Quem tem medo da maconha medicinal?

Paulo Fleury, médico e filósofo perseguido por sua atuação, relata: os benefícios que a planta e seus derivados produzem estão cada vez mais evidentes. Para bani-la, algumas entidades apelam ao negacionismo e aos preconceitos

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Paulo Fleury Teixeira em entrevista a Gabriela Leite.

Não há razão científica que justifique a proibição do uso da cannabis para tratamentos médicos, e menos ainda a perseguição de médicos que fazem sua defesa. É o que pensa Paulo Fleury Teixeira, médico, pesquisador e filósofo que publicou, na semana passada, o texto de defesa pública Por que eu receito maconha, no Outra Saúde. Conversamos com ele, para entender melhor suas pesquisas e sua clínica, e a entrevista pode ser lida logo abaixo.

O médico está sofrendo processos dos Conselhos Regionais de Medicina da Bahia e do Paraná por sua prescrição a pacientes – mas sobretudo por sua militância a favor do tema. Paulo acredita que o tratamento com derivados da cannabis, muito eficaz e de extrema segurança, pode representar uma transformação importante. É o que ele chama de medicina canábica.

Paulo começou a estudar a cannabis com pacientes com epilepsia, mas logo voltou sua pesquisa para o tratamento de autismo. Em um trabalho inicial com 18 crianças autistas da região de Belém (PA), ele percebeu que os resultados com o óleo de canabidiol eram excelentes. Sua defesa do tratamento com a maconha também se baseia no fato de que o produto é extremamente seguro.

“Vi evidências, desde o princípio, da efetividade da planta ou de seus princípios ativos no tratamento de diversos problemas de saúde, às vezes problemas muito graves”, escreveu Paulo em sua defesa pública. “Essa evidência vinha da literatura médica da área, que cresce cada vez mais, assim como da minha própria prática clínica.”

Paulo percebe a eficácia do uso de produtos derivados da maconha – ou mesmo de seu consumo tradicional, em cigarros feitos com as flores da planta – para diversas outras condições. Ele lista algumas das que atende: “Hoje, quem mais frequentemente me procura são pacientes com dor crônica, autistas, ansiedade, insônia, depressão, epilepsias, fibromialgia, os distúrbios neurodegenerativos (como Alzheimer e Parkinson), dependência química”.

O médico tem 35 anos de prática clínica, mas trabalhou por muito tempo com medicina preventiva e saúde pública. Oito anos atrás, começou a fazer pesquisas com tratamentos que utilizam a cannabis em diversas formas. Isso deu novo sentido à sua profissão, e hoje ele é um propagador de conhecimento em torno da medicina canábica. Faz palestras pelo Brasil e ajudou a criar várias redes de cultivadores, que fornecem derivados da maconha para milhares de pacientes.

Mas Paulo preocupa-se com o fato de que os fármacos são muito inacessíveis financeiramente – e que a proibição da planta é um grande entrave à democratização do acesso a essa medicina. “Ao fim e ao cabo, se trata de uma planta. Pode ser de custo próximo a zero para a pessoa, caso ela tenha condições de cultivar em casa”, comenta. Mas, para populações marginalizadas, isso é impossível – negros são presos em número muito desproporcional ao de brancos por suposto tráfico de drogas, mesmo portando quantidades pequenas.

“Essa é uma face ainda não compreendida do fascismo”, defende Paulo. “A política antidrogas é uma política fascista, de terrorismo de Estado. É uma forma de justificar a violência indevida, abusiva contra certos grupos, extratos ou culturas.”

Fique com a entrevista completa.

Você está sendo processado em dois conselhos regionais de medicina por receitar cannabis. Como está sua situação?

São processos administrativos com conteúdo ético. Deveriam, então, apurar e avaliar eventuais desvios éticos e técnicos nos profissionais médicos. Essa é uma função fundamental dos conselhos de medicina, similar ao que a OAB faz com os advogados. Mas no meu caso, a primeira coisa que me tranquiliza é que não são denúncias feitas por pacientes, não se referem a nenhum desvio ético ou técnico em relação aos atendimentos. Foram denúncias, na minha impressão, de pessoas ligadas aos conselhos que se incomodaram.

Formalmente, digamos que uma porta de entrada para essas acusações foi o fato de eu ter atendido pacientes nos seus territórios – Bahia e Paraná – sem pedir autorização dos conselhos. Que é uma regra, mas que foi muito flexibilizada na pandemia e praticamente desapareceu com a telemedicina, com as consultas online que hoje são prática corrente, especificamente na clínica. Já não faz sentido essa restrição territorial.

Na Bahia, estão me acusando de difundir e prescrever a cannabis para pacientes em geral, mas a maior parte da acusação é sobre minhas manifestações pessoais em redes sociais, nas quais sou favorável à legalização e ao plantio. E tenho motivos tanto pessoais quanto filosóficos para isso – mas sobretudo motivos médicos e de saúde pública.

O que é medicina canábica?

O que me animou a voltar à clínica foi reconhecer que a maconha é virtualmente – comparada às drogas que se usam para problemas de saúde que são possíveis se tratar com ela – um produto não-tóxico. Às vezes eu uso o termo “infinitamente mais seguro”, usei bastante em minha defesa pública. Tem máxima segurança, em comparação com outras drogas e medicamentos. Se há um recurso com potencial terapêutico e é de máxima segurança, trata-se de uma possibilidade muito positiva que deve ser analisada.

Logo que eu comecei esse trajeto, os resultados se mostraram claros na clínica. Essa geração de pesquisadores começou a trabalhar aqui no Brasil há cerca de oito anos, bastante sob influência do movimento internacional de utilização dos canabinoides para o tratamento de epilepsias. Especialmente de epilepsias infantis, congênitas. A partir daí, fomos estendendo. Havia e há toda uma cultura social do uso da maconha como ansiolítico, como relaxante, como antidepressivo, euforizante, enfim. A clínica foi sendo ampliada espontaneamente.

Como se deu esta trajetória?

Inicialmente, tratei pacientes com epilepsia, mas logo ampliei meu escopo para pacientes com autismo. É uma área muito interessante de acompanhar. No início, me reuni com dois colegas, um neurocientista da UnB e um colega médico professor da UFMG. Ambos, além de serem profissionais, têm filhos com distúrbios tratáveis pela cannabis e vinham buscando essa terapia. Nos associamos e fizemos uma pesquisa clínica com crianças em tratamento para epilepsia, buscando investigar efeitos no sentido mais amplo, sobre a saúde em geral. Não nos debruçamos apenas sobre a epilepsia, mas também sobre a saúde em geral dessas crianças. Sobretudo sobre o desenvolvimento neuropsicomotor dessas crianças. E aquilo que parecia já ser verdade, por outras referências, ficou comprovado nessa pequena pesquisa que fizemos, com cerca de 40 crianças.

Nós investigamos os efeitos não só sobre o controle da epilepsia, mas sobre a saúde em geral, idas a pronto-socorro e também sobretudo o que era nosso interesse maior, o desenvolvimento. Ficou claro que as crianças tinham ganho significativos de desenvolvimento biopsicomotor. Isso nos animou muito, pois percebemos que o tratamento era eficaz não apenas com epiléticos, mas também para os autismos sem epilepsia.

A experiência com autismo parece ser especialmente animadora.

A partir daí, me animei a começar a estudar autistas também. Meu primeiro caso foi uma criança de Belém do Pará, que foi até Belo Horizonte procurar tratamento. Ela tinha uma polissonografia muito alterada. Ou seja, tinha alterações na dinâmica eletroencefálica muito insistentes, especialmente no sono. Ela tinha distúrbio de sono extremamente grave, era uma criança de oito anos. O uso da cannabis com essa primeira criança teve um resultado excelente. A criança, hoje com quinze anos, está ótima – vem usando cannabis desde então. A partir daí, a mãe dela me convidou para um seminário sobre autismo que aconteceu em Belém, para falar sobre essa perspectiva terapêutica inovadora: o tratamento do autismo com a cannabis, com a maconha. E eu fiz uma palestra e tive uma surpresa grata de perceber que o assunto que interessou muito às famílias.

Tivemos uma grande sorte, naquele momento, de receber uma oferta de um laboratório norte-americano, do estado do Colorado, que estava em busca de autorização da Anvisa. A empresa ofereceu doses suficientes para tratar as 18 crianças que estavam naquele seminário e cujas famílias mostraram interesse. Eram crianças, em geral, de famílias carentes ou que certamente não tinham condições de bancar um tratamento com o custo que tinha naquela época. Ainda hoje esses produtos autorizados pela Anvisa são muito caros.

O ano era 2017. As 18 crianças autistas tinham entre 7 e 17 anos, com média de idade de 10. Isso nos deu uma base de segurança forte. Percebemos que o tratamento funciona, apesar de apresentar dificuldades – autismo é extremamente complexo, as crianças estavam situações extremamente graves, destrutivas. Conseguimos resultados consistentemente bons. Pudemos fazer um acompanhamento de nove meses com as crianças, que nos permitiu ter uma visão muito clara dos riscos, dos possíveis efeitos colaterais e sobretudo dos grandes benefícios que o uso terapêutico da cannabis traz.

Como surgiu o cultivo a partir de associações de pacientes?

A partir daí começou minha trajetória. É algo muito inovador. Já se sabia de antemão que maconha é um fitoterápico de máxima segurança. Visualizei isso novamente a partir dos resultados positivos. Esse fato me encorajou a começar a difundir o tratamento. Comecei a divulgar as ideias. De lá pra cá, circulei por muitos estados com palestras, atendimentos, prescrições, orientações. Comecei a criar uma rede de fornecedores artesanais. Estive na origem de várias associações, algumas com autorização judicial, outras não. Elas surgiram a partir desses momentos de palestra de prescrição e de difusão da terapia canábica sobretudo para o autismo.

E então a clínica vai sendo ampliada pela demanda. No início, comecei com tratamentos principalmente para epilepsia, mas logo passei a tratar sobretudo o autismo. Hoje, quem mais frequentemente me procura são pacientes com dor crônica, autistas, pacientes com ansiedade, com insônia, com depressão, com epilepsias, fibromialgia, os distúrbios neurodegenerativos (como Alzheimer e Parkinson), dependência química. Muitos pacientes com dependência química têm resultados excelentes.

Além da clínica, você se dedicou à pesquisa sobre a planta?

Eu nunca parei de trabalhar com pesquisa. O leque foi se ampliando. Estamos agora com um projeto de pesquisa que já está no comitê de ética da UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto), agora para estudar todos os diagnósticos. É uma pesquisa nacional, online, que já está em andamento. Nós já temos uma boa análise, hoje com mais de 500 pacientes dos mais diversos diagnósticos. E tudo o que eu estou falando está sendo corroborado por essa pesquisa também.

Isso se tornou, então, uma clínica canábica. Assim como eu, existem hoje algumas dezenas – talvez até centenas – de médicos que se tornaram exclusivamente prescritores de canabinoides. Isso que chamei de uma clínica canábica.

Você prescreve a cannabis de que formas?

Prescrevo a cannabis ou seus produtos ou princípios ativos. Não tenho restrição, por isso chamo de clínica canábica. Prescrevo CBD isolado, por exemplo, que é o produto mais frequente hoje em dia no mercado das farmácias aqui no Brasil. Prescrevo produtos de alto CBD para importação, que os planos de saúde às vezes cobrem. Mais correntemente, na maior parte dos casos, prescrevo o óleo de canábis integral, em geral com conteúdo predominante de THC, e prescrevo alguma frequência também a planta integral pra fumar.

Como disse, não vejo restrição alguma em nenhuma forma de uso da cannabis. Então isto cria uma clínica muito peculiar. Que incomoda. Isso define uma prática específica, possivelmente uma nova especialidade médica, mesmo, que está surgindo e vai se desenvolver a partir daí.

E como fazer esses tratamentos mais acessíveis financeiramente?

Essa foi minha primeira preocupação, quando comecei a divulgar a possibilidade do tratamento. A maior parte da população – algo como 95% dos brasileiros – não tem condição de pagar para usar esses produtos. É preciso encontrar alternativas. Mas, ao fim e ao cabo, se trata de uma planta. Poderia ser de custo próximo a zero para a pessoa, caso ela tenha condições de cultivar em casa. Se tiver terreno, sol, água, já basta. Eu sempre incentivei os pacientes e a sociedade a cultivar. A buscaren na justiça ou cultivarem, mesmo sem autorização judicial para seus tratamentos – a saúde vem antes, obviamente.

E sempre incentivei também essa formação de redes de cultivadores, de associações que hoje florescem no Brasil. Já são centenas, que estão atendendo algumas várias dezenas ou centenas de milhares de pacientes. O óleo é de produção simplíssima, não existe nenhum recurso tecnológico ou conhecimento técnico-científico especial, qualquer pessoa realmente pode fazer, na cozinha de sua casa, um extrato seguro e de boa qualidade para uso medicinal.

Que você tem a dizer deste Conselho Federal de Medicina e dos Conselhos Regionais, que perseguem quem prescreve maconha, mas dão espaço para médicos que negam a eficácia das vacinas ou que prescrevem remédios sem comprovação para covid, por exemplo?

Não tem objetivamente base ética, técnica, científica para essa postura dos conselhos de medicina. O poder político, na área médica, como se sabe, está fechado com uma corrente ideológica específica. Mas, independente disso, a questão da maconha está imersa na questão das drogas em geral. É por isso que essa medicina, esses tratamentos, esses recursos terapêuticos são vítimas de uma visão tão preconceituosa e persecutória mesmo, nos conselhos e em algumas associações médicas aqui no Brasil.

Ora, por décadas a maconha foi condenada, completamente sem base científica, inclusive pela Organização Mundial da Saúde. Mas isso está mudando. Estamos vendo já há algumas décadas que isso está em processo de mudança. Hoje, não tenho dúvida nenhuma, esse fenômeno é completamente reversível. A legalização ampla da maconha – e antes disso a legalização para o uso medicinal amplo – é um processo irreversível. Ele não vai parar, porque os ganhos são muito grandes.

Mesmo com todo o preconceito ideológico, seja de base religiosa, seja de base ética, social, enfim, seja qual for a base, essa tendência não será interrompida por muito mais tempo. Infelizmente o Brasil é um país que tende a ser bastante atrasado do ponto de vista de costumes. Há muitas razões associadas inclusive à indústria farmacêutica, pois a cannabis pode substituir produtos já muito difundidos.

Mas a razão que predomina para essa interdição dos avanços, em minha opinião, é o terrorismo estatal. A criminalização das drogas serve como a maior justificativa para o terrorismo estatal, que é instrumento de dominação fundamental na nossa cultura. E os conselhos de medicina, hoje, agem como um elo nessa cadeia de transmissão. De modo totalmente irracional, do ponto de vista médico e científico, e brutalmente irresponsável socialmente. Porque a atitude deles, de incentivo a essa política antidrogas, leva a muito mais sofrimento e morte do que as próprias drogas.Essa é uma face ainda não compreendida do fascismo. A política antidrogas é uma política fascista, de terrorismo de Estado. É uma forma de justificar a violência indevida, abusiva contra os certos grupos, extratos ou culturas.

As opiniões dos/as autores/as não necessariamente representam a opinião de Desacato.Info. 

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