São Paulo – No município cearense de Aracati, a 145 quilômetros de Fortaleza, as comunidades quilombolas do Cumbe e do Córrego de Ubaranas estão sendo excluídas da vacinação contra a covid-19. Listadas como prioritárias na última versão do programa, de 15 de março, os dois grupos já deveriam ter sido vacinados pela administração da cidade. Mas aguardam até hoje pela aplicação das doses.
O entrave, de acordo com os quilombolas, é a recusa do prefeito Bismarck Maia (PTB) que diz não reconhecer os territórios como remanescentes de escravizados. Em uma entrevista à rádio local Sinal News, Bismarck alegou que “oficialmente não tem quilombolas na região”. “Essa história de quilombola no Cumbe não tem. Enquanto não estiver oficializado não vamos reconhecer.”
As duas comunidades tradicionais, no entanto, abrigam 220 famílias, 130 delas consideradas em situação de vulnerabilidade, de acordo com a Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará. Pelo critério prioritário, nenhum quilombola foi imunizado. As comunidade estão em processo de reconhecimento desde 2010. O que, segundo lideranças locais, vem desagradando os empreendimentos econômicos com que dividem o território. Entre eles, fazendas de criação de camarão e parques de energia eólica.
Irreconhecíveis e criminalizados
Na luta pelos direitos territoriais, os quilombolas também enfrentam um processo de criminalização por parte desses interesses, que tentam negar-lhes a descendência histórica. “Temos quatro lideranças acompanhadas pelo programa de proteção para pessoas ameaçadas de morte exatamente por denunciar essas violações de direitos e os crimes ambientais que existem dentro do território. E o prefeito, a ala política na sua maioria, tem preferência por esses projetos de morte. É aquilo: ‘se tem uma comunidade tradicional vai ser um empecilho para os seus projetos’”, relaciona o quilombola João do Cumbe.
“Ao ser questionado, ele (prefeito) começa a nos criminalizar, difundir fake news e mentiras. E o que é mais grave: ele desconhece a história do seu município e dos seus munícipes”, acrescenta o militante do Movimento Quilombola do Ceará e do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais e Organização Popular, ambientalista e educador popular em entrevista a Marilu Cabañas, no Jornal Brasil Atual.
Diante da violação “clara” do plano, como aponta a Defensoria do Ceará, o órgão publicou uma recomendação que dispõe da necessidade urgente do cumprimento dos planos nacional e estadual de imunização contra a covid em relação ao grupo prioritário correspondente à população de quilombolas do município de Aracati. Mas, o descumprimento do plano se repete e diversos grupos estão tendo que acionar a Justiça para ter o direito respeitado.
Violações se repetem no país
Ainda no Ceará, as prefeituras de Iracema e Maranguape também são questionadas pela Defensoria sobre o porquê de as populações quilombolas locais ainda não terem sido vacinadas mesmo com as recomendações.
Comunidades foram retiradas da lista de prioridades em Roraima, Acre e Alagoas. E, apesar de figurarem na primeira fase da campanha contra a covid-19 na maior parte dos estados, os quilombolas ainda são menos de 4% do total de pessoas vacinadas. O dado é de um estudo do Observatório Direitos Humanos, Crise e Covid-19.
Nesta semana, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) voltou a acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) para denunciar que o Plano Nacional de Enfrentamento à covid-19 nos territórios tradicionais não está sendo cumprido pelo governo federal. Em fevereiro deste ano, a Corte julgou procedente ação protocolada pela Conaq que cobrava medidas de controle sanitário.
Mas a avaliação da entidade é que o plano apresentado após pressão pela gestão de Jair Bolsonaro é uma “prestação de conta defasada”. O Conaq cita que o documento ainda desconsidera a vulnerabilidade da população quilombola durante a pandemia e falta com precisão nos dados do Ministério da Saúde. A ausência de informações corretas tem inclusive criado problemas na distribuição de doses da vacinas, afirma.
Racismo estrutural e institucional
“Uma vergonha”, nas palavras do quilombola João do Cumbe à Rádio Brasil Atual. “A gente já vem há muito tempo denunciando todo um racismo que recai principalmente sobre nós. A pandemia veio justificar o que há muito tempo estamos dizendo, que esse racismo é estrutural e institucional. No caso do prefeito do Aracati, quando nega a nossa existência, é também um racismo ambiental. Ninguém está passando na frente ou tirando o direito de alguém, nós somos amparados por leis”, frisa o ativista.
Enquanto o ritmo de vacinação é lento e incerto, a covid-19 continua avançando para dentro dos territórios tradicionais. Boletim epidemiológico da Conaq desta quinta (29) aponta para 5.329 casos confirmados da doença em quilombos no país. Ao menos 270 pessoas já perderam a vida em decorrência do novo coronavírus.