Por Daniel Giovanaz.
“Estamos sempre com um pé dentro e um pé fora”. É com essas palavras que a jornalista e poetisa saaráui Fátima Galia Mohamed Salem define a vida na diáspora. Ela é uma das milhares de cidadãs nascidas no Saara Ocidental que está impedida de residir em sua terra natal, no norte da África, ocupada desde 1976 por forças marroquinas.
Limitado a norte por Marrocos, a leste pela Argélia, a sul pela Mauritânia e a oeste pelo Oceano Atlântico, o Saara Ocidental é considerado a última colônia africana e está na lista de territórios não autônomos das Nações Unidas desde a década de 1960. A independência da Espanha foi conquistada há 44 anos, mas a promessa de um plebiscito para garantir a autodeterminação dos saaráuis nunca se realizou. A maior parte do território está, desde então, sob controle do Marrocos.
No último dia 13 de novembro, forças marroquinas romperam um acordo de cessar-fogo de 29 anos e atacaram a região de Guerguerat, onde saaráuis protestavam pacificamente contra a ocupação militar e a expropriação de recursos naturais. Imediatamente, o movimento de libertação saaráui Frente Polisário declarou o reinício da guerra.
A população saaráui, inferior a meio milhão de habitantes e tradicionalmente nômade, está dividida. Além dos que vivem em territórios ocupados pelo Marrocos e dos que emigraram, milhares estão em acampamentos de refugiados na Argélia, país vizinho. Uma parcela minoritária da população vive ainda em territórios livres, onde funciona a estrutura administrativa da República Árabe Saaráui Democrática (RASD).
Para quem acompanha a guerra a distância, em plena pandemia, o momento é de angústia e expectativa. “Roubaram nossa terra, e queremos lutar”, afirma Fátima, que estudou em Cuba e hoje vive no País Basco – comunidade autônoma no norte da Espanha.
O Brasil de Fato conversou com a escritora sobre o sentimento de estar longe de casa em um momento decisivo dos confrontos. Confira os melhores momentos:
Brasil de Fato: Quando começou a diáspora da população saaráui, e qual o perfil e a situação atual dos cidadãos que emigraram?
Fátima Galia Mohamed Salem: A diáspora saaráui começou, praticamente, ao final dos anos 1990. Antes disso, não havia oportunidade de sair e viver como imigrantes.
Em 1991, quando houve o cessar-fogo com Marrocos, começou uma época em que não se vivia em guerra nem em paz. Nos acampamentos de refugiados, era um vazio. Os jovens e os homens militares, depois que voltaram da guerra, ficaram de braços cruzados.
Esses acampamentos vivem de ajudas internacionais, do que oferece o ACNUR. Então, os jovens que estudaram e não encontram emprego, com o passar do tempo, acabam emigrando. As pessoas vão em busca de oportunidade, de um pedaço de pão.
Como não tinham passaportes, eles vinham à Europa no final dos anos 1990 em aviões e barcos com vistos para residir permanentemente na Espanha – já que muitos tem origem espanhola.
No meu caso, vivo há 28 anos no País Basco. Vim, primeiro, com uma bolsa para estudar Jornalismo. Logo, cursei mestrado e doutorado. Quando terminei os estudos, fui obrigada a ficar. Primeiro, porque escrevo livros em castelhano e, nos acampamentos de refugiados, as pessoas não leem. Elas escutam.
O povo saaráui ama a palavra. Toda sua tradição foi transmitida oralmente, de geração em geração.
Hoje, a população está concentrada principalmente na Espanha e em diferentes comunidades autônomas, por uma questão idiomática e geopolítica. Pouco a pouco, alguns migraram para a França. Mas, embora não tenhamos dados oficiais, sabemos que a maioria está na Espanha.
Animação baseada no poema La Ciudad del Viento (em espanhol), de Fátima Galia Mohamed Salem
Muitos saaráuis que vivem em diáspora estão há décadas longe de sua terra natal, outros nem sequer se recordam da vida no Saara. Como você percebe essa relação subjetiva de pertencimento e identificação, apesar da distância?
Somos um povo nômade, de viajantes. Nascemos com a mala debaixo do braço. Nossos antepassados cruzavam o deserto do Saara em um momento em que não havia fronteiras nem vistos.
Não conhecíamos as cidades. Vivíamos em pequenas comunidades, e o nomadismo não nos assusta. Mas, desde que começou a guerra, as pessoas foram obrigadas a viver fechadas em acampamentos onde a vida era muito difícil. Era como um inferno.
Por razões econômicas, emigraram primeiro os jovens. Eu sempre digo que não escolhemos o lugar onde nascemos nem escolhemos ser refugiados naquele deserto, mas queremos escolher o lugar onde morar, queremos ter liberdade de circulação, para viajar e viver em qualquer parte.
Alguns pensavam que, ao chegar à Europa, tudo seria fácil. Mas não é assim. Trata-se de uma viagem a um local desconhecido. São muitos os muros, as portas fechadas.
Muitos de nós chegam doentes, porque nos acampamentos não há especialistas ou materiais adequados. Outros tantos chegam sem saber o idioma, porque o espanhol não é nossa primeira língua, o que torna tudo muito difícil.
No Brasil, a luta dos saaráuis é menos conhecida que a dos curdos ou palestinos. No seu relato, parece haver muita semelhança com as demandas e a opressão sofrida por esses povos. Vocês sentem algum tipo de identificação com esses povos?
Nós nos identificamos em quase tudo com esses povos. Simplesmente, nascemos em locais diferentes.
Quando saímos da nossa terra, é muito difícil deixar tudo para trás: os pais, as lembranças, a cultura. Quem sai, carrega a ilusão de sobreviver, encontrar um emprego e ajudar aqueles que ficaram – doentes, analfabetos, que vivem em temperaturas extremas.
“Ao ausente, não se pergunta quanto tempo ficou fora, mas o que trouxe de volta”. Esse é um ditado saaráui que não se refere apenas ao material, mas à experiência, à formação profissional.
Saaráuis e palestinos, quando chegam à Europa, enfrentam não só a barreira idiomática. Ser árabe, muçulmana, mulher, mãe, são dificuldades mesmo para uma pessoa como eu, que teve a oportunidade de estudar.
Mesmo no lugar onde me formei, o País Basco, tive que buscar trabalho fora da minha área de formação. Passei a limpar casas, cuidar de idosos. São empregos dignos, mas precários, onde há muita ingratidão. Muitas vezes, se trabalha de forma ilegal, para dar de comer aos filhos e enviar dinheiro a quem ficou nos campos de refugiados.
Embora poder emigrar seja um privilégio, sair da nossa terra implica perder, pouco a pouco, a identidade e a cultura. Sentimos falta da família, convivemos com a saudade e penamos muito para sermos aceitos no país de acolhida.
Os filhos nascem longe, no meio de duas culturas. Uma, do lugar onde nasce, e não se sente aceito. Outra, da terra dos seus pais, onde também não se sente totalmente identificado. Essas crianças estudam, mas carregam uma raça e um sobrenome que não são do país de acolhida, e que imediatamente o colocam na última fila para conseguir um emprego.
O Ocidente não pediu permissão para colonizar a África, a Ásia e a América Latina. E nós, que viemos à Europa em missão de paz, em busca de um pedaço de pão, muitas vezes não somos aceitos. Ora morremos na travessia do Mediterrâneo, ou lentamente depois de cruzar a fronteira.
Como as mulheres saaráuis que vivem longe da sua terra natal têm se organizado para contribuir nas lutas por autodeterminação?
A maioria das que tiveram a oportunidade de emigrar são intelectuais e estão integradas em associações de amigos do Saara Ocidental, movimentos feministas. A União Nacional de Mulheres Saaráuis está presente em quase todas as comunidades autônomas da Espanha.
Celebramos as festividades da mesma forma como se faz nos acampamentos, conversamos com nossos filhos no idioma natal e promovemos palestras sobre nossa causa. Cada uma de nós é um grão de areia, e nosso povo precisa da gente.
Conseguimos estudar graças à Frente Polisário. Conseguimos passaporte graças à solidariedade da nossa vizinha Argélia. Então, nos alimentamos dessa generosidade e acreditamos muito na solidariedade.
Cada uma de nós deve cumprir seu papel. A jornalista precisa difundir o que está acontecendo. A professora, ensinar às crianças. A cantora, cantar. As poetisas, escritoras, auxiliares de enfermagem, cada uma tem um papel importante a desempenhar. Estamos conscientes disso e estamos nos aprimorando, em termos de organização.
Participamos de ligas de mulheres árabes, africanas, da Marcha de Mulheres pela Paz. E a ideia é que a União Nacional de Mulheres Saaráuis seja uma ponte com mulheres de outros países.
O estudo nos fará independentes, e a mulher saaráui advoga por igualdade com os homens, não supremacia.
Na sociedade espanhola, ocidental, há muita desigualdade de salários, empregos, oportunidades. Aqui há mais violência de gênero que nos acampamentos. Nós nos sentimos privilegiadas por trazer uma cultura de respeito, em que a mulher tem direitos e tem voz.
Em novembro, a ativista Jadiyetu El Mohtar nos disse que muitos saaráuis desejam voltar ao local dos confrontos após o rompimento do cessar-fogo. Como você percebe esse sentimento, e como tem reagido pessoalmente a esse novo momento, de guerra e pandemia?
Quando saímos, temos um pé no lugar e outro na família. Estamos sempre com um pé dentro e um pé fora. Essa é nossa cultura.
O ano de 2020 foi o mais duro que vivi. Nos primeiros meses, quando começou o confinamento [por conta da pandemia de covid-19], nos sentimos como se estivéssemos presos em jaulas. Eu nunca havia passado tanto tempo sem ver minha família.
A criança que está dentro de mim, presa no País Basco, pede que eu volte para junto dos meus pais. Porque me roubaram a infância, mutilaram minha juventude. Temos sede de paz, fome de justiça.
Nascemos em um deserto aberto, em um hotel com milhões de estrelas. Não tem oásis, não tem planta. É só areia e pedra, mas nós amamos aquele deserto, porque foi lá que nascemos.
No dia 13 de novembro choramos lágrimas de alegria, mas também de tristeza, impotência.
A população civil que foi atacada protestava pacificamente contra o saque de nossos recursos pela fenda de Guerguerat. Por isso, voltamos à guerra.
Nascemos com dignidade, mas essa dignidade se completa com a independência do Saara Ocidental, independência da Palestina. Entre o confinamento e a guerra, os sentimentos se afloram.
Esperamos 30 anos por um simples plebiscito, em uma população que não chega nem a 1 milhão de habitantes. Brincaram com nossos sentimentos. Não confiamos nas Nações Unidas nem no Conselho de Segurança, porque só pensam em seus próprios interesses.
As Nações Unidas nunca evitaram invasão à Palestina ou ao Iraque, nem o bloqueio dos EUA a Cuba. O Conselho de Segurança está com os que matam, nós com os que salvam vidas.
Perdemos nossa infância, juventude. Nossas avós, nossos jovens vêm sacrificando seu sangue por essa causa, sem conseguir nada. Nosso sonho é enterrar nossos filhos de maneira digna em um Saara livre.
Mais vale uma morte digna do que uma vida miserável, onde sua terra e seus recursos são saqueados.
Eu condeno todo o terrorismo, seja em Paris, em Washington, no Saara. Mas, no Ocidente, quando morre alguém, todos os governantes se levantam. Enquanto isso, milhares de crianças morrem de fome, e nem os meios de comunicação internacional nem os governantes dão respostas.
Roubaram nossa terra, e queremos lutar. Eu estou a serviço da Frente Polisário.
Quero terminar dizendo que, devido à distância, poucos de nós foram à América Latina. Alguns saaráuis vivem no Panamá, na Venezuela, mas são muito poucos. Mas quero mandar um recado ao continente, do Caribe à Terra do Fogo: somos irmãos, falamos castelhano, e nossas lágrimas têm a mesma cor.
Somos pobres, mas, no fim das contas, quem manda é o povo. Hoje é pelo Saara Ocidental, pela Palestina, e amanhã será por outro país. E estaremos juntos, qualquer que seja a causa.
Edição: Daniel Lamir
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