Por Renan Truffi.
Há um longo caminho para que a redução da maioridade penal possa ser aprovada de forma definitiva no Congresso. A proposta ainda precisa ser referendada em segundo turno na Câmara antes de seguir para o Senado. Mas já é possível analisar a aplicação da medida no Brasil com base no texto da emenda aglutinativa que recebeu apoio da maioria dos parlamentares.
A proposta aprovada define que a redução deve incidir sobre adolescentes com mais de 16 anos que cometeram homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte ou crimes hediondos, com exceção de tráfico. O ponto que mais gera controvérsia no texto, no entanto, é a “criação” de locais de detenção exclusivos para a aplicação dessas penas, já que o texto diz que esses adolescentes têm que ficar separados tanto dos adultos como dos demais jovens.
A Constituição Brasileira estabelece dois caminhos para a responsabilização no Brasil. No caso dos adultos, é determinado pelo Código Penal. Para os menores de 18 anos, as normas são definidas por legislação especial, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê sanções a pessoas com idade a partir de 12 anos. A proposta aprovada na Câmara dos Deputados determina que adolescentes com mais de 16 anos passem a ser responsabilizados pelo Código Penal dependendo do crime que cometeram.
Por outro lado, o mesmo texto diz que a pena não pode ser aplicada em instituição para adolescentes nem nas cadeias comuns. Como solução para o impasse, a emenda sugere a criação de um “estabelecimento” penitenciário independente que não está previsto no ordenamento jurídico brasileiro.
“O sistema brasileiro prevê pena ou sistema socioeducativo. Não existe outra modalidade”, critica a presidenta da Fundação Casa, Berenice Gianella, responsável pela aplicação de medidas socioeducativas para adolescentes em São Paulo. “A partir do momento em que a emenda constitucional diz que ele responde como adulto, ele passa a ser imputável aos 16 anos. Então, o juiz criminal é que vai julgar. Se ele vai aplicar uma pena, tem que ser executada dentro do sistema penitenciário”, contraria.
Se hoje vários estados brasileiros têm dificuldade até mesmo de manter instituições paraadolescentes envolvidos com crimes, o receio é que, na prática, os adolescentes fiquem juntos dos adultos, mas em alas separadas, o que não evitaria o contato com presos de facções criminosas.
“Quem conhece a realidade brasileira sabe qual vai ser a prática nessas situações. Vão superlotar os outros pavilhões e reservar um outro para colocar esses adolescentes de 16 e 17 anos”, lamenta o advogado e membro do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca), Ariel de Castro Alves. “Jovens e adultos vão estar separados em tese, mas os presos já se comunicam”, enfatiza.
Relator da Comissão Especial da Redução da Maioridade Penal, o deputado Laerte Bessa (PR-DF) defende que os estados “têm que se virar”, mas deixou aberta a possibilidade de construção de unidades ou realocação em presídios já existentes. “Os estados têm que se virar para construir uma ala para eles onde for”, disse. “Agora, onde vão colocar? É do que eu estou falando. Às vezes, eles podem pegar um sistema socioeducativo aí, um presídio, e fazer uma ala separada dos menores para novos integrantes ocuparem.”
Adolescentes “enquadrados”
O texto que obteve maioria na Câmara coloca em debate também a viabilidade, sob o ponto de vista da gestão e do orçamento público, de um sistema prisional exclusivo para menores condenados por práticas de crimes graves.
Para simular o que pode vir a ser esse sistema penal exclusivo para adolescentes,CartaCapital analisou o número de menores internados na Fundação Casa, em São Paulo. O estado possui o maior número de adolescentes envolvidos em atos infracionais do País. Exatamente 9.978 adolescentes, a partir de 12 anos, estavam cumprindo algum tipo de medida socioeducativa na instituição no mês de julho de 2015 divulgados pelo governo do Estado.
Do total de jovens em cumprimento de medida, 5.929 têm entre 16 e 18 anos, faixa-alvo da proposta para a redução da maioridade penal. Entre estes jovens, apenas 219, ou 3,69%, cometeram os crimes elencados pela Câmara: homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte ou crimes hediondos, com exceção de tráfico.
Se incluirmos também os jovens da Fundação que têm 18 anos completos ou mais (142 adolescentes), já que eles podem ter cometido os atos infracionais na idade em questão, este número sobe para 361 adolescentes. Ou seja, 4,52% dos menores envolvidos em prática de atos infracionais seriam atingidos pela redução da maioridade penal em São Paulo, se a lei pudesse retroagir.
Para a presidenta da instituição, Berenice Gianella, é “totalmente descabido” criar um sistema exclusivo para o atendimento desses adolescentes. “Do ponto de vista orçamentário, não faz nem sentido. Uma instituição só para isso ficaria vinculada a qual secretaria? Quer dizer, você precisaria ter uma estrutura administrativa para cuidar de 300 adolescentes? Acho que é totalmente descabido”, diz a responsável pelo sistema que é “modelo” para o resto do País, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Uma pesquisa divulgada, em junho, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o perfil dos menores que cometem crimes no Brasil mostra que o cenário no restante do País é parecido.
Dos 25.192 delitos praticados por adolescentes em 2013, 4.087 (16,23%) foram considerados graves e incluídos na proposta que está em debate no Congresso. Isso não significa, no entanto, que o número de adolescentes seja de pouco mais de 4 mil, já que cada jovem pode estar cumprindo medida de internação por mais de um delito. Mas, mesmo que cada ato infracional grave representasse apenas um adolescente, a média seria de 145 menores “enquadrados” na redução da maioridade penal por estado brasileiro.
Maioridade penal e a “privatização”
Ainda assim, o líder do PSD na Câmara, deputado Rogério Rosso (DF), vê razão para essa parcela de menores ser alvo de projeto de lei. Para o parlamentar, a ideia de criar um sistema penitenciário exclusivo para essa minoria de adolescentes é questão de “risco de investimento”. É que, enquanto se discute a viabilidade dessa lei, deputados favoráveis à redução da maioridade penal tentam pavimentar o caminho para uma “solução” alternativa: a “privatização” desses centros de detenção.
Algumas semanas antes de a Câmara aprovar a redução da maioridade penal, commanobra do presidente Eduardo Cunha (PMDB-RJ), Rosso apresentou um projeto de lei que sugere a criação de “Centros de Ressocialização Juvenil” por meio de Parceria Público-Privada (PPP).
“Não é privatização”, rebate Rosso em entrevista a CartaCapital. “É um novo conceito. Não é nem o ECA, nem a penitenciária tradicional. É novo mesmo. (…) Para você ter uma ideia, o jovem vai trabalhar. Então as empresas que quiserem montar produtos e serviços vão poder entrar e o jovem vai gerar renda para a sociedade”, defende o parlamentar que, coincidentemente, assina a emenda aglutinativa da maioridade penal.
Como mostrou reportagem da Agência Pública, em maio deste ano, empresas que atuam na área de gestão prisional ajudaram a financiar as campanhas de pelo menos quatro deputados na Câmara: Bruno Covas (PSDB-SP), o pastor evangélico João Campos (PSDB-GO), Silas Câmara (PSD-AM) e Felipe Maia (DEM-RN). Já Rosso não recebeu doação, segundo a prestação de contas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de nenhuma dessas empresas.
Para o advogado Ariel de Castro Alves, que também foi fundador da Comissão da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da OAB, esse é um dos interesses por trás da redução da maioridade penal. “Muitos dos parlamentes que estão na Bancada da Bala são ligadas a empresas de armamento e segurança privada”, afirma. “Empresas de segurança privada querem migrar para a privatização do sistema penitenciário e explorar esse novo filão. É um mercado bastante promissor.”
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil.
Fonte: Carta Capital