Sacrifício às divindades do capital

 

Por Raquel Moysés.

Na guerra das bombas que explodem corpos assim como na guerra da economia, que explode vidas candidamente, os administradores das tragédias usam siglas inexplicáveis para justificar os motivos de tanto sacrifício.  Enquanto ao povo grego é imposta a falência e a miséria para “salvar” a nação, o novo governo técnico da Itália – que deve governar por período limitado, até as novas eleições -, aprova decretos e pacotes severos de medidas para “livrar” o Bel Paese da crise econômica. Na Itália como na Grécia, e onde mais haja preço alto a pagar, quem dá os mortos, como nas guerras, são os trabalhadores e seus filhos. “Na luta do bem contra o mal, é sempre o povo quem conta os mortos”, escreve Eduardo Galeano.

O início de 2012 no país de Dante Alighieri e Michelangelo foi assinalado pelo despreparo para enfrentar o intenso frio que isolou comunidades e agravou o problema da energia.  Mas a população não sentiu apenas o peso do rígido inverno, que não poupou a mediterrânea Itália, fazendo gente do povo até duvidar das atemorizantes previsões sobre o aquecimento global.  No contexto de novas pressões fiscais, demissões e aumento do desemprego, um drama bem menos divulgado pela mídia também golpeia a sociedade: o suicídio de trabalhadores e pequenos empresários, que escolhem a morte à perda do trabalho e à bancarrota. Na Itália já se contam às dezenas os que sucumbiram ao desespero, afundados na lama de uma crise que não nasceu da noite para o dia, tal qual meteoro catapultado do espaço sideral, como querem fazer crer os “metafísicos das finanças”, cujas vozes são apregoadas pelos meios de comunicação  públicos e privados.

Economista que sustenta o mercado, as liberalizações e o rigor das contas públicas, Mario Monti (professor e presidente da Bocconi, prestigiosa universidade privada italiana) substituiu, sem eleições, o descarado Silvio Berlusconi. Desde então, ele, seus ministros e assessores usam, para explicar as medidas de austeridade,  uma   terminologia  que Beppe Grillo (ator, ativista político e um dos blogueiros mais ‘visitados’ no mundo virtual) chama de “metáfisica da economia”, ou “metafisica das finanças”. Enquanto proliferam palavras sigladas na arte de produzir ilusionismo, providências inflexíveis afligem os empregados – com congelamento salarial e aumento dos já pesados impostos, só para citar duas – e desesperam  os que  nem um trabalho tinham quando a crise foi finalmente admitida por governantes que até um dia antes asseguravam a solidez da  economia italiana.  Atingidos em cheio são os trabalhadores jovens e velhos, os recém demitidos, a juventude desempregada (que nunca conseguiu um trabalho de verdade e vive de fugazes atividades precárias)  e, dulcis in fundo,  os aposentados.

 

O presidente da república, Giorgio Napolitano, em seu discurso para saudar a população no início do ano, reprisou a necessidade de enfrentar a crise aliando rigor financeiro e desenvolvimento, sempre com “espírito de sacrifício” e “ímpeto criativo”. Aparentando serenidade, Napolitano não poupou as arrogâncias nacionais do velho continente, lembrando ser indispensável um esforço conjunto de todos os países europeus para a recuperação da economia. Reiteirou, contudo, que a confiança não deve ser obscurecida pelo pessimismo e que nenhuma classe social pode se eximir do preço a pagar para o saneamento das contas públicas.

 

Napolitano denunciou o parasitismo, a corrupção e outra grave “patologia italiana”: a evasão fiscal, estimada em cerca de 180 bilhões de euros, em 2009, segundo dados de Tax Researh London, a pedido do grupo parlamentar europeu Alleanza Progressista dei Socialisti e dei Democratici. A recuperação desse valor evadido garantiria, nos cálculos de economistas, zerar a dívida pública italiana em pouco mais de 15 anos.

 

Decisões tomadas neste início de março para conter os chamados “salários de ouro” – de até  600 mil euros por ano, no caso de alguns altos dirigentes –   fixam um teto de 300 mil euros anuais para o salário de administratores públicos, mas  soam risíveis diante da situação dos trabalhadores empobrecidos. Além de os italianos receberem salários entre os mais rebaixados da zona do euro, neste início do ano já dispara o alarme do aumento do desemprego no país, que alcançou em janeiro, segundo o Istat (Istituto Nazionale di Statistica) o índice geral de 9,2% e o ápice de 31,1% entre os jovens.

 

Mas não é do patrimônio dos endinheirados que sai a obrigatória cota de privações que tanto Monti como Napolitano anunciam como única forma de “salvezza” do país. Enquanto a criação de um imposto para taxar as grandes fortunas aparece apenas em discursos políticos, mais uma vez, para a salvação da economia dos ricos, impõe-se aos pobres e remediados o sacrifício de suas vidas às divindades do capital.   É dos pobres, que têm pouco, mas são muitos, que se exige imolação para o pagamento de uma crise que nasce das entranhas do sistema capitalista.

 

Salvação dos bancos

 

As medidas de austeridade atiçam as classes populares, sabedoras de que a corda arrebenta sempre em suas mãos. Espicaçam também os ânimos de políticos jovens e maduros de todas as cores políticas.  Fabrizio Frosio, do Partito delle Aziende, Piccole e Medie Imprese (PDA), em carta aberta publicada no início do ano, denunciao suicídio de pequenos empreendedores e dispara:    “Incomodou-me  e chocou-me verdadeiramente a notícia de que a BCE (Banca Centrale Europea) coloque à disposição dos bancos europeus, a um custo próximo do zero,  mais de 400 bilhões de euros, que depois são vendidos a taxas usurárias aos comuns mortais e às pequenas empresas ainda ‘vivas’”. Frosio faz um apelo para que os italianos se rebelem contra as rapinas feitas “sem capuz” por instituições bancárias, seguradoras e organizações voltadas à recuperação forçada e desumana, que está levando a numerosos suicídios: “Basta  de bancos sem escrúpulos e cheios de cadáveres e sobretudo basta com as estratégias do grande ‘culto’ (aqui se refere a Monti), que, no final das contas,  se revela somente um ‘pobre homem’, rico apenas de poder e falsos amigos a salvaguardar.”

 

No último dia de fevereiro deste ano bissexto chegou  a notícia de que o Banco Central Europeu acabara de entregar a instituições bancárias  um total de 529,5 bilhões de euros, a uma taxa de 1%,  em 36 meses. Desse máxi empréstimo, do qual 139 bilhões terminaram nas mãos de bancos italianos, reclama  Antonio Di Pietro, líder do partido Italia dei Valori e crítico assíduo do governo técnico de Monti,  que, segundo ele, está se tornando “o governo da propaganda, de modo sóbrio,  mas mortal”.

 

“Chega de favorecimentos aos bancos”, protesta Di Pietro, lembrando  que  se trata do segundo empréstimo de grande monta oferecido ao sistema bancário no prazo de dois meses.  O precedente, concedido em 21 de dezembro de 2011, foi de 489 bilhões de euros, dos quais um quarto do valor destinou-se a bancos italianos. Di Pietro destacou-se por sua liderança como magistrado e procurador da república no processo judicial que ficou conhecido como “Mani pulite” (Operação Mãos limpas). A investigação judicial, de grande amplitude, desencadeada nos anos 90, averiguou um devastador sistema de corrupção, financiamentos e atos ilícitos ligado ao mundo político e financeiro italiano, batizado de Tangentopoli” (“tangenti” eram propinas cobradas para conseguir  empréstimos, ganhar licitações ou fazer qualquer operação envolvendo valores ilegais).

 

Foram denunciados no processo ministros, deputados, senadores, empresários e até um ex primeiro ministro. Partidos históricos como Democrazia Cristiana desapareceram, políticos e industriais incriminados chegaram a cometer suicídio e os efeitos foram de tal envergadura a ponto de se  considerar que “Mani pulite” teria sido responsável pelo fim da Primeira República Italiana.

 

Sobre os empréstimos concedidos aos bancos no auge da crise atual, Di Pietro  declara,  no seu blog: “Este dinheiro deveria servir ao país e ao seu crescimento, não aos banqueiros e suas especulações. Os banqueiros já  embolsaram outro empréstimo multimilionário, especularam fartamente e encheram os bolsos às custas do Estado, deixando no desespero empresas e famílias que necessitavam de algum pequeno empréstimo.  O governo Monti tem o dever de impedir que este “joguinho” prossiga. Se aos bancos italianos são concedidas  essas vantagens excepcionais, eles têm que assumir a obrigação de usar os bilhões para impulsionar a Itália e não para se recapitalizarem”.

 

Em dois anos, segundo dados da CISL (Confederazione Italiana Sindacati Lavoratori), 120 mil empreendedores artesãos e trabalhadores autônomos tiveram que fechar o batente. A estimativa é de que 60 mil empresas faliram, registrando um aumento de insolvência de 53% relativamente a 2008. Recentemente, em “L’UltimaParola”,  programa de debate político apresentado por Gianluigi Paragone e  transmitido pela  Radio Televisione Italiana (RAI) compareceu um dos invisíveis desta tragédia. O homem, desempregado, contou que não consegue mais um trabalho e já chegou ao fundo do poço. De tudo o que possuía, só conseguiu preservar seu velho automóvel, onde agora vive com a mulher e um  filho adolescente.

Fim da linha

O ano de 2012 começou de forma trágica para muitas famílias italianas, feridas pela tragédia do suicídio de seus caros. Os desesperados que deram um fim à própria vida são predominantemente do até então próspero norte, mas também do já espremido sul. Somente nos primeiros dias de janeiro registraram-se 12 suicídios.  São emblemáticos casos como os ocorridos na meridional Trani, encantadora cidadezinha da Puglia, onde um homem de 49 anos se enforcou no depósito de sua empresa de climatizadores. Ao norte, em Gaggiano, na Lombardia, um eletricista de 64 anos, proprietário de uma pequena atividade, deu um tiro na cabeça. O que aparentemente levou os dois homens ao gesto extremo, segundo relatos da imprensa, foi a situação insustentável causada pela  pressão das dívidas e a certeza da  falta de saídas a curto prazo.

Talvez o que explique a decisão desses pequenos homens de negócios se suicidarem seja o fato de que eles eram, ao mesmo tempo, empregadores e operários. Frequentemente, seus empregados eram velhos conhecidos, que com eles conviveram  uma vida inteira, muitas vezes morando  no mesmo bairro ou até na mesma rua. Por isso, para esses pequenos empregadores, tomar a decisão de demitir não significa cumprir um rito impessoal, um gesto corriqueiro num mercado sem rosto humano.

No artigo “Gli imprenditori suicidi caduti sul lavoro”, publicado no jornal Corriere della Sera,  Dario Di Vico, autor do livro Piccoli –  La pancia del paese (Editora Marsilio, 2010), julga que é preciso considerar os pequenos empresários e artesãos que se suicidam como “caídos do trabalho”, aos quais se deve todo  o reconhecimento público. “Eles merecem pelo menos que as associações honrem sua memória, como se faz, justamente, em relação a um grande número de operários que terminam cruelmente seus dias na fábrica, esmagados por uma máquina ou intoxicados por algum veneno.”

Lendo as magras biografias dos suicidas, o jornalista – também autor de “Industrializzazione senza sviluppo” e “Profondo Italia” – descobriu que alguns deles já haviam sofrido golpes violentos em família ou na comunidade.  “O individualismo tinha se transformado, de poderoso fator de mobilização de energia, em nua e crua solidão”, avalia Di Vico.

Giuseppe Nicoletto, Paolo Trivellin, Walter Ongaro e outros “caídos do trabalho” citados por Di Vico em seu artigo, representam “casos de empreendedoria corajosa e batalhadora que o mercado conheceu dia a dia, na sua versão mais realista e seletiva,  e não naquela visão teórico-acadêmica que se pode encontrar em manuais de management.”

Geralmente, trata-se, na análise do autor de “Piccoli”, de ex-operários que, com muito sacrifício, tinham criado sua própria empresa e que, na nova condição de “patrões” não tinham esquecido o mundo e os sentimentos dos quais provinham.  E os dados sobre o emprego e a conjuntura econômica italiana parecem provar isso, reputa  Di Vico: “Os ‘Pequenos’, em toda Itália,  cortaram os postos de trabalho em proporção mínima em relação a quanto suas empresas perderam em termos de lucro no horribilis 2009.  A redução de   30%  (que é a média registrada para o período) nunca se tornou 30% a menos de empregados.”

Até o fim, descreve o jornalista, “os artesãos se recusam a dispensar seus próprios colaboradores, até chegarem, alguns, ao trágico paradoxo de se matar antes de demitir alguém com quem assumiram um compromisso na condição de empregadores. O famoso ‘pacto social’, termo que nunca falta nos discursos preparados pelos  ghost writer, os Pequenos  defendem assim. Com a própria pele.”

Conforme o autor, o que deve ser aclarado e apreendido a partir desses tristes fatos é que, nos vários sistemas de valores que existem nas sociedades modernas, alguns dominam a opinião pública, se afirmam em sua hegemonia e ditam estilos de vida.  Outros, ele conclui, “permanecem ocultos, são invisíveis aos demais ou objeto de ironias levianas, mas conservam teimosamente a coerência dos seus códigos de honra”.

É por isso que, para Di Vico   não  foi  excesso de trabalho que matou os Trivellin e os Ongaro: “O que  matou esses filhos de um calvinismo menor, e pelo que devem ser respeitados e recordados,  foi  excesso de ética”.

Bancarrota e suicídio

No cenário de falências, a setentrional Lombardia aparece na frente, seguida pelo Vêneto. A quebradeira atinge principalmente pequenas empresas, em grande número da área de construção civil. Do total, 75% dos empresários obrigados a fechar as portas tinham um volume de negócios não inferior a dois milhões de euros antes da crise, segundo estimam alguns institutos de pesquisa.

A decadência econômica aparece relacionada com episódios de suicídio, revela uma pesquisa do Eures, relativa ao ano de 2009 e divulgada em janeiro de 2012. Entre os desempregados, pequenos empresários arruinados e aposentados empobrecidos uma constatação dolorosa emerge: um suicídio por dia.

De acordo com o instituto de pesquisas econômicas e sociais já  havia, na Itália,  desde 2009, um aumento significativo de suicídios (da ordem de 5,6% relativamente ao ano de 2008),  por motivos econômicos, e principalmente entre os homens, mais frágeis diante da perda do trabalho.  Foram registrados 2.986 suicídios ao longo daquele ano em que a crise econômica não se apresentava ainda em toda a  gravidade atual.

A incidência entre os homens foi de 78,5% contra o percentual de 21,5% na população feminina, o índice mais alto registrado nas últimas décadas. Aparece, também, em constante aumento, nesta pesquisa, a predominância masculina entre as tentativas de suicídio. Segundo o Eures, o que parece caracterizar o fenômeno é a sua relação com o aumento do desemprego. Entre os suicidas de 2009, um total de  357 estavam sem trabalho.

Em termos relativos se evidencia o fato de que ter sido expulso do mercado de trabalho constitua um fator de impulso ao suicídio, pois se registraram 18,4 dos suicídios a cada 100 mil desempregados, contra 4,1 entre os que ainda estavam trabalhando quando puseram termo à própria vida.

Também aponta uma conexão direta entre o fenômeno e a crise o fato de que  2009 registre o índice mais alto da década (198 casos, com um crescimento de 32% em relação a 2008 e de 67.8% relativamente a 2007). Em termos relativos, a pesquisa mostra que os suicídios por motivos econômicos chegam a representar, naquele ano, 10,3% do fenômeno, contra 2,9% registrados no ano 2000, pelos mesmos motivos. E este problema humano demonstra ser avassalador entre os homens, confirmando como a perda do papel social e da identidade como trabalhador possa golpear de modo fatal o mundo masculino.

Sem meias verdades 

A crise que se aprofunda fere também sem piedade o mundo feminino, atingindo, entre tantas mulheres, operárias que produziam míticas meias de seda que alimentaram o imaginário de gerações de italianos.   Dois dias depois do último natal, cerca de 250 trabalhadoras da Omsa, fábrica localizada em Faenza, na Emilia Romagna,  foram presenteadas, através de um fax, com a notícia da demissão.  As mulheres foram comunicadas de que, em  março de 2012, escancaram-se para elas as portas do desemprego. O estabelecimento industrial vai ser transferido para a Sérvia, onde os custos de produção são mais baixos e o operariado local submetido a um regime de exploração ainda maior.

O otimismo que as trabalhadoras mantinham aceso apagou-se depois que as negociações fracassaram e elas ficaram diante da opção que a empresa lhes ofereceu: ficar em casa ou  transferir-se para a Sérvia, sujeitando-se às condições trabalhistas degradadas no país balcânico que a fábrica escolheu para aumentar seus lucros.

Alcançando rapidamente apoio público, as operárias lançaram na Web um apelo ao boicote da empresa, que, através de um comunicado, defende-se, alegando o princípio da “liberdade de empresa”. A Omsa argumenta que o fechamento do histórico estabelecimento de Faenza se deve à agressiva competição dos países com baixo custo de produção, que acolhem os empreendedores estrangeiros com uma cascata de incentivos econômicos.

Autor do livro “Mani bucate” (Editora Chiarelettere, 2011), o jornalista  Marco Cobianchi explica que a concorrência não é mais entre empresas livres, mas entre estados nacionais que se enfrentam com golpes de incentivos e subsídios. Ele afirma que não somente o menor custo do trabalho, mas sobretudo a chuva de subsídios, impensáveis em qualquer país da zona do euro, atraem as empresas para países como a Sérvia.  Cobianchi, que também escreveu “Bluff, perché gli economisti non hanno previsto la crisi e continuano a non capirci niente” (Orme Editore, 2009), lembra  que o motivo da Omsa é o mesmo que levou as empresas  Fiat, Generali, Intesa Sanpaolo, Unicredit, Benetton e Fantoni a se transferirem  para a Sérvia: os incentivos estratosféricos oferecidos pelo governo daquele país.

Em “Mani bucate”, que Cobianchi apresenta como a primeira investigação sobre empresas mantidas com a ajuda do Estado –   há uma lista de  todos os incentivos que a Fiat obteve quando decidiu reabrir a sua “histórica” fábrica em  Kragujevac, o que causou, de fato, o fechamento do estabelecimento de Termini Imerese, na Itália. Ele escreve: “Precisei de três páginas de “Mani bucate”  só para per elencar  os títulos dos incentivos sérvios à Fiat, que,  sintetizando, tratam-se de isenções fiscais que vão dos   cinco mil  aos dez mil  euros anuais para cada vaga de trabalho criada no país (incentivo que também foi oferecido à  Omsa); una “free zone” que permite a importação dos pré-fabricados necessários para produzir os carros sem praticamente pagar taxas; nenhum imposto ao município de Kragujevac por dez anos; terrenos gratuitos para o conjunto de pequenas atividades industriais e comerciais que se desenvolverem em torno do grande complexo; vantajosos acordos comerciais firmados pela Sérvia com a Rússia, União Europeia e Estados Unidos que permitem exportação dos produtos para toda aquela área sem pagar taxas.”

As isenções fiscais de cinco a dez mil euros para cada emprego criado faz com que o custo da mão de obra, nos 12 primeiros meses, seja praticamente zerado, considerando que o salário médio de um operário sérvio é de cinco a seis mil euros por ano. E isso não é tudo, pois entre as  vantagens há também a isenção por dez anos de impostos sobre os lucros para investimentos superiores a sete milhões de euros ou para  empresas  que abram frentes de trabalho para 100 novos empregados.

Enquanto isso, como denunciam sindicatos de trabalhadores, as regiões italianas nada fazem  para evitar a ida das empresas para fora. Na Emilia Romagna, onde se localiza a Omsa, sequer foi discutido um projeto de lei de 2010, que previa  punição para as que fossem  embora,  revogando incentivos retroativos até dez anos.Enquanto a proposta não sai da intenção e empresas emigram, contraditoriamente, multiplicam-se, patrocinados pela própria região, encontros e seminários. Os eventos servem para esclarecer como é conveniente, por exemplo,  “fare business” na Sérvia, onde investimentos diretos gozam de até 25% de financiamentos do governo a fundo perdido. Além disso, outra vantagem é o livre comércio entre a Sérvia e o trio Rússia-Bielorrússia-Czaquistão (170 milhões de pessoas), que permite exportar para aqueles mercados somente pagando reduzida taxa alfandegárias de 1%.

 

Brigadas teatrais

Nesse cenário de perdas e danos para os trabalhadores, as  operárias  da Omsa não esperam de braços cruzados a  data do desemprego coletivo e a atual promessa de  “cassa integrazione” (algo semelhante ao salário desemprego),  por seis meses. Além de  desencadearem uma mobilização em todo o país, através da internet, as operárias ousaram experimentar uma nova forma de luta. Abriram uma frente cultural para suas manifestações, através do teatro de rua e de um documentário.

As brigadas teatrais Omsa se comunicam com meia Itália. Vestidas de vermelho, elas expressam sua dor enquanto combatem, encenando o documentário “Licenciata!” (“Desempregada!”), nascido de sua experiência teatral.  Mulheres que passaram mais de 23 anos confeccionando e controlando a produção de meias,  entre as paredes da fábrica, agora percorrem estradas reais e virtuais, disseminando sua luta. Uma delas denuncia: “Eles vão para a Sérvia porque querem ganhar mais dinheiro, e pouco se importam com quem, sem lamentar-se, fatigou duramente 20 ou 30 anos. E talvez seja este o problema: sempre trabalhamos sem dizer nunca nada”.

Com o teatro, as trabalhadoras conversam com sua gente no meio das ruas, e com o documentário (já inscrito para concorrer ao prêmio  “Doc in Tour 2012 Emilia-Romagna”), alcançam o mundo.  Outra das operárias, que como as demais nunca havia feito teatro,   assim expressa o momento que está vivendo: “Você não é ninguém, 20 anos de sacrifício e permanece sendo apenas um número, aprisionado no braço da ‘morte’.” Ela se refere à   ‘morte civil’  dos que, fora do mercado de trabalho, nada mais contam. São apenas supérfluos.

Vozes do alto

Em outras partes do Bel Paese homens levantam a voz para defender seu trabalho.  No Aeroporto Leonardo da Vinci de Roma, em Fiumicino, pelo menos mil trabalhadores correm o risco de perder o trabalho, segundo denunciam os sindicatos de categoria. A arriscar a pele são os que atuam na Divisione Tecnica Alitalia, por causa de uma controvérsia ligada a trabalhadores da Argol, organização que desde 1994 se encarrega da movimentação de componentes aeronáuticos e  da logística relacionadas à operação da companhia aérea Alitalia.

Stefano Monticelli, secretário regional da Filt-Cgil (Federazione Italiana Lavoratori Trasporti)  declarou à imprensa que se está diante de uma incongruência: enquanto o aeroporto de Fiumicino assinala um constante crescimento, os trabalhadores vivem diante da ameaça concreta de demissões e precarização. Os dirigentes sindicais ligados ao setor entendem que este problema localizado é apenas a ponta do iceberg de uma situação mais alarmante, relacionada ao desrespeito de cláusulas sociais, o que coloca em perigo também  4500 trabalhadores da Alitalia, atualmente em “cassa integrazione”, e aos quais poderia não ser garantida a recolocação. La “cassa integrazione” é uma ajuda econômica às empresas em dificuldades por parte do governo, que substitui o empregador no pagamento do salário de trabalhadores ou complementa o salário de operários que trabalham em horário reduzido.

O que também preocupa os trabalhadores italianos é que os seus contracheques,  segundo estudos do Eurispes, relativos a 2010, estão entre os mais rebaixados da Europa. Entre 30 países, a Itália ocupa o 23º lugar, com um salário médio anual de 21.374 dólares, superando países como Portugal (19.150 dólares por ano). Na classificação da Ocse (Organizzazione per la  Cooperazione e lo Sviluppo Economico) entre os dez primeiros classificados  se encontram : Coreia do Sul (39.931 dólares anualmente), Reino Unido (38.147), Suiça (36.063), Luxemburgo (36.035), Japão (34.445), Noruega (33.413), Austrália (31.762), Irlanda (31.337), Países Baixos (30.796) e Estados Unidos (30.774).

Comparativamente com outros trabalhadores europeus, os italianos recebem um salário 44% inferior ao de um  inglês e 19% mais baixo do que o de um grego. Enquanto os empregados sentem o peso dos salários rebaixados, a pior situação é vivida pelos que não têm nenhum trabalho.  Conforme registro do Istituto di Statistica Nazionale, o desemprego, em janeiro de 2012, atingiu a marca de 9,2%, o  pior índice desde 2004.   A condição mais penosa  é a dos jovens: um deles, a cada três em busca de trabalho,  não consegue uma ocupação. Para agravar o problema, as novas regras aprovadas no governo Monti, relacionadas à aposentadoria, aumentam o tempo de serviço, forçando os  mais velhos a ficarem mais tempo no mercado de trabalho.

Na Itália, mandar um trabalhador para a rua não é tão difícil como em países do norte europeu, como a  Alemanha, por exemplo, onde hoje é possível demitir somente por  justa causa. E deve ficar ainda mais fácil se forem aprovadas as reformas trabalhistas propostas pelo governo técnico, como a mudança do Artigo 18 do Statuto dei Lavoratori.  Tal artigo garante que a demissão é válida apenas se acontece por justa causa ou motivo justificado. Se faltarem tais pressupostos, um juiz do trabalho declara a ilegitimidade do ato e ordena a reintegração do trabalhador na mesma função que ocupava antes.

A mudança que o governo Monti propõe prevê que trabalhadores  contratados por tempo indeterminado teriam que passar por um período probatório de seis meses, no qual não seriam tutelados,   segundo o que assegura hoje o artigo 18 (reintegração no posto de trabalho e ressarcimento por danos causados em caso de demissão discriminatória).

Isso significa que durante os seis meses probatórios o empregador poderia livremente demitir sem justa causa ou por motivo justifificado. De modo que, sem as garantias do Artigo 18, os demitidos não mais poderiam dirigir-se ao juiz para obter reintegração ou qualquer ressarcimento. Outra grave mudança, mesmo para os que viessem a superar os seis meses de prova, é que a empresa teria a faculdade de demitir por motivos econômicos ou de organização, pagando apenas uma indenização compatível com o tempo de serviço. Só ficariam livres deste perigo os contratados por tempo indeterminado e já tutelados pelo artigo 18.

Enquanto no outro lado do oceano, nos Estados Unidos, um empresário pode mandar embora um empregado sem nenhum problema e sem ter qualquer obrigação de reintegrá-lo,   o professor Monti avança no processo de flexibilização das relações de trabalho na  Itália.  E, para chegar a isso, parece contar com um aliado importante: o presidente da república Giorgio Napolitano.

O governo garante que vai ouvir os representantes dos trabalhadores, separadamente, mas já deixou claro que decidirá sozinho, sem aceitar vetos. Susanna Camusso, líder da Cgil (Confederazione Generale Italiana del  Lavoro), em manifestações públicas e declarações à imprensa, tem sido categórica: “No artigo 18 não se toca, sobre este ponto nós não negociamos.” Em encontro com a ministra do Trabalho, Elsa Fornero, a sindicalista disse que a central está disposta a dialogar, desde que o artigo 18 permaneça intocado, pois se trata de uma conquista histórica para salvaguardar os direitos dos trabalhadores e impedir  demissões.

 

Horror econômico

A luta de homens e mulheres para preservar seu trabalho, o drama dos demitidos de todos os cantos, o desespero dos desempregados, as mortes dos “caídos por excesso de ética”, assim como as incontáveis batalhas perdidas por  trabalhadores em todo o mundo,  fazem pensar no  “horror econômico”,  expressão criada pela escritora francesa Viviane Forrester,.  Ela é autora de numerosos livros, entre eles  “L’Horreur Economique”, publicado  em 1996, e que em poucas  poucas semanas foi  comprado por mais de 160 mil pessoas. Traduzida em várias línguas, a obra figurou entre as mais lidas naquele ano, tendo sido erguida como uma bandeira por operários e desempregados em suas manifestações.

Forasteira no mundo dos “metafísicos da economia”, a escritora retrata, no seu denso ensaio sobre o “horror econômico” que massacra os viventes,    a angústia da exclusão através do olhar dos desempregados.  Deve-se lembrar, escreve a autora de “Uma estranha ditadura” e “O crime ocidental”,  como é “pouco importante a sorte das almas e dos corpos camuflados nas estatísticas e usados apenas como um modo de calcular.”

Ao desvelar, com seu texto contundente, a globalização da pobreza, Viviane Forrester faz tremer quando  nos leva a  constatar que já se superou a fase da  exploração do humano gênero até a última fronteira da miséria. Na ótica das potentes classes dirigentes da economia privada,  já foi ultrapassado o limiar insustentável em que a multidão de deserdados é  simplesmente considerada supérflua.

“Não subalternos nem reprovados: supérfluos E por essa razão, nocivos. E por essa razão…”

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