Por Juan Manuel P. Domínguez.
Nos últimos tempos, tem sido cada vez mais difundido os casos de brasileiros sofrendo racismo por parte de argentinos, sobretudo em jogos de futebol. Há também nas redes sociais e em vídeos do YouTube, cada vez mais denúncias de situações racistas sofridas por brasileiros que visitam a Argentina. Uma reportagem do Washington Post durante a copa do mundo do Qatar 2022 questionava a falta de jogadores negros na seleção de futebol da Argentina. Quem escreve essas linhas é argentino e pode afirmar com muita tristeza que, na Argentina, chamar alguém de “negro” para insulta-lo é algo bastante comum, muito mais do que deveria, e não é penalizado. A história do país, sobretudo no século XIX, é a da criação de uma identidade nacional “branca e europeia”, negando as raízes afro-americanas e indígenas da sua população. A concentração do poder e da riqueza em Buenos Aires, onde houve uma enorme imigração de europeus durante a primeira e segunda guerra mundial, promoveu mais ainda a ideia de uma nação “europeizada”. Durante os governos de Nestor e Cristina Kirchner, o Estado Argentino promoveu ações de reparação histórica, promovendo cotas, patrocinando pesquisas históricas que reescrevam a história, dando visibilidade à comunidade negra e indígena na conformação do estado nacional, nas lutas pela independência, na produção cultural, intelectual e industrial do país. O debate sobre o racismo na Argentina é um debate necessário, de caráter latino-americano, que precisa ser encarado para colocar o país no lugar que pertence: a multicultural e multiétnica latino-américa.
O racismo na Argentina está tão naturalizado que ele se manifesta de uma forma visível, sendo invisível para quem o pratica. Cidadãos argentinos repetem frases como “mercado negro”, “não faças coisas de negros”, “futuro negro” e muitas mais frases racistas sem sequer tentar compreender as raízes discriminatórias, segregacionistas e criminosas daquelas frases. Qualquer um deles negaria rotundamente que esse tipo de comportamento esteja reforçando padrões de discriminação, porém, graças às lutas da comunidade LGBTQIAPN+, outras sentenças tipicamente homofóbicas ou transfóbicas estão sendo erradicadas do uso cotidiano no país. A diferença está em que, ainda hoje, não há uma representatividade forte da comunidade negra argentina nos setores de decisão institucional para promover leis que punam os casos de racismo dentro do país.
Durante quatro séculos, mais de 10 milhões de africanos foram traficados para a América. Chegaram menos pessoas à Argentina do que a outras áreas da América, por isso se presume que havia poucos negros no país. Após a Revolução de Maio, as guerras de independência, as guerras civis e a guerra contra o Brasil, ocorreram transformações para a população afrodescendente. A abolição da escravatura teve marchas e contramarchas. Alcançar a liberdade não foi fácil. As práticas ilegais de escravidão continuaram por muitos anos. A precariedade da liberdade, a desigualdade, o pertencimento a classes sociais baixas subjugaram enormemente a população afrodescendente. Ser negro significava desigualdade. A população escravizada, os libertos ou os negros livres foram representados como sujeitos perigosos para a ordem social, ligados ao crime, à imoralidade e aos vícios, produzindo uma estereotipagem desta população que justificou o reforço de medidas de controle sobre ela.
Em 1853, a Constituição Nacional aboliu a escravidão, mas a população afro-portenha tornou-se legalmente livre em Buenos Aires somente em 1861, quando aderiu à Confederação. Em Buenos Aires não foi implementado em todos os casos, foi adaptado às novas regras implícitas e explícitas de convivência.
No final do século XIX, os Afroporteños participaram de empreendimentos culturais e sociais. Eles eram músicos, escritores e jornalistas. O candombe é uma das origens do tango e da milonga. Estavam construindo com os imigrantes recém-chegados um novo espaço que se tornaria tradicional alguns anos depois: o espaço do mundo urbano popular. A maioria dos imigrantes europeus, geralmente pobres e sem instrução, ocupavam os espaços de vida e de trabalho dos negros e interagiam social e emocionalmente com eles. A diminuição dos homens negros devido à sua participação nas guerras e à chegada de imigrantes levou à miscigenação de mulheres negras com homens brancos e ao branqueamento fenotípico dos portenhos. A ascendência negra nas famílias também foi ocultada. A cor da pele é visível e sua origem pode ser ocultada, mas a composição genética do sangue persiste.
Poderíamos dizer que desde a independência do país (1810), e até o governo de Nestor Kirchner (2003), houve uma enorme preocupação, seguida de ações concretas, de realizar uma limpeza étnica na Argentina, para realizar de forma definitiva o branqueamento do país. Durante as guerras no sul contra os povos indígenas, em meados do século XIX, a Patagônia toda foi arrasada, os povos que ali habitavam foram dizimados e as terras entregues à oligarquia portenha. Durante a guerra da Tríplice Aliança, quando Brasil, Argentina e Uruguai destruíram o Paraguai, os negros argentinos, junto aos descendentes de indígenas, foram enviados à linha de frente de combate, com pouco ou sem equipamento, com o mero intuito de serem carne de canhão. Logo, em 1871, durante a febre amarela, contingentes de negros eram enviados de maneira forçada nos lugares mais afetados, pelo que se estima que muitos morreram durante a epidemia. Já no século XX, durante o período conhecido como a “década infame” (1930-1940) e durante a sangrenta ditadura comandada inicialmente por Videla (1976-1983), há muitos relatos e denúncias de ações violentas do exército e da polícia nas comunidades com grande concentração de população negra.
Assim, de forma constante, Argentina foi ocultando a comunidade negra do protagonismo dentro da construção de uma identidade nacional, reforçando o mito de uma origem “meramente europeia” o qual também acaba discriminando a população “mestiça”, ou marrom, que é maioria no país. Uma forma bem explícita se manifesta no cinema argentino.
“Civilização ou barbárie” é um dos livros mais lidos e estudados na Argentina, escrito pelo político, educador e ex-presidente (1868-1874) Domingo Faustino Sarmiento. O livro tem um cunho extremamente racista, colocando como civilizatório tudo o que provém da Europa e como barbárie tudo o que seja de origem indígena ou negra. Em muitos casos, o livro continua sendo de leitura obrigatória dentro do mundo acadêmico no país e a figura de Sarmiento, muito questionada nos setores progressistas, ainda é considerada pelo estado nacional como a figura do “Grande educador do país”. Está claro que a Argentina não é o único país do continente onde se pratica o racismo, porém, talvez seja hoje o país que menos tem tratado o tema de uma forma séria e transformadora. O debate a nível continental e mundial ainda está se iniciando, e a jornada possivelmente será longa e cheia de episódios infelizes. Mas o debate e a reparação irão acontecer, é o que determina sempre o rumo da história, sendo escolha de cada um o lugar que quer ocupar quando a crônica da nossa era for escrita no futuro.