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“O projeto é um retrocesso, porque, dentre outros motivos, não descriminaliza nem qualifica o usuário, aumenta penas que só vão prender mais gente, retoma a arcaica internação involuntária com brechas para internar sem laudo médico prévio, inclusive crianças e adolescentes e, óbvio, cria mecanismos para facilitar o financiamento desse mercado emergente.”
Por Giordano Magri, em Carta Capital.
O Senado está votando a toque de caixa uma nova lei de drogas para se antecipar ao STF, que pautou a continuidade do julgamento sobre a descriminalização do usuário de drogas para 5 de junho. Isso significa que, ainda em maio, podemos ter uma nova legislação sobre um tema que tem impacto estrondoso no sistema prisional, na segurança pública e principalmente na vida de milhares de jovens negros e de outras dezenas de milhares de pessoas pobres que sofrem com a violência do Estado diariamente. Não esqueçamos nunca dos 80 tiros.
Essa é mais uma jogada nessa disputa de xadrez em que se transformou a relação entre os três poderes. Aliás, desde que começou esse jogo mortal para nossa democracia, parece evidente quem serão os mais atingidos com a Previdência, a facilidade de portar armas, esse zeloso desprezo pela educação e pelo meio ambiente e, agora, a mudança da política de drogas. É sempre mais fácil sacrificar o peão.
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Num Senado composto majoritariamente por homens brancos e velhos – mesmo que mulheres e jovens também estejam representados, a coisa é tão caricata que na última reunião os senadores ficaram brincando sobre quem era o mais velho – não é difícil prever que o xeque-mate se aproxima. Com uma narrativa construída em torno de supostos valores e nenhuma evidência científica, os senadores aprofundarão nossos problemas dizendo estar preocupados com o sofrimento do jovem viciado, ou melhor, da pobre mãe desse jovem (só para acabar de compor a caricatura patriarcal nefasta).
A jogada do momento é fazer o Senado aprovar o texto do PLC 37/2013, de autoria do então deputado, hoje ministro da Cidadania e aspirante a drug-czar, Osmar Terra, sem alterar o que foi votado pela Câmara em 2013.
Na última quarta-feira, 24 de abril, as Comissões de Assuntos Econômicos e de Assuntos Sociais se reuniram para aprovar o relatório do senador policial Styvenson Valentim (PODE/RN) que rejeita as emendas já aprovadas pela CCJ e pela Comissão de Educação, deixando esse jogo quase um vale-tudo ao ignorar as decisões da própria Casa.
Como as propostas de se fazer audiência pública para uma discussão mais ampla foram recusadas, o projeto será votado nas duas Comissões no dia 08 de maio, sendo remetido em seguida para Comissão de Direitos Humanos, com promessa de aprovação do relatório já em plenário.
Desde sua chegada à Esplanada no governo Temer, Terra tenta institucionalizar as comunidades terapêuticas na política de drogas, trazendo junto a ficção da abstinência. E ele é eficiente.
A Secretaria Nacional de Drogas foi esvaziada no primeiro decreto de Bolsonaro, remetendo a Terra todo o controle da política. Mais de R$ 150 milhões já foram destinados a entidades religiosas, escolhidas a dedo pelo Ministro e, no começo de abril, a Política Nacional de Drogas foi alterada para promover seu financiamento e expansão.
Caso o projeto seja aprovado assim, além do enriquecimento das igrejas e do desenvolvimento de um mercado de internações com tratamentos regados a reza e maus tratos – sem bases científicas, uma tônica deste governo, aliás – a violência tende a aumentar, pois o Estado terá novos mecanismos para controlar e destruir a vida das pessoas pobres.
O projeto é um retrocesso, porque, dentre outros motivos, não descriminaliza nem qualifica o usuário, aumenta penas que só vão prender mais gente, retoma a arcaica internação involuntária com brechas para internar sem laudo médico prévio, inclusive crianças e adolescentes e, óbvio, cria mecanismos para facilitar o financiamento desse mercado emergente.
A ciência mostra que o aumento da repressão não reduz o consumo, pelo contrário, o deixa mais perigoso (e mortal, no nosso caso). Portugal e Canadá são exemplos de que só uma regulação estrita, que permita ter informações e promover múltiplas estratégias, pode reduzir os problemas decorrentes do uso abusivo de drogas. O resto é hipocrisia e barbárie. E correria, que vai impedir avanços urgentes, como o reconhecimento da cannabis terapêutica, para que se torne, de vez, mais acessível financeiramente.
Sabemos que esse xadrez é muito maior que esse tema, mas se a jogada em curso der certo, o massacre das peças brancas contra as negras vai aumentar ainda mais.