Saramago: a poesia que desfaz o cinismo

As sete vidas do escritor, em nova biografia: da miséria rural ao Nobel. Ao desvelar cegueiras do sistema, que nos fazem pequenos monstros, ele deu força profunda à indignação. Seu método: a sutileza política para restaurar a nossa humanidade

The Portuguese writer José SARAMAGO.1990.
Nobel Prize Literature 1998.

Por .

Vivemos no tempo da mentira universal. Nunca se mentiu tanto” (689)

A razão não se comporta racionalmente, o que é uma forma de cegueira” (556)

José Saramago viveu de 1922 a 2010, até os 87 anos, tendo caminhado, numa lenta ascensão, desde a miséria rural, pelo trabalho operário, pela burocracia editorial, pelos embates políticos, atingindo apenas a partir dos 60 anos o que seria a sua vocação, um imenso poder poético traduzido em romances que lhe valeram o Nobel de literatura em 1998, tornando-se um dos maiores escritores da língua portuguesa de todos os tempos. Quanta emoção, alegria, felicidade ou indignação nos deram essas leituras. Eu passei pela maioria, a começar por Levantado do Chão, nos anos 1980, o primeiro com o estilo já poderoso e amadurecido, até Caim, livro maravilhoso que nos faz sorrir enquanto lemos as tristezas do que apronta o ser humano, frequentemente em nome de Deus.

O leitor provavelmente já leu Saramago, não vou aqui dizer que é ótimo, se bem que, em particular para a nova geração, valha a pena repetir e recomendar muito: tem a imensa qualidade de nos assegurar uma leitura que prende, ainda que transpareça com força a indignação profunda com a desigualdade, com a violência, a miséria, a estupidez da ganância política e econômica. É arte no que há de mais poderoso. Para o gosto de quem não leu, e sorriso saudoso de quem leu, esse trechinho de Levantado do Chão, em que os dois jovens do interior rural, apaixonados, fogem das proibições familiares e religiosas, com modesto farnel, para casar a seu jeito:

“João Mau-Tempo levava Faustina pela mão, tremiam-lhes os castigados dedos, guiava-a sob as árvores e ao rente dos matos e das ervas molhadas, e de repente, sem saberem como aquilo aconteceu, talvez canseira de tantas semanas de trabalho, talvez tremor insuperável, acharam-se deitados. Em pouco tempo perdeu Faustina a sua donzelia, e quando terminaram, lembrou-se João do pão e chouriço, e como marido e mulher o repartiram.” (70) A mim, suposto economista de assumida seriedade, comove. Saramago não nos empurra política, nos restaura a humanidade.

Mas a presente resenha não é para ser mais um que escreve sobre Saramago, e sim para apontar a maravilha que é resgatar quase um século de história, através das vivências de uma pessoa. Recentemente li várias biografias, de Zygmunt Bauman, de Fernando Pessoa, maravilhosos trabalhos que nos trazem o viver real de diversas ou épocas – em sólidos volumes na faixa de 800 páginas – mas tão diferentes das histórias oficiais das grandes conquistas e desastres históricos. No meu caso, tendo lido muita história geral e de países, reencontrar na leitura da vida concreta de uma pessoa que viveu essas épocas o eco dos grandes eventos, ajuda muito fazer a ponte com o cotidiano das pessoas.

Entre a história dos feitos gloriosos, das pátrias e dos líderes, que infelizmente encharcam o nosso ensino, e as biografias de pessoas que viveram essas épocas no seu cotidiano concreto, como é o caso das biografias de Saramago, Bauman e Pessoa que menciono, queria mencionar ainda uma escola de historiadores que descrevem a história dos povos, ou seja, do povo comum, da base da sociedade. Trata-se por exemplo dos volumes organizados por Ki-Zerbo sobre a História Geral da África: não a da colonização, mas das imensas e ricas transformações que viveu o continente em todos os tempos. Ou o trabalho de Howard Zinn, A Peoples’ History of the United States, ou ainda de Adam Leszczynski sobre o cotidiano das pessoas na Polônia, do genial El Ingenio de Manuel Moreno Fraginals, sobre a vida da Cuba dos engenhos do açúcar, de John Womack, em Zapata e a revolução mexicana, e evidentemente de muitos trabalhos de Eric Hobsbawm. Estou citando alguns autores de memória, mas é tão importante resgatar este tipo de história. Sistematizei umas ideias a respeito na nota Pode a História nos ajudar a sair do marasmo?, sobre a guinada dos historiadores que deixaram de olhar apenas para cima.1 Vejam que até economistas estão se tornando historiadores da vida cotidiana, como encontramos em Thomas Piketty, no O Capital no Século 21, em que cita mais Balzac do que ministros de economia.

Me entusiasmei aqui com as minhas memórias. Mas voltando ao Saramago, ou melhor dizendo ao trabalho de Miguel Real e Filomena de Oliveira, deixem-me dizer que é um trabalho deslumbrante, pela beleza da escrita, a profundidade do trabalho propriamente científico de pesquisa, pela arquitetura do volume, construindo as sucessivas vidas de Saramago, sete períodos que são distintos, mas conversam, lembrando um pouco as diversas personificações de Fernando Pessoa. Este teve de inventar os heterônimos, as diferentes vidas, Saramago as viveu.

É na “quinta vida”, do final dos anos 70 e já na década dos oitenta, que surge o Levantado do Chão cujo trecho mencionei, e cuja força na escrita vem do fato que essa realidade da pobreza rural Saramago a viveu nas primeiras vidas. O livro todo é uma reconstrução histórica dos diferentes subsistemas sociais, econômicos, culturais e políticos, como se os vivêssemos através do personagem. Não são apenas diversas épocas que revivemos através dos capítulos, mas diferentes universos que se articulam nessas épocas, desde a modesta Azinhaga onde nasceu, pelas turbulências de Lisboa, até os embates que Saramago já famoso tem no plano internacional, em defesa do MST e da Amazônia no Brasil, contra o apartheid israelense, em defesa de Chiapas no México e tantas outras intervenções.

Saramago é um indignado, um indignado que consegue dar força profunda à indignação, não por meio de lições de política, mas pela vivência de personagens tão poderosamente desenhados que nos ficam na memória, e é ao revivermos as suas vidas absurdas que nos damos conta dos absurdos das nossas vidas. “O sono da Razão, esse que nos converte em irracionais, fez de cada um de nós um pequeno monstro. De egoísmo, de fria indiferença, de desprezo cruel. O homem, por muito cancro e muita sida, por muita seca e muito terramoto, não tem outro inimigo senão o homem.”(553) Com a ironia que perpassa toda a sua obra, Saramago não se faz ilusões quanto ao que somos como indivíduos, mas busca “denunciar o aproveitamento dos instintos humanos agressivos para o estabelecimento de instituições sociais.”(679) É a capitalização política do que há de mais escuro em nós. É a ditadura do Salazar, que já usava “Deus, Pátria, Família” nos anos 1930, repetido um século depois por Bolsonaro, por Meloni na Itália, por Kaczynski na Polônia, por Trump nos Estados Unidos, por Duterte nas Filipinas…O uso racional e organizado da irracionalidade, das frustrações e dos ódios, ainda mais com as tecnologias modernas de disseminação personalizada, gera dramas planetários. Do uso das religiões, da respeitável espiritualidade humana, nem se fala.2

Não há como não simpatizar com o homem: “Sou uma pessoa pessimista e cética em relação a esta coisa que nós chamamos espécie humana, em relação ao que estamos a fazer do mundo e de nós próprios.” (169) Sobre a noite do prêmio Nobel, comenta para sua filha Violante: “Lembro-me perfeitamente de ter regressado ao hotel a pensar que naquela frase [Chega-se mais depressa a Marte nesse tempo do que ao nosso próprio semelhante], está tanto do que acontece no mundo: a obsessão pelo poder, seja ele qual for, as prioridades erradas, o desprezo pelas injustiças, pela fome e pela miséria, o desrespeito pelos outros, a ausência de solidariedade.” (194) Saramago, segundo os biógrafos, “transforma a sua escrita num ato estético tanto de crítica e denúncia social, como de rebelião civilizacional contra um Homem criador de sistemas sociais irracionais.” (295) Poucos como ele viveram, sofreram e compreenderam os dramas sociais, e poucos como ele os difundiu de maneira tão poética, esse “realismo mágico” em que até o cão se torna para nós um personagem, ou personalidade. (412)

Ele, Saramago, sem dúvida pela sua trajetória, entendeu perfeitamente que “talvez a verdadeira democratização da cultura não seja esta que vimos aplicando [de cima para baixo], sem curar de saber as consequências, se não será antes a criação de um movimento inverso que leve a cultura popular à frequentação das instâncias culturais superiores.” (407) Mas o que nos oferecem é a manipulação: “Consome para não pensares: O grande administrador de educação do nosso tempo, incluindo a ‘cívica’ e a ‘moral’, é o hipermercado. Somos educados para clientes. E é essa a educação básica que estamos a transmitir aos nossos filhos.” (600)

Estamos no cerne onde se encontram os escritos de Saramago e os nossos desafios de hoje: “E se falo assim do mercado é simplesmente porque hoje, mais do que nunca, é ele o instrumento de domínio por excelência do verdadeiro e único poder real, o poder económico e financeiro mundial, esse que não é democrático porque não foi escolhido pelo povo, que não é democrático porque não é regido pelo povo, e que finalmente não é democrático porque entre os seus postulados não figura a felicidade do povo.” (605) Estamos, é claro, já nos anos 2000, escritos mais recentes. Com que leveza, com que suave ironia, com que displicência com as formalidades estilísticas, Saramago nos traz para o Chão. E com que maestria os autores da biografia enriquecem as nossas vidas com essa obra.


1L. Dowbor – Pode a história nos ajudar a sair deste marasmo? – Disponível online, 3p., 2021 – (inclusive com a referência bibliográficas, para os interessados). – https://dowbor.org/2021/07/pode-a-historia-nos-ajudar-a-sair-desse-marasmo-a-maquina-da-opressao.html

2 Sobre esse tema, veja L. Dowbor – O mundo das crenças – 2022 – https://dowbor.org/2022/11/o-mundo-das-crencas-ha-espaco-para-todos.html

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