Por Renan Truffi e Rodrigo Martins.
Florestas e parques nacionais brasileiros correm o risco iminente de perder uma área de 80 mil quilômetros quadrados, o equivalente ao território de Portugal, alerta o World Wide Fund for Nature, conhecido pela sigla WWF, organização internacional de proteção ambiental. Em seu mais recente dossiê, divulgado na quarta-feira 17, a entidade é categórica: “O Brasil vive uma ofensiva sem precedentes sobre as áreas protegidas”.
Ao cabo, a ameaça paira sobre cerca de 10% do território preservado, em uma “estimativa conservadora”, destaca o WWF. “Pressões para desfazer ou diminuir o tamanho ou o status de proteção de Unidades de Conservação promovidas por integrantes da base parlamentar do governo Michel Temer e com forte lobby dos setores ruralista e de mineração têm encontrado espaço para prosperar, com o apoio do Planalto.”
Entre os ataques citados no relatório da ONG figuram as medidas provisórias 756 e 758, editadas por Temer no fim de 2016, aprovadas pela Câmara na semana passada e pelo Senado na terça-feira 23. Os textos ampliam as possibilidades de exploração econômica em vastas áreas da Amazônia, que sofrem com a expansão das fronteiras agrícolas e com a corrida de garimpeiros e empresas de mineração.
A Floresta Nacional do Jamanxim, localizada em Novo Progresso, no Pará, teve a sua extensão reduzida de 1,3 milhão para 557,5 mil hectares. Não é tudo. Relator da MP nº 756, o deputado José Priante, do PMDB, rebaixou a categoria de 486 mil hectares da floresta de unidade de conservação para área de proteção ambiental (APA). Na prática, isso permite a venda de terras, a extração de madeira e a exploração da agropecuária e mineração. Apenas o território aberto a atividades econômicas equivale a três vezes o tamanho da cidade de São Paulo.
O peemedebista deu um jeito de incluir ainda um “jabuti”, como são chamadas as emendas parlamentares sem relação com o texto original. Graças à manobra, o Parque Nacional de São Joaquim, em Santa Catarina, perdeu 10 mil hectares ao ser rebatizado como “Parque Nacional da Serra Catarinense”.
Com as alterações feitas na MP nº 758, relatada pelo maranhense José Reinaldo, do PSB, outra unidade de conservação no Pará, o Parque Nacional do Jamanxim, perdeu 315 mil hectares. Desse total, 71 mil terão status de proteção maior, sendo incorporados à Floresta Nacional do Trairão, mas 265 mil hectares ficarão mais desprotegidos – se tornarão duas APAs, a do Rio Branco e a do Carapuça, também entregues ao desmatamento de “corte raso” para atividades econômicas.
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Na prática, o Congresso reduziu a proteção de uma das áreas mais vulneráveis do País. Segundo estudo divulgado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, o desmatamento na região atingiu 8 mil quilômetros quadrados em 2016, número 28,7% superior ao do ano anterior. Em números absolutos, o Pará figura como recordista no ranking da devastação. Perdeu 3.025 quilômetros quadrados de cobertura vegetal.
Para reduzir a proteção dessas áreas, o governo e os ruralistas apontam a necessidade de construção de uma ferrovia conhecida como “Ferrogrão”, entre Mato Grosso e Pará, e a regularização fundiária de pequenos produtores rurais. Ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho afirmou, em entrevista a CartaCapital, não ver “retrocesso ambiental por enquanto”.
A Medida Provisória nº 759, que trancava a pauta do plenário da Câmara e foi aprovada na noite desta quarta-feira 24, prevê alterações em mais de uma dezena de leis brasileiras e muda profundamente as regras relacionadas ao Programa Nacional de Reforma Agrária, como veremos adiante.
“Em 2009, o governo identificou que as ocupações legítimas poderiam ser regularizadas com a desafetação de 80 mil hectares. Depois disso, várias operações da Polícia Federal revelaram que a grilagem e o desmatamento aumentaram na região, sob o controle do crime organizado”, explica Ciro Campos, biólogo e analista do Instituto Socioambiental. “Nesse cenário, regularizar todos, sem diferenciar famílias com ocupações legítimas e grileiros, é uma mensagem de que o crime compensa e um incentivo à invasão de terras públicas.”
No discurso do Planalto, as mudanças vão propiciar aos assentados os títulos definitivos das terras onde vivem. Mas o resultado prático deve ser o aumento do assédio de grandes fazendeiros sobre pequenos assentamentos e agricultores familiares beneficiados pelo programa nos últimos 30 anos. A MP nº 759 autoriza o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a conceder o título de domínio das terras a todos os assentamentos com ao menos 15 anos de implantação.
O prazo poderia até ser considerado razoável, se não fosse contado a partir da data de regularização do assentamento. Pela lei agrária atual, esse prazo só poderia ser contabilizado a partir da concessão de créditos de instalação e da conclusão dos investimentos nos locais. Ou seja, mesmo assentamentos sem equipamentos mínimos de infraestrutura podem ser emancipados.
Com os títulos em mãos e sem condições básicas para viver no local, pois as áreas padecem de falta de saneamento básico e acesso a insumos e meios para escoar a produção, os agricultores familiares podem se ver forçados a vender essas propriedades para o agronegócio.
“Essa titulação proposta pelo governo veio para tirar o homem do campo e reconcentrar a terra na mão do latifúndio”, resume Alexandre Conceição, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. “A medida provisória como um todo é o retrocesso da reforma agrária. A Constituição garante que a titulação tem de ser feita a partir da emancipação do assentamento: 80% dos assentamentos não têm a infraestrutura resolvida e acesso a todos os créditos.”
Desde 1995, 88 milhões de hectares foram adquiridos ou desapropriados para fins de reforma agrária no Brasil. O resultado é que todo esse território, equivalente a uma vez e meia o tamanho da França, pode entrar de vez no mercado de terras em alguns anos se os assentados ficarem sujeitos ao assédio de latifundiários.
- O objetivo é vender o território a estrangeiros, diz Rodrigues (Foto: Antonio Augusto/Câmara dos Deputados)
“A alteração na Lei Agrária tem um objetivo claro: livrar-se dos assentados da reforma agrária”, lamenta o engenheiro agrônomo e presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária, Gérson Teixeira.
Em nota técnica enviada aos parlamentares, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, vinculada ao Ministério Público Federal, sustenta que a proposta é inconstitucional por não ter “elementos que evidenciem urgência para sua edição”, preceito básico para uma medida provisória.
“Causa enorme espanto a adoção de medida extraordinária pelo presidente da República para modificar mais de uma dezena de leis ordinárias aprovadas pelo Congresso, algumas das quais são fruto de processos legislativos que envolveram grande participação popular, o que representa grave distorção do sistema democrático”, diz o texto.
Em dezembro de 2016, o deputado petista Patrus Ananias, ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, já havia denunciado outra armadilha da proposta: a municipalização do processo de regularização fundiária de assentamentos. “A nossa história demonstra que a grande força contrária a reformar o campo sempre foi a das oligarquias rurais locais, costumeiramente ligadas aos poderes políticos locais”, observou à época, em manifesto a alertar para o risco de legalização da grilagem.
O colega Edmílson Rodrigues, do PSOL do Pará, acrescenta: o principal objetivo é permitir a venda de terras rurais a estrangeiros, como prevê o Projeto de Lei nº 4.059/2012. “A aprovação desta medida provisória somada à extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário representa a consolidação do rojeto de estrangeirização de nossas terras”, escreveu Rodrigues, em recente artigo publicado pelo site de CartaCapital.
Segundo o parlamentar, 2,81 milhões de hectares já estão nas mãos de estrangeiros, o que representa mais do que todo o território de Alagoas. O governo Temer busca apenas retirar os entraves para a alienação do território nacional. “Entregam o patrimônio público e distribuem senhas ao agronegócio, provocando intensa violência social.”
Fonte: Carta Capital