O tempo é um cretino dúbio e mequetrefe. Intrometido volta quando quer e da forma que lhe convém. Se você não o segura o tempo faz e desfaz com a história. Daí que é preciso reter aquela vida que já passou, mesmo que venha tingida de lendas, meias verdades, verdades absolutas e mentiras impiedosas. Retê-la e ressuscitá-la. Um pedacinho que seja, uma lasquinha, para que nessa história aconteçam sinais vitais. Quem sabe dessa lasca surja outra vida necessária para o presente e o futuro.
Foi mais ou menos essa lasquinha que radiou entre nós no limiar de 2019. Havia que recuperar de novo (tantas vezes as coisas se perdem nos porões do esquecimento) a história da Novembrada. Digo recuperar de novo porque, sejamos justos, todos os anos tem mulheres e homens dispostos a lembrar-nos desse ato de nobreza coletiva e popular que se passou em 30 de novembro de 1979 em Florianópolis, ou melhor, em Desterro. Há quatro décadas o petit pavê da Praça XV marcou, em seu infinito de sinais brancos e pretos, os passos da multidão em justa batalha por direitos.
Assim, entre os claros e escuros do tempo fomos mergulhar em lembranças que se tornaram uma contação apaixonante para a maioria de nós; para todas e todos da Cooperativa Comunicacional Sul. Bom é dizer que pouquíssimos da equipe têm mais de 30 anos. Os mais velhos fizemos respeitoso silêncio e deixamos que essa juventude sedenta de saber fosse a campo e perguntasse, insistisse, duvidasse, até obter a argamassa para construir um novo documentário sobre a Novembrada.
Tudo bem, aí estavam as respostas; 24 entrevistados e entrevistadas e mais de 100 respostas. Talvez se precise algo mais digerível para poder apresentar isso tudo, talvez. Um pouco de delírio seria capaz de organizar os ingredientes. Uma inesperada alegoria que falasse também de nós, da nossa profissão e não só da história. Uma alquimia que misturasse tudo numa panela de desejos.
O jornalismo já não era suficiente, e menos ainda um passado sem presente nem futuro. Comparar; é tão duro comparar o hoje e o passado. É tão diversionista nossa mirada que nos perdemos em um labirinto de espelhos. Enfim fomos adiante. Há que contar, comparar, ler e ver o que temos entre as mãos. Quais ferramentas? Quanto tempo para a tarefa, quanto desaparecido que não enterramos dignamente e quanta esperança que teima a andar entre nós.
E se fez. Acabou em alegoria e em jornalismo, em rap e violinos, em um “tenho que dizer”, porque alguém necessitava dizer. Nicolle foi nós durante 5 meses. Ela procurou dizer que este hoje é o resultado daquilo que não ficou bem resolvido, em aberto, como uma ferida incurável que dói muito quanto a gente toca. Ou ela fez com que alguns e algumas dissessem isso. Cantassem isso.
Assim foi. A partir de nós, jornalistas, cinegrafistas, fotógrafos, revisores, professores e “uma atriz de profissão atriz” nasceu Quarenta. Nasceu pelo compromisso com as lutas populares. Nasceu porque Desacato.info tinha a necessidade de conversar, falar e gritar.
É que há muita esperança de que uma ditadura não se repita Nunca Mais, embora o tempo, esse ser incógnito e tormentoso, tenha aberto de novo as portas do inferno.