Santa Catarina dá adeus ao escritor Silveira De Souza. Entrevista inédita.

Foto: Iur Gomez

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha, especial para o Portal Desacato.

Em entrevista publicada no livro Diálogos com a Literatura Brasileira – volume 2, Silveira de Souza disse o seguinte: “só escrevo quando tenho algo dentro de mim que me incomoda. De repente, uma atmosfera vai se criando dentro de minha cabeça, vai ganhando força. Então, quando eu vejo que dá para fazer um bom conto, sento e escrevo.” E ele escreveu. É considerado um contista por excelência pela crítica e por uma infinidade de escritores leitores de sua obra composta por O Vigia e a Cidade (1960), Uma Voz na Praça (1962), Quatro Alamedas (1976), Os Pequenos Desencontros (1977), O Cavalo em Chamas (1981), Canário de Assobio (1985), Rumor de Folhas (1986), Relatos Escolhidos (1998), Contas de Vidro (2002), Janela de Varrer (2006) e Ecos no porão: contos selecionados pelo autor (2010-2011). Além disso, fez resenhas sobre obras de diversos autores catarinenses e, também, traduções. Algumas dessas resenhas e traduções estão reunidas no volume Vias Paralelas, editado pela Academia Catarinense de Letras em 2007.

No livro de poemas Rumor de Folhas, ele escreveu: “se acaso aprendemos algo é como / atirar uma pedra em poço escuro: / a vaga certeza do som sobre as águas / não revela toda a verdade do percurso.” E o percurso de Silveira de Souza foi longo no tempo e profundo na existência. É uma dessas vidas que se realizou localmente pelas margens das baías Sul e Norte, pelo centro de Florianópolis e pelo Continente, pelos “passeios com a família à Ponte Hercílio Luz”, mas ao mesmo tempo também se universalizou numa obra coerente, segura, aberta aos leitores.

Foto: Iur Gomez

Silveira de Souza, que faleceu no dia 19 de março, nos recebeu algumas vezes em sua casa. Sempre sorridente, com bons vinhos à nossa espera e com papos que duravam longas tardes. Só saíamos quando já completamente embriagados e saciados de tanto discutir literatura e teatro. Destes inúmeros encontros restou-nos esta entrevista, totalmente inédita, que pretendíamos concluir assim que seu quadro de saúde permitisse. Com a pandemia, o reencontro ficou impossível, mas o leitor tem diante de si uma boa mostra das indagações e preferências desse autor que nos fala, também, sobre o teatro realizado dentro do coletivo Grupo Sul, que teve por intento a renovação estética em Santa Catarina duas décadas após a Semana de Arte Moderna, ocorrida em São Paulo, em 1922. Evoé! Silveira de Souza! Presente! Presente!

Há em muitos de seus textos um retorno à infância quase mítica e realmente ilhada em Florianópolis. O senhor poderia nos falar da sua infância e do seu processo de ficcionalizá-la?

O retorno à infância está presente na obra de escritores, acredito que uma maioria, de todos os níveis e tendências. Nem sempre é um retorno a uma dimensão paradisíaca de nossa existência. Encontramos obras que mostram infâncias infelizes ou mesmo dolorosas. E nem sempre também é um retorno explícito, documental, mas que a gente acaba descobrindo implícito em muitos momentos, principalmente em trabalhos de criação ficcional. No meu caso, quem sabe felizmente, a infância foi mágica, quase onírica e, sem dúvida, a melhor fase de minha vida, quando me acontece estabelecer comparações emotivas entre as fases da vida já vivida. Não houve nela nada de grandioso, arrebatador ou espetacular. Vista de fora, na distância, foi uma infância normal, mais ou menos comum entre as famílias burguesas, de classe média, daquele período de 1940 a 1945 (de meus 7 a 12 anos). Mas quando a memória alcança o seu interior, levanta-se um mundo de descobertas maravilhosas, um mundo aberto mesclado de ódio, lirismo e espantos, que me atingiam em cheio, talvez em virtude de meu temperamento de tendência ao introspectivo. Florianópolis nesta época era, para mim, um grande círculo cujo centro era minha casa. No interior desse círculo existiam quintais, terrenos abertos, praias, ruas e becos, festas juninas, passeios com a família à Ponte Hercílio Luz, iniciações sexuais, domingueiras de carnavais no Clube Lira, doutrinas e barraquinhas na Igreja de Nossa Senhora do Parto, e rostos, muitos rostos, incontáveis, próximos e distantes, como também acontecimentos os mais variados, desde as notícias da Segunda Guerra Mundial escutadas pelo rádio ou vistas em fotografias, em revistas distribuídas pelo IBEU, que mostravam as atrocidades dos exércitos alemães (as atrocidades dos aliados não eram mostradas), até as revistas religiosas de minha mãe, nas quais estórias de milagres e desenhos kitsch de crianças que atravessavam velhas, estreitas e perigosas pontes de madeira sob a proteção, visível nos desenhos, de Anjos da Guarda, povoavam o meu imaginário. É quase impossível dar uma ideia da amplitude humana da infância, aquela que ainda existe em nosso interior. Já pensei em recriá-la até onde for possível, de maneira abstrata, num texto longo, um tanto surreal, que se intitularia Beco do Segredo (que foi o apelido da Rua Bento Gonçalves, onde nasci, quando o barranco do Lira Tênis Clube ainda fechava uma quadra no alto da Rua Felipe Schmidt). Até agora, na minha literatura, ela, a infância, tem aparecido às vezes em diminutos fragmentos, num outro contexto existencial, como fina moldura ou um debrum ao redor de algo inventado. Isso pode ser visto em textos como “Janela de varrer”, “Nuvens”, “As pitangueiras”, “Santinho”, “O velhinho das trovas”, “Canário de assobio” “Bororós na praça”, “Um tempo de fotografias” e “Ecos no porão”.

Foto: Iur Gomez

Ainda em relação à infância, gostaríamos de saber se existiu um momento específico, uma obra ou um acontecimento em particular que tenha direcionado seu olhar e sua vida à arte?

Este momento existiu, sim. Lá por volta de 1941 ou 42, meu pai, João Silveira de Souza, costumava trazer para casa todos os meses (certamente ao receber o seu salário de funcionário público) uma verdadeira braçada de livros e revistas, para ele e minha mãe, para minhas duas irmãs, Dulce e Dirce, como também para mim, o caçula da casa. Nesta idade, oito ou nove anos, eu já havia aprendido a ler com minha mãe, Maria Esther Silveira. Ganhava não só livros de estórias para crianças, coleções da Editora Melhoramentos, mas também revistas em quadrinhos, o almanaque anual da revista “O Tico-Tico”, coisas assim. Recordo-me de alguns livros que me atingiram em cheio, ou seja, que me encantaram ou comoveram de modo especial. Entre eles posso mencionar As reinações de Narizinho e O garimpeiro do Rio das Garças, ambos de Monteiro Lobato; o Pinóquio, do italiano Carlo Collodi; um volume intitulado Histórias da mata virgem, do qual não tenho certeza quem era o autor, mas suponho ter sido Renato Sêneca Fleury, um livro contendo estórias inesquecíveis de macacos, onças, jabutis e outros bichos da fauna brasileira; e também uma maravilhosa adaptação, toda ilustrada, de contos de Hans Christian Andersen (teria sido trabalho de Lobato?), obra que reli diversas vezes. Na verdade, Lobato e Andersen foram as duas grandes figuras de minhas leituras da infância. Lobato pelo seu jeito tão brasileiro de criar, com humor, personagens envolventes, muito próximos, como Narizinho, Pedrinho, Dona Benta, Emília e o Visconde de Sabugosa. E Andersen porque, como salientaram Aurélio Buarque de Holanda e Paulo Rónai na antologia Mar de Histórias, “muito mais do que um sábio e consciencioso colecionador de contos populares, da escola dos irmãos Grimm, é um dos grandes poetas da humanidade, um dos poucos que chegaram a criar uma mitologia”. Mas houve também um segundo momento de contato com a literatura. Foram as leituras à noite com todo o pessoal da casa, ocorridas mais tarde, lá pelos meus 11 ou 12 anos, que vieram reforçar, num nível mais avançado, a minha experiência anterior. Os cinemas não eram muito frequentados por nós neste período, com exceção das matinês de domingo, quando eu e a garotada da rua, a “raça”, íamos para o cine Imperial ver mais um episódio da fita em série. Durante a semana, tínhamos o vagar suficiente para reuniões noturnas da família em volta da mesa de estar, quando minhas irmãs e meu pai faziam rodízio para leitura de contos, novelas curtas e poemas em voz alta. Foi desse modo, através do ouvido, que pela primeira vez conheci alguns contos de Machado de Assis, de Edgar Allan Poe, de Guy de Maupassant, de Conan Doyle, de Monteiro Lobato, de Eça de Queiroz, de As Mil e uma noites, assim como os poemas mais conhecidos na época, de Olavo Bilac, Casemiro de Abreu, Castro Alves, Raimundo Correia, Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Gonçalves Dias, Augusto dos Anjos e outros. O curioso é que hoje estou retornando à “literatura escutada”, agora em inglês e alemão, em audiolivros. Estou curtindo, através de um aparelho de som conectado ao computador, textos de gente como James Joyce, T.S. Eliot, Lewis Carroll, Alan Poe, Herman Melville, Joseph Conrad, Franz Kafka, Rainer M. Rilke, Arthur Schnitzler, traduções para o alemão de Hans Christian Andersen, e outros. Em português, já revisitei o Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, de Machado de Assis, e mais alguns outros prosadores brasileiros. Começo a me apaixonar pelo audiolivro, embora ele dependa fundamentalmente do leitor dos textos. Encontrei outro dia na Internet uma versão em inglês de “O homem do subterrâneo”, de Dostoiévski, que não dá para escutar, tão enfadonho e inexpressivo é o desempenho do leitor.

Em “As pernas de Rachel Welch”, o senhor traça um paralelo entre as pernas de Rachel Welch e “o esforço último da beleza desvanecente e inócua”, com toda uma realidade social e política bastante aterradora. Como encara o mundo hoje? Quais seriam as porções de beleza capazes de enfrentar o que estamos vivenciando em matéria de destruição?

Não é uma pergunta fácil de ser respondida. “As pernas de Rachel Welch”, que não chega a ser um conto, mas sim um texto de ficção mais próximo daquilo que se passou a conhecer, lá pelos anos de 1950, como “crônica literária”, foi publicada pela primeira vez no livro Canário de assobio, de 1986, mas deve ter sido escrita por volta de 1980. Considero ainda hoje um dos textos em prosa de maior densidade poética que já consegui escrever. “O esforço último da beleza desvanecente e inócua” (desconfio que a palavra “desvanecente” é de minha invenção), visto numa revista pelo cronista numa fotografia das pernas de Rachel Welch, simbolizava uma beleza que passava a um plano inferior num mundo que, como realidade social, parecia, sem remissão, extremamente brutalizado e sombrio. A causa era dada na própria crônica. Vou citá-la, se vocês me permitem: “Mas diante daquela foto, melhor dizendo, daquelas pernas, que relação poderia estabelecer entre elas e os demais acontecimentos ainda não de todo ultrapassados da revista? Podiam ver-se soldados com baionetas correndo pelas ruas de um lugarejo asiático. Podia ver-se o povaréu fanático em suas crenças, a levantar os braços e a berrar enfurecido num ponto qualquer do Oriente Médio. Havia aqueles policiais que desmanchavam com bombas de gás mangueiras e cassetetes um movimento de protesto popular no Chile. Havia a grande mesa, ao redor da qual meia-dúzia de generais decidia, com expressão embrutecida, os destinos de uma comunidade”. Pois bem; quando escrevi esta crônica, ainda não conhecia o filme Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola (a meu ver um dos filmes mais representativos do século 20), que numa sequência em que belas coelhinhas vão divertir e “animar” os soldados americanos no Vietnã, exacerba extraordinariamente não só o sombrio de minha croniqueta, como também o sombrio e a forte carga de alienação de toda a estória da própria novela inspiradora do filme, Heart of Darkness, obra-prima de Joseph Conrad. Que porções de beleza seriam capazes de enfrentar hoje, segunda década do século 21, um planeta em equilíbrio instável sob a pressão e difusão crescente de armas nucleares; coelhinhas que se multiplicam e se tornam cada vez mais corriqueiras em todos os lugares, principalmente nas mãos de uma festiva publicidade predatória; além de uma nova ciência dominante, talvez mais verdadeira, cujo fundamento é a matemática do aleatório? Eu não saberia dizer.

Foto: Iur Gomez

Uma das suas primeiras experiências literárias foi com a peça Beco. Do que se tratava essa peça? Vendo a sua bibliografia, percebe-se que não há mais um retorno à dramaturgia? Por quê?

A peça em 1 ato e 2 quadros, Beco, foi escrita em 1951, resultante de um momento – iniciado em 1949 pelo Grupo Sul – de grande agito, grande ouriço em relação às atividades teatrais. O TECAM (Teatro Experimental do Círculo de Arte Moderna), para quem viveu a sua época, renovou a concepção e a linguagem da arte cênica existente e conhecida até então em Floripa, realizando espetáculos de razoável nível artístico e revelando alguns nomes importantes do teatro do século 20, como Pirandello, Bernard Shaw, Sartre, Roger Martin Du Gard. Pode-se dizer que dois desses espetáculos impressionaram e comoveram em especial as plateias: Cândida, de Bernard Shaw, e Pinocchio, uma releitura teatral escrita por Ody Fraga a partir da famosíssima estória para crianças de Carlo Collodi. Essas duas apresentações tiveram a participação de Jason César, a revelação de ator do TECAM. Diga-se também de passagem que Ody Fraga foi a figura central das atividades cênicas do Grupo Sul. Entusiasta do teatro, diretor talentoso, ele mesmo autor de diversas peças, realizou um trabalho de forte influência sobre os jovens da época. E eu estava nesse rol. Em 1950, Ody Fraga vai para São Paulo, e o TECAM se desfaz. Em 1951, houve uma tentativa de Armando Carreirão para refazer o grupo, ao encenar a peça É proibido suicidar-se na primavera, de Alexandre Casona, um bom espetáculo; mas a coisa ficou por aí. Em 1952, foi a minha vez, com a parceria de Marcos de Farias (aquele mesmo que, mais tarde, esteve entre os fundadores do Cinema Novo no Brasil) de tentar ressuscitar o TECAM, agora com o nome de TESC (Teatro Experimental de Santa Catarina). Foi quando tive a oportunidade de levar ao palco o meu texto Beco, juntamente com Um homem sem paisagem, peça em 1 ato de Ody Fraga. Antes disso, em 1950, eu tivera a primeira experiência como diretor, com a comédia em 1 ato O urso, de Anton Tchekhov. O que acontecia em Beco? No livro Grupo Sul: o modernismo em Santa Catarina, de Lina Leal Sabino (publicado em 1981 e, a meu ver, a informação mais completa e idônea até hoje escrita sobre as atividades do GS), a autora diz o seguinte: “Beco, peça de um ato, compõe-se de dois quadros. No primeiro apresenta um escritor desiludido pelas exigências do público, desabafando sua desgraça a um bom vivant. No segundo, mostra um rapaz esperançoso e uma moça pessimista colocando cartazes em um beco, discutindo acerca do futuro.” E acrescenta: “Para Osvaldo Ferreira de Melo (filho), o autor de Beco escolhe um bom tema – desânimo versus otimismo –, mas não consegue desenvolvê-lo convenientemente.” (Jornal O Estado, 25/11/1952). Foi um resultado lógico. O texto era imaturo, escrito por um jovem sem qualquer aprendizado anterior mais consistente a propósito da arte e da técnica teatrais e que, na época, era apenas um leitor apaixonado de Bernard Shaw e sua visão socialista. O meu texto era mais político-ideológico que artístico. O que valeu mesmo, em todo aquele período (de final dos anos 40 até mais ou menos 1957), foi a curtição do momento, a agitação quase febril que se desenvolvia em Floripa em relação ao teatro. Além do TECAM e do TESC, havia ainda os espetáculos dirigidos por Sálvio de Oliveira (A sapateira prodigiosa, de Garcia Lorca; A barca de ouro, de Hermilo Borba Filho; Pluft, o fantasminha, de Maria Clara Machado; A revolta dos brinquedos, de Pernambuco de Oliveira); e as experiências de Nilson Melo, que se iniciava como autor de peças para o teatro infantil. Quanto ao TESC, as tentativas seguintes foram todas frustradas, muitos ensaios começados e logo desfeitos devido a mil e uma dificuldades, mas que valeram como experiência. Penso que as mais importantes foram: Édipo rei, de Sófocles (na versão de Jean Cocteau), sob a direção de Aníbal Nunes Pires; Um inspetor está lá fora, de J. B. Priestley; O Caixeiro da Taverna, de Martins Pena e O canto do Cisne, de Anton Tchekhov. Os originais de Beco foram perdidos; não há mais nada que se possa dizer sobre a peça. E, a partir de 1958, os meus interesses literários e artísticos mudaram de direção: passei a cultivar a crônica literária e o conto.

Percebe-se nas suas publicações um hiato entre 1962 e 1976, justamente os anos mais pesados da ditadura militar no Brasil. O senhor poderia nos falar deste período? Como foi a sua relação com a censura e com os embates políticos da época?

Foi um hiato que, por incrível que pareça, nada teve a ver com a ditadura militar. Hiato que teve início a bem dizer em 1961, ano em que passei a lecionar matemática no Instituto Estadual de Educação (IEE). Nesta época ainda não existia curso universitário de matemática em Florianópolis. Os candidatos a professor nessa disciplina só ingressavam no IEE depois de aprovados por uma banca examinadora composta de três professores do departamento de matemática do colégio. Além disso, o contrato de trabalho era sempre provisório, com duração de um ano, e a sua renovação dependia da frequência em um curso intensivo de reciclagem em matemática para o segundo grau, conhecido como Curso da CADES, promovido pelo Ministério da Educação, que funcionava anualmente durante o mês de janeiro. Pois bem, por volta de 1964 foi criado o Curso de Matemática da UFSC, e nós todos, professores do IEE, numa reunião com o chefe do departamento dessa disciplina, recebemos o conselho óbvio para realizar o curso universitário, por uma questão de sobrevivência futura no magistério. E eu decidi entrar nessa. Caros Marco Vasques e Rubens, entrei numa pedreira! Foram vários anos de sufoco, trabalhando manhã, tarde e parte da noite para dar conta de um período assistindo a aulas “da pesada” na UFSC e dois períodos lecionando matemática de nível médio para a garotada do IEE e, a partir de 1967, também da Escola Técnica Federal. Vários anos durante os quais não deu para pensar em literatura e nos quais eu só acompanhava os acontecimentos políticos através dos jornais. Mas isso não quer dizer que eu não tivesse sofrido a minha pequenina cota com a ditadura militar. Em 1964, eu era funcionário da Capitania dos Portos de Santa Catarina, que funcionava ali no Forte Santa Bárbara. Dois ou três meses depois de rebentar a rebentona, tive de responder a um inquérito administrativo do Ministério da Marinha, sob a acusação de que o meu nome se encontrava entre os signatários de um abaixo-assinado que solicitava aos poderes competentes a legalização do Partido Comunista. A acusação era real, ou seja, eu de fato subscrevera o tal abaixo-assinado, mas isso não provava, como ninguém provou, que eu pertencesse ao Partido Comunista. Puxa vida! Era complicadíssimo, naquele momento de efervescência política, para um cara que se considerava 1/3 taoísta, 1/3 krishnamurtiano e 1/3 livre-pensador explicar para a comissão que presidia o inquérito que eu não era comunista, embora considerasse a clandestinidade, não só do Partido Comunista, mas de qualquer agrupamento político radical, como um erro. Mas no fim, por falta de provas concretas, deu tudo bem e eu só recebi uma “repreensão” por escrito do Ministério da Marinha. Mais tarde fui perceber que o meu ponto de vista em relação à clandestinidade de partidos radicais fazia algum sentido e podia até ser conveniente para alguns. Soube-se que alguns atos terrorista praticados na época, atribuídos à clandestinidade do Partido Comunista, mas que não foram praticados pelo Partido Comunista. Mas se esse inquérito administrativo foi o lado ruim do meu relacionamento com a ditadura militar, devo dizer que também houve um lado que até pode ser chamado de bom (da minha parte). Certa noite de meados de maio de 1964, alguém bate à porta de minha casa por volta das 23 horas. Fui ver e era um bom amigo de tempos passados, um cara (não vou citar o nome, ele já é falecido) de inteligência ágil, leitor emérito, escritor, poeta, teatrólogo, comuna assumido, que estava então morando em Curitiba. Ele disse logo que vinha fugido do Paraná, pois estava na lista dos “procurados” e os espaços para esconderijo estavam ficando cada vez menores. Viera para Florianópolis de carona no caminhão de um comerciante amigo e pretendia viajar na noite seguinte para um lugar seguro no interior do estado, onde ficaria o tempo necessário. Perguntou se não seria problema ficar “hospedado” ali até a noite seguinte. E acrescentou, com absoluta franqueza, que das três únicas pessoas que ele pensara em solicitar ajuda, eu era a primeira, e a ideal, por dois motivos: 1) a amizade tinha sido mais forte; 2) eu era o menos comprometido politicamente e, por isso, o que tinha “o menor grau de suspeição”. Eu respondi que não havia problema nenhum. Fui com o meu fusca 61 até a rodoviária, que ficava próxima, e comprei uma dúzia de garrafas de cerveja. Quando retornei, ficamos algumas horas daquela noite e toda a tarde do dia seguinte batendo um papo-cabeça e bebendo cerveja. À noite, deixei-o na rodoviária, com a sensação agradável de haver praticado uma “boa ação”, ainda que jamais aceitasse a ideia de ser escoteiro. Em 1976, desfiz todos os vínculos com os empregos que tinha. Fiquei desempregado. Reuni algumas crônicas esparsas que havia publicado pelos jornais e transformei-as num livro intitulado Os pequenos desencontros. E durante o tempo de desemprego, ou seja, até 1979, escrevi um outro livro, que se chamou O cavalo em chamas.

O senhor demonstra interesse por essa filosofia oriental que defende um posicionamento paradoxalmente radical frente à vida: o “não agir” como uma ação muito forte, efetiva. Quando surge seu interesse por essa linha de pensamento?

Lá pelos anos 1960, comecei a ler alguns livros de divulgação a propósito do pensamento místico oriental. A esta altura eu já estava completamente descrente daquela religiosidade católica que minha mãe tanto se esforçara por me injetar na infância. Não conseguia mais acreditar naquele Deus pessoal do Velho Testamento nem em alguns dogmas e crenças que, sempre mais, me pareciam fantasiosos. A leitura daqueles livros sobre o misticismo oriental, especialmente sobre o taoísmo chinês, ofereceu-me uma outra visão a respeito dessas “preocupações pela transcendência” que, ainda hoje, julgo muito importantes para o ser humano. A transcendência não como algo fora ou desligado deste mundo, mas como a busca de uma compreensão mais abrangente do Universo. O que havia de diferente ou novo nessa outra ordem de pensamento? Por não ser um expert do pensamento oriental, vou dizer somente o que eu extraí dele para mim ou, melhor dizendo, o que eu recriei dele para mim. Em primeiro lugar, o que me surpreendeu foi o conceito da palavra misticismo. Ao ler autores do chamado “misticismo” oriental, comecei a sentir em alguns textos taoistas como, por exemplo, os de Lao-Tsé e Chuang-Tzu, uma espécie de genial contraponto com a ciência ocidental; um contraponto intuitivo, sem equações matemáticas, mas fruto de intensa e elaborada meditação. Muito pouco encontrei ali daquilo que eu imaginava como “místico”. Mais tarde, quando li O Tao da Física, do físico Fritjof Capra, vi confirmadas as minhas impressões. Capra diz o seguinte em seu livro: “O raciocínio lógico era considerado pelos taoistas como parte do mundo artificial do homem, lado a lado com a etiqueta social e os padrões morais. Os taoistas não se interessavam de forma alguma por este mundo, concentrando sua atenção integralmente na observação da natureza a fim de discernir as ‘características do Tao’. Dessa forma, eles desenvolveram uma atitude essencialmente científica e somente sua desconfiança profunda em relação ao método analítico impediu a construção de teorias científicas adequadas”. Eles viam um Universo em constante mutação e tinham um modo de “agir não agindo” (chamavam isso de wu-wei), que não se tratava de alienação, mas de um modo de agir obedecendo à natureza individual; uma forma de, muito espertamente, economizar energia e não desgastar forças em ações supérfluas. Além do mais, a atenção permanente aos fluxos da natureza é fundamental, e as emoções devem ser evitadas na medida do possível, por serem prejudiciais à clareza mental. Mas vejam: estou muito distante de me considerar um taoista. Simplesmente busquei me apropriar de alguns ensinamentos seus, que acabo usando-os à moda ocidental. Por outro lado, acho o taoísmo muito inspirador à literatura e à arte. Há passagens de Lao-Tsé e Chuang-Tzu que me fazem lembrar de algumas pinturas de Kandinsky e de Paul Klee, do mesmo modo que de algumas esculturas de Brancusi ou de Jean Arp. Assim como tornam mais familiares as palavras de Richard Feynman a propósito da física quântica: “Ninguém pode saber como isso é assim”; ou de Alexander Calder: “O Universo é real, mas você não o pode ver. Tem de imaginá-lo.” E o Taoismo tem também os seus poetas, como Fang-tê Hsieh, do século XIII:

ENTRE AS MONTANHAS WU I

Passaram-se já dez longos anos

E sequer penso em voltar ao lar.

Posto-me agora sozinho em meio aos rochedos azulados

À margem de um regato turvo…

Terra e céu: tranquilidade infinda

Após a chuva na montanha.

Ah, quantas podas serão necessárias

Para que a ameixeira se abra em flor?

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