“Querem nos impor uma vida irrefletida”

Por Cristiano Navarro.

Como na maioria das periferias das grandes metrópoles, o extremo leste da cidade de São Paulo é formado por bairros ricos em diversidade cultural, mas carentes em projetos e equipamentos públicos que apoiem a produção artística e comunicacional de seus moradores.   

Na luta por seus direitos culturais, os ativistas de Ermelino Matarazzo, distrito periférico da capital paulista, têm mobilizado de forma autônoma uma rede com dezenas de coletivos e agentes. Por meio de ações diretas, manifestos e ocupações, o Movimento Cultural Ermelino Matarazzo rema contra a maré de retrocessos nas administrações públicas da área da cultura.

Exemplo de uma dessas remadas foi a ocupação da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo em protesto contra o fechamento da Casa de Cultura Ermelino Matarazzo e pela saída de seu secretário, André Sturm, ocorrida em maio deste ano. Além dos cortes de gastos que podem levar ao fechamento da Casa de Cultura, Sturm ainda ameaçou agredir fisicamente o agente cultural Gustavo Soares, com quem o Le Monde Diplomatique Brasil conversou sobre crise, conjuntura e alternativas de políticas.

Le Monde Diplomatique Brasil – Em torno do que se constituiu a rede de coletivos Movimento Cultural Ermelino Matarazzo? Quais são as pautas e as conquistas para a coletividade que resultaram de suas ações?

Gustavo Soares – A principal pauta do movimento sempre foi a instalação de um equipamento público de cultura no bairro, capaz de atender às demandas dos produtores locais e dos moradores da comunidade, que pudesse fortalecer e valorizar a cultura produzida no bairro, a nossa história e as nossas identidades periféricas. Para isso, seria preciso que esse equipamento fosse gerido pelos próprios produtores culturais e pela comunidade, que conhecem a realidade do território, as práticas culturais e os saberes populares que ali estão presentes e constroem essas identidades.

Conseguimos em 2016, por meio de estratégias diversas, como o constrangimento público do prefeito [Fernando Haddad] em eventos oficiais, ações diretas nas ruas, manifestos culturais, abaixo-assinado e ocupação de uma praça por mais de um ano com programação cultural, conquistar uma parceria com a Prefeitura para colocarmos em prática um projeto de gestão popular de um espaço público de cultura. O projeto foi muito bem-sucedido, alterando profundamente as dinâmicas do território e atendendo a diversas demandas não só dos produtores culturais, mas também de outros equipamentos públicos do bairro, como o Caps [Centro de Atenção Psicossocial], o CAE [Centro de Acolhida Especial], o Serviço de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto e diversas escolas públicas da região. Além disso, foram construídas parcerias com empresas privadas para a realização de projetos e ações culturais no espaço.

Tudo isso só foi possível por conta da rede de relações já construídas pelo movimento ao longo dos anos no território e pela legitimidade conquistada em todo esse processo. Se o equipamento fosse gerido diretamente pela Prefeitura ou por uma organização que não tem presença no território, dificilmente haveria tanto impacto.

Com o término do projeto e a recusa da gestão atual em dar continuidade a ele, com o lamentável episódio de ameaça que sofremos, decidimos continuar ocupando o prédio, à revelia do poder público, por entendermos ser esse espaço extremamente necessário para a comunidade de Ermelino Matarazzo, que não conta com nenhum outro equipamento de cultura além de uma biblioteca. Assim, apesar de o espaço ter sido oficializado como Casa de Cultura Municipal no fim do ano passado, ele foi rebatizado como “Ocupação Cultural Mateus Santos” e é gerido de forma autônoma pelo Movimento Cultural Ermelino Matarazzo, com atividades culturais gratuitas acontecendo todos os dias da semana.

Como a crise atual afeta o cotidiano dos coletivos e suas militâncias? Quais são os principais problemas enfrentados por vocês hoje?

No momento tão grave de crise em que vivemos, o maior problema tem sido a falta de perspectivas factíveis de futuro, de um ponto de vista macro. Qual tem sido o norte de nossa sociedade? Para além das questões materiais, que certamente nos são muito caras e sensíveis, pois vivemos em territórios de grande vulnerabilidade, é preciso ter especial atenção às questões subjetivas, principalmente em relação à saúde mental. A militância é sempre desgastante, e com a crise isso se agrava de maneira muito perigosa. Equilibrar a necessidade de sobrevivência, a militância e as questões subjetivas não tem sido uma tarefa fácil. Mas encontramos fortaleza quando somos capazes de agir e existir coletivamente, quando nos encontramos, quando festejamos, quando enxergamos o outro. Neste momento, a cultura tem um papel ainda mais fundamental, pois é ela que vai construir a nossa subjetividade diante de uma realidade objetiva tão incerta. É ela que vai nos manter vivos.

A crise política e econômica atual abre oportunidades ou afeta negativamente o coletivo? Por quê?

Ela nos coloca um desafio que há muito se desenha no horizonte: a necessidade de construir lógicas de sustentabilidade e sobrevivência, ou, melhor dizendo, vivência, que ultrapassem as lógicas viciadas tanto do poder público quanto do mercado. Se isso é uma oportunidade ou uma barreira, depende do ponto de vista.

De acordo com sua pauta específica, qual é a questão mais urgente que se coloca para o Brasil atual?

A cultura se faz presente em todas as esferas sociais, afeta e é afetada por todas as dinâmicas da sociedade. Acredito que a pauta mais urgente, quando pensamos no contexto político atual, é justamente a necessidade da não urgência. É preciso haver tempo para reflexão, é preciso haver tempo para a subjetividade, é preciso haver tempo para o lazer e para o ócio. Todas as transformações políticas que temos vivenciado apontam exatamente para o sentido contrário: querem nos impor uma vida irrefletida, mecânica e cada vez mais produtivista, na qual todo o tempo que temos seja dedicado a produzir riquezas que nunca iremos usufruir. Nesse sentido, ter um espaço cultural popular em Ermelino Matarazzo ou em qualquer outro bairro periférico é uma ação de resistência muito grande. Não aceitamos a lógica de que nosso bairro deve ser só um dormitório de trabalhadores. Aqui existem saberes, práticas culturais e relações muito importantes. Nossa história importa, nossa identidade importa, nossas narrativas importam. Nossas práticas artísticas importam e são muito ricas, e não aceitamos ser meros consumidores daquilo que é imposto. É importante termos aqui, em nosso bairro, um espaço no qual nossa subjetividade tenha espaço, nossa fala possa ser ouvida e nossos talentos possam ser reconhecidos, trabalhados, lapidados; no qual possamos discutir cultura, política, sociedade; refletir sobre os mais diversos temas, ter acesso a conhecimentos diversos. Em última instância, um espaço comunitário, no qual possamos conviver, descansar ou simplesmente estar, em ócio. Isso também faz parte da nossa humanidade. É preciso sermos mais humanos e menos máquinas.

Fonte: 30

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.