Por Vanessa Ibrahim, jornalista.
“SOS – Save our souls” (salvem nossas almas). Leio pelo retrovisor e traduzo mentalmente do mesmo inglês de London London tocando no rádio. Estou indo ver Caetano Veloso. Ele passou por Florianópolis neste final de semana após mais de uma década sem vir à cidade que, uma vez, já encarcerou seu parceiro Gil. Ambos tinham retornado há pouco do exílio e ainda era ditadura, portanto, não foi tolerado o cigarro subversivo na ilha – então escassa em magia.
Agora, há exatos cinquenta anos daquele retorno de Londres, o coco de um vovô dançante subiu ao palco em Jurerê, de onde uma voz impecável disse ter sentido saudade das belezas daqui. Mas titubeou e, numa pausa antes de soar no idioma de suas canções de exílio, confessou: “Não sei se sobre aquele tempo o povo do sul pensa como esse baiano”. Foi prontamente acolhido por aplausos, gritos e mãos em L que queriam provar o contrário, tentando jogar areia no fosso eleitoral criado entre Norte e Sul do país. Também ouvi alguns cala-bocas.
Do alto de seus oitenta anos e debaixo dos óculos, ainda eram os mesmos olhos de Caetano nos observando. Aqueles que na letra escrita na Inglaterra procuraram por discos voadores ao flagrarem-se vivendo sem medo num universo paralelo de paz, alheio ao Brasil militarizado. Era poesia falando das desigualdades abissais que podem caber dentro de um mesmo planeta. Caetano, espero que seus olhos não tenham avistado, como os meus, aquelas faixas em inglês, quando seguia a caminho do show. Uma diz stop supreme abuse e está há dias pregada na rua de nome de general, onde o aplicativo de trânsito sempre avisa: animais no acostamento. Perto de onde apagaram do muro uma suástica, outro dia.
Envoltos em amarelo e oliva, são os olhos que empunham esses cartazes que poderiam agora mirar o céu – como fizeram seus colegas em Porto Alegre – e para lá apontar as luzes de seus aparelhos celulares. Agora não é música. Do plano de sua terra, esperam realmente a chegada de um militar de patente intergaláctica para contestar o resultado das eleições para a presidência do país. Repare, a lógica não é o forte. Quando eu penso em rir, choro.
Penso nessas almas forjadas no medo de que um inimigo invisível, vermelho e diabólico ameace suas famílias. Usam o inglês para dialogar – como na outra vez – com o Norte dessa América que habitamos? Poderiam utilizar o conhecimento linguístico e apontar seu olhar para a poesia da estadunidense Maya Angelou. Ela lhes falaria o que é um verdadeiro abuso supremo, aquele que se comete violentando inocentes. Ainda assim dizia “nada na vida me assusta”. E suas palavras contam sobre “nós, este povo, em um pequeno e solitário planeta”, com medos nascidos ou instigados nas igrejas, que só se libertarão “quando dos ombros caírem os rifles”. Fala tudo isso para dizer que poderíamos nós, seres humanos terráqueos, sermos as verdadeiras maravilhas desse mundo. Mas são muitos blue eyes pastando sobre green grass e nada mais parece lovely, nem aqui nem em Londres.
Quase fiquei de joelhos naquele domingo da consciência negra em oração a Maya por essas almas, que tanto clamam por salvação. Mas optei por deixar a tarefa para o aguardado extraterrestre enquanto espero uma carta de Maria Bethânia avisando que as coisas vão melhorar. Talvez eu já estivesse dormindo, com a consciência tranquila de que pelo menos esta alma as canções de Caetano salvou.