Por Raquel Rolnik.
Um dos personagens da Independência, eternizado no primeiro verso do Hino Nacional como o palco do mítico grito “Independência ou morte” de Dom Pedro I, o riacho do Ypiranga, ou o que sobrou de suas “margens plácidas”, é uma espécie de metáfora da nação que construímos.
Que rio é esse? Entre a fantasia e a realidade, conta a história que aprendemos na escola que Pedro I e sua comitiva passaram pelo vale do Riacho Ypiranga, um dos caminhos que levavam de Santos a São Paulo. Foi com a expansão da cidade na esteira dos excedentes da exportação do café que, no final do século 19, início do 20, a região começou a ser ocupada. Em 1893, depois de uma crise de falta de água, a administração da província de São Paulo desapropria ali uma grande área, criando assim o Parque das Cabeceiras do Ipiranga, – que conhecemos hoje como Parque Estadual das Fontes do Ipiranga –, para garantir o abastecimento de água da cidade.
O sistema contava com três reservatórios que abasteceram a região até 1928, quando a São Paulo Tramway, Light and Power assumiu o conjunto e o desativou, tornando a Guarapiranga o principal sistema de abastecimento da capital paulista. Desde então, a área desapropriada se transformou em um parque público. Em 1928, ali se instalou o Jardim Botânico e, posteriormente, o Jardim Zoológico, o Observatório de São Paulo, o Parque de Ciência e Tecnologia da Universidade de São Paulo (CienTec da USP), entre outros equipamentos. A existência e a manutenção desta área como parque permitiu a proteção da mata atlântica e também da nascente do rio, até hoje preservada.
Fora da unidade de conservação, no entanto, o destino do Ypiranga até o seu deságue, no Tamanduateí, é muito parecido com a trajetória dos 1,5 mil quilômetros de rios e córregos que temos em nossa metrópole: canalização, entubação, poluição por esgoto e lixo e degradação. O rio foi canalizado em 1942, marcando o início, a cada mês chuvoso, das inevitáveis inundações na região. Retidas em canais retilíneos e galerias subterrâneas, sem suas curvas e meandros, as águas correm com muito mais velocidade e, portanto, com maior potencialidade de provocar enchentes.
Em 2019, como parte do projeto de restauração do Novo Museu do Ipiranga, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) iniciou um trabalho para que o córrego do Ypiranga ficasse limpo a tempo das comemorações do bicentenário da independência brasileira, celebrado no ano passado. Aumentou a quantidade de esgoto captada de seus afluentes, mas o rio continua poluído e fedorento. Além disso, o córrego está longe de ser livre: o Ypiranga não escapou de nossa política empreiteira de macrodrenagem limitada às defasadas canalizações e seus correlatos contemporâneos, os piscinões. Neste exato momento a Prefeitura de São Paulo está investindo na construção de dois piscinões em seu leito.
Duzentos e um ano depois, o riacho do Ypiranga é a metáfora da nação, cuja data de nascimento é festejada neste 7 de setembro. Poluído, sujo, oprimido pelas toneladas de concreto das políticas de drenagem que negam os rios, poderíamos dizer que do grito “independência ou morte”, a cena está mais para morte. Mas, as nascentes e os metros de rio limpo e vivo que correm dentro do parque é este outro pedaço da história: minoritário, porém resistente, desafiando a imaginação de um futuro onde o Ypiranga será um dos rios renaturalizados e vivos da nossa cidade.
(*) Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade.