Por Celso Vicenzi.
Primeiro, a esquerda identificou na revista Veja o principal agente da desestabilização do governo Dilma, embora os ataques já ocorriam desde os dois mandatos de Lula. Nitidamente, a revista tornou-se, mais que um panfleto, uma publicação capaz de fazer ataques fascistas, sem que o Judiciário pusesse um freio a esses abusos, perpetrados em nome de uma equivocada interpretação do direito à liberdade de expressão que o país nunca teve, pela enorme concentração da propriedade dos meios de comunicação.
Mais adiante, surgiu a Operação Lava-Jato em que um juiz de primeira instância no Paraná, sob cujo nariz passaram alguns dos maiores escândalos de corrupção (Banestado, por exemplo), sem maiores consequências, se transformou em ídolo das manifestações de direita. Embora a Lava-Jato tenha centrado o foco principalmente no PT, em Dilma e Lula, houve quem achasse que o objetivo era o combate à corrupção. Tese que cai por terra a cada dia que passa sem que Cunha seja preso e Aécio investigado, por exemplo – visto que já foi delatado seis vezes.
Outro agente importante do golpe foi identificado no Ministério Público Federal “hegeliano” de São Paulo, que se meteu em trapalhada judicial e histórica, ao fazer confusão entre Engels e Hegel. Digamos que os três promotores paulistas, em sua tentativa de demonstrar erudição, estavam muito mais próximos de Grouxo do que de Karl Marx. Notabilizaram-se por tentar seus cinco minutos de fama, na tentativa de prender Lula. Mas, no fundo, trapalhadas históricas à parte, o objetivo que pretendiam foi devidamente alcançado, idem a condução coercitiva de Lula para depor: injetaram ânimo na classe média que foi às passeatas com seus poodles e suas babás. A perspectiva muito próxima de um Lula na cadeia e uma Dilma derrubada por impeachment, colocou milhares de pessoas nas ruas do país, boa parte deles espumando de ódio e pedindo a volta da ditadura.
Mas o golpe não tem origem, também, na Polícia Federal, esse Frankstein que se recusa a voltar para o lugar onde sempre deveria estar, constitucionalmente respondendo ao Ministério da Justiça. A PF, um dos atores da espetacularização das ações judiciais, agora quer atuar com independência. Criativo como é, o Brasil tem tudo para instituir a democracia dos seis poderes: Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal e o Salve-se Quem Puder! Mas, é preciso reconhecer, no caso da PF, que o órgão só se tornou rebelde e incontrolável porque a presidenta Dilma colocou no Ministério da Justiça um ministro que nunca se preocupou em investigar vazamentos da Lava-Jato, que partiam direto do juiz Moro para o Jornal Nacional. Deu no que deu.
O vilão do momento é a Globo, merecidamente, porque é quem faz o trabalho mais sujo, que é o de mentir, manipular e distorcer os fatos, do jeito que a direita precisa para convencer a população de que estão combatendo a corrupção. Sem uma mídia “obscena”, como diz Marilena Chauí, não seria possível um golpe. O líder negro norte-americano Malcolm X, também já alertara, que “se você não for cuidadoso, os jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo”. É a tarefa da Globo e outros parceiros midiáticos. Mas a Globo não é o cérebro do golpe. Ao incitar a população por meio de um jornalismo manipulador, é o órgão executor do golpe, mas ainda não o seu ideólogo. A Globo não funciona sem o dinheiro que a irriga.
Não é o presidente da Câmara, Eduardo Cunha que, a despeito de ser acusado de corrupção com provas que chegam ao Brasil chanceladas pelo governo suíço, sem que a Justiça faça nada, está ali a serviço de poderes muito mais fortes que o comandam. Cunha é uma das peças-chave do golpe que, para escárnio de todo um país, vai comandar o impeachment em que um terço dos “julgadores” respondem por ações criminais no STF. Dá para ter uma ideia do autoengano – melhor seria dizer má-fé – daqueles que tentam convencer que o impeachment de Dilma, a prisão de Lula e a perseguição descomunal ao PT têm razões de combate à corrupção. Ledo e triste engano.
Poderia ser Janot, agora é acusado de ter dado aval à divulgação relâmpago de grampos contra uma presidenta da República, um crime de Segurança Nacional, mas que no país das jabuticabas, tudo é visto com muita naturalidade. Vale até quebrar as regras da Constituição, justamente por aqueles que são muito bem pagos para por ela zelar. Mas já atingimos a etapa do vale-tudo judiciário, em que a quebra da legalidade é justificada pelo juiz Moro por uma suposta “relevância”, nada muito surpreendente para quem se notabilizou por usar a prisão como forma de pressão para obter delações – muito bem “premiadas” – caso o prisioneiro fale, digamos, o que é música para os ouvidos do magistrado.
Sim, estamos diante de uma justiça já com o veredicto pronto, só precisando preencher as “provas”. Janot teve o cinismo de citar numa sabatina no Senado em que esteve presente o conterrâneo Aécio Neves, que “pau que bate em Chico também bate em Francisco”. Mas nunca bateu, tanto que depois de seis delações e fartos documentos incriminadores, Aécio não só está solto como ainda vai à mídia dar discursos de moral e ética.
Mas, afinal, quem, então, é a cabeça do golpe? Elementar, diria Watson, o companheiro do famoso detetive Sherlock Holmes, personagem criado por Arthur Conan Doyle (embora a frase não aparece, dessa forma, em nenhum de seus contos ou livros).
Há dois agentes claramente identificados. É só seguir o dinheiro. Todos os agentes citados anteriormente fazem parte de um sistema que, embora democrático, é amplamente dominado pelos donos do capital para servir a seus interesses de acumular cada vez mais capital.
No plano externo, como hoje sabe-se, até mesmo por documentos que já são de domínio público, os Estados Unidos tiveram papel essencial na instauração do golpe civil-militar de 64. E estavam preparados para atuar, inclusive, se houvesse reação.
Ora, tem que ser muito ingênuo para achar que o país que tem centenas de bases militares espalhadas pelo planeta, que é a nação que mais invadiu militarmente outras nações, que usa a sua mais poderosa máquina de guerra para garantir o seu domínio sobre outros povos, que “grampeia” chefes de estado de todo o mundo, não estaria interessada em mudar a direção política de um dos 10 países mais ricos e que, a partir de Lula, caminhou em direção ao BRIC, que desafia o futuro do império norte-americano. Os Estados Unidos são também um dos países com o maior número de agentes de espionagem espalhados por todos os lugares onde têm interesse geopolítico. Por que eles não estariam também entre nós?
Mas nada disso seria tão facilmente possível – o golpe – se os donos do capital, no Brasil, não estivessem também interessados em derrubar o governo eleito. Sem perspectivas de voltar a conquistar a presidência da República pela via democrática, o empresariado brasileiro mergulhou com tudo no golpe. Basta acompanhar as ações, as declarações de seus líderes e as notas oficiais de suas principais confederações, federais e sindicatos patronais em todo o país. A começar pela mais poderosa, a Fiesp.
Darcy Ribeiro já nos dissera que este é um ótimo lugar para se fazer um país, profecia que nunca se cumpriu, segundo ele, porque temos uma das elites mais perversas do mundo. “Nós temos uma das elites mais opulentas, antissociais e conservadoras do mundo”. Há várias razões para o país ser como é, do jeito que é, a começar por um passado escravocrata de três séculos, que se perpetuou depois num país de sub-classes. Mas não é objeto desse artigo aprofundar essa questão.
Os donos do capital no país, que financiaram um dos Congressos mais reacionários da história, agora querem cobrar a conta. Querem de volta o país que sempre foi deles, em todas as instâncias. O povo, para eles, é mero coadjuvante para legitimá-los nessa falsa democracia que não oferece cidadania e dignidade à imensa parcela da população, excluída dos benefícios e das riquezas que geram.
Querem novamente pôr nas costas dos que menos têm o ônus da sua opulência. Querem reduzir direitos trabalhistas com a desculpa de criar mais empregos, querem cortar programas sociais, querem reduzir a previdência, retirar o Estado de áreas em que a iniciativa privada quer dominar para ganhar mais dinheiro. A lista é longa, imensa. Querem um país de privilégios para uma minoria, enquanto usará a força, das leis e das armas, para manter o pobre em seu lugar, sem perspectivas de ascensão, a não ser como exceção.
Lula, a jararaca, símbolo de um país que minimamente começou a sonhar com a redução das desigualdades, tem enorme desvantagem contra essa hidra de várias cabeças. Seu futuro e o de Dilma, que se aproxima do fim, é ocupar o lugar que lhes cabe na história, que um dia será melhor contada, sobre quem foram os golpistas, os traidores, os democratas e os verdadeiros defensores de uma pátria para todos.
Fonte: Celso Vicenzi