. Mas não sei a nível racial onde me coloco. O que é ser mestiço? Há muitos mestiços. Na Praia, muitas pessoas dizem que sou do Fogo por causa do meu cabelo. Algumas pessoas da costa ocidental africana perguntam se sou indiano. Em Portugal, perguntam-me se sou brasileiro e já me perguntaram também se sou timorense. Então, és tudo e não és nada. Já me disseram que era claro demais para ser cabo-verdiano e escuro demais para ser cabo-verdiano.”
Mas como se sente? “Como todo o cabo-verdiano, eu digo: sou cabo-verdiano. Aí está a ambiguidade. E o interesse nisso é que dizer ‘cabo-verdiano’ é negar África. Aprendemos que somos cabo-verdianos. Cresci com isso. Quando começo a questionar essas coisas e quando vou para a Europa, não sou cabo-verdiano, sou africano. Quando te categorizam como africano, percebes que não tens nada de especial.”
É nessa altura que ele começa a desmontar a mitologia nascida de uma história que se conta sobre Salazar, quando alguém perguntou porque é que Cabo Verde não tinha o estatuto do indigenato e respondeu: “Eles são nossos filhos, pretos especiais.”
Lúcia Cardoso, directora da Orquestra Nacional de Cabo Verde, afirma que é preciso reconhecer que no arquipélago há um melting pot feito com populações da Eurásia, Médio Oriente, de diferentes culturas e etnias africanas, algo que se pode ver “na simples aparência das pessoas”.
Aos 32 anos, esta mulher que é também cantora, maquilhadora profissional, estilista, figurinista, diz: “Somos o país da música, mas não temos estrutura, nem escolas para suportar isso — temos uns 20 festivais de música que se tornaram um negócio. Também há resistência ao estudo da música e a orquestra representa tudo isso”, explica, sobre a ONCV.
Consciente africano, inconsciente europeu
Lúcia Cardoso defende uma opinião um pouco diferente em relação à africanidade: conscientemente, os cabo-verdianos rejeitam a Europa e inconscientemente rejeitam África, diz. “Há essa coisa de rejeitar: não somos europeus, queremos voltar às nossas raízes — é o que se diz da boca para fora. Por isso chamo “a reacção consciente”. Mas inconscientemente quer-se é ter o cabelo liso, ter as feições o mais finas possíveis e o que é considerado bonito, o padrão de beleza e de bem-estar, é o tipicamente ocidental europeu”.
Sobre o discurso do regresso às origens africanas, acha-o superficial, porque na verdade “nós nem sabemos o que é a África, quantos países tem, como é dividida”. “Dizemos que não somos europeus, mas com certeza não queremos ser africanos, então sofremos parte da síndrome do colonialismo. Isso é claríssimo aqui em Cabo Verde. São séculos de uma forma muito inteligente de dominação que nos fez sentir capatazes dos outros.”
É gravíssimo que Cabo Verde não queira ser conotado com África, analisa. Mesmo o revivalismo de alguns materiais africanos como os panos é, para ela, “um bocado fútil”, uma moda, “não se quer chegar à questão real” que é conhecer, por exemplo, a história e simbologia dos padrões e estampas usados nos tecidos. Habituada a lidar com crianças, choca-a a obsessão com os padrões de beleza europeus e o desprezo pelo fenótipo africano, coisas subtis como o cabelo ou o formato do nariz, mas que “têm impacto muito, muito forte na vida das pessoas”.
Olhando para os seus olhos, nota-se uma influência asiática. A sua pele é clara. E no Verão diz que o cabelo, agora rapado, fica louro. Lúcia considera-se “negra, sabe-se lá o que isso quererá dizer”, por ter crescido em Cabo Verde. “Isso tem a ver com a cultura, com o que se sente. A minha mãe é branca, tem cabelo liso. A minha avó tem olhos azuis. Branca não me considero, de certeza. Mas, por exemplo, vou para Angola e chamam-me branca.”
A questão da relação com África não está apenas no campo racial e social. Foi só recentemente que Cabo Verde retomou as relações comerciais com a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental, lembra César Schofield Cardoso, e isso deu-se por uma imposição da parceria especial com a União Europeia. “Do ponto de vista social, cultural, económico não privilegiamos o espaço económico africano.”
A ele incomoda-o as representações de Cabo Verde eurocêntricas, em que não se leva em conta a produção teórica que já existe nesses países nem as narrativas autóctones. A relação de igual para igual entre Cabo Verde e Portugal “está longe de ser conseguida”, conclui. “Longe porque são dois países que têm uma relação complicada com o colonialismo — um na sua qualidade de colonizador, o outro na de colonizado. É um debate que temos alguma dificuldade em estabelecer, daí que haja muitas dificuldades em normalizar. Acredito que haja vontade de relações económicas e políticas — mas será que as relações sociais são tranquilas, saudáveis? Será que a sociedade portuguesa é tranquila em relação à sua africanidade, à sua população negra? Será que Cabo Verde olha para os portugueses de forma tranquila? De forma muito empírica, eu digo que não. Há muito desconhecimento de parte a parte.”
A sociedade ainda tem traumas profundos da escravatura, do colonialismo, da violência racial. O resultado? “Não fizemos a catarse. Há uma política do esquecimento.”
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Fonte: Público.pt.
Esta reportagem foi feita em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos.