Por Cristiane Sampaio.
O cenário de agravamento da pandemia no Brasil fez emergir com força o tema da quebra da patente de vacinas contra a covid-19.
Cercada de argumentos, a pauta vem angariando apoio entre diferentes atores que acompanham o desenrolar da crise sanitária, incluindo parlamentares de distintas colorações políticas. O tema foi destaque na última quinta-feira (8) no Congresso Nacional e deve ir à votação na próxima semana.
No Senado, tramita o Projeto de Lei (PL) 12/2021, cujo objetivo é suspender temporariamente os direitos de propriedade sobre imunizantes que agem contra o novo coronavírus. A Casa hoje é palco de uma grande discussão a respeito do tema, que sofre resistência do governo Bolsonaro.
Com muita pressão, a tropa aliada do Planalto conseguiu tirar a proposta de pauta na quarta (7), quando ela seria votada pelo plenário. O presidente, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), cedeu aos movimentos e adiou a apreciação do texto, enfurecendo parte dos senadores. A discussão sobre o mérito do PL segue em alta nestes dias, apesar da protelação.
No mundo, o tema da quebra das patentes é regido por normas elaboradas em 1994 pela Organização Mundial do Comércio (OMC). O regramento foi estabelecido com o apoio de nações mais abastadas e prevê prazo mínimo de 20 anos para o vencimento de uma patente de fármacos.
No entanto, contextos de emergência alavancaram um debate internacional sobre a necessidade de se garantir uma licença a essas normas diante de situações graves e de relevante interesse público, como é o caso da pandemia do coronavírus.
No Brasil, o debate ganha força em meio ao cenário de escassez de vacinas contra a covid. Até agora, o país imunizou apenas cerca de 10% da população. A lentidão se dá pela recusa do governo Bolsonaro em negociar lotes do produto precocemente no ano passado, quando o mundo passou a discutir o tema e os laboratórios iniciaram as tratativas com os países interessados na compra.
Por conta disso, políticos e diferentes especialistas vêm se manifestando favoravelmente à quebra de patente de vacinas contra a covid. O PL 12/2021 é de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), que destaca a existência de um apoio multilateral no mundo pela suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual sobre esse tipo de produto em virtude da gravidade da crise sanitária.
Ele assinala que, além de cientistas e outros especialistas, a pauta conta com apoio da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Países como Índia e África do Sul também têm feito essa defesa, sob o argumento de que a medida ampliaria o acesso de nações mais pobres a esses imunizantes.
Ao todo, mais de 2,8 milhões de pessoas já morreram de covid no mundo, enquanto 133 milhões se infectaram. O Brasil tem se destacado pelo descontrole da crise e acumula, sozinho, mais de 341 mil mortes e 13,2 milhões de pessoas contaminadas pelo vírus.
“Em um ano de tragédia, o vírus matou três vezes mais pessoas no Brasil do que a Guerra do Iraque. O país não tem vacina suficiente pra imunizar de forma rápida a população, faltam oxigênio, leitos de UTIs, kits para intubação. O governo errou feio quando ignorou o potencial letal do vírus, e agora estamos pagando um preço altíssimo”, descreve o senador.
Para Paim, a quebra das patentes seria uma via de solução para amenizar a crise sanitária e tentar poupar vidas a médio prazo. Ele sustenta que o país tem tecnologia e condições de produzir vacinas em larga escala.
A possibilidade vislumbrada no cenário é a utilização do parque industrial voltado à produção de vacinas veterinárias. O setor afirma que precisaria somente de adaptações estruturais e autorização legal para fabricar o imunizante contra a covid.
“A indústria nacional de produtos pra saúde animal tem três grandes plantas, laboratórios prontos, com classificação de “top de linha” e que podem produzir até 400 milhões de doses de vacina durante, no máximo, três meses – mais de 100 milhões por mês. Façamos tudo o que for possível para estancar essa sangria”, defende Paim.
Na Câmara, um conjunto de deputados e especialistas se manifestou favoravelmente à ideia durante uma comissão geral – espécie de audiência pública – ocorrida na quinta. Socorro Grosso Galiano, representante da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas/OMS), ressaltou, por exemplo, “a necessidade de se ter uma região menos dependente de produtos de saúde”.
Legislação
Já a professora Eloísa Machado, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), aponta que não há assunto mais importante para o Brasil neste momento. A pesquisadora afirma que há razões jurídicas que “exigem uma tomada de decisão em favor do licenciamento compulsório” e afirmou que o arcabouço jurídico do país sustenta esse posicionamento.
“A Constituição Federal trata o direito de exploração, que é veiculado pelas empresas como exploração monopolista, como um privilégio temporário. Estamos falando de uma Constituição que, por outro lado, garante também o direito à saúde e à vida como uma obrigação do Estado”.
Fome e crise sanitária
A deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), que é farmacêutica e bioquímica de formação e demandou a realização da audiência na Câmara, ressalta que a pandemia veio acompanhada da ampliação da fome e da miséria.
Ela defende que o problema seja contido o mais rápido possível e argumenta que a única saída é a busca por vacina para todos, caminho que seria facilitado pela quebra das patentes.
“E ainda não existe vacina para todos. As nações mais ricas se digladiam pelas doses produzidas enquanto aos países mais pobres ficam as sobras e, ainda assim, reduzidas a cada contrato – celebrado com enormes obstáculos”, pontuou, ao citar que há mais de 2,5 bilhões de pessoas em quase 130 países que ainda não receberam a primeira dose da vacina contra a covid.
“Enfrentamentos do futuro”
Presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara (Creden), o deputado Aécio Neves (PSDB-MG) também entoa a defesa da pauta. Na avaliação dele, “medidas excepcionais são para momentos excepcionais”.
O parlamentar disse que tem mantido diálogos com diferentes interlocutores no âmbito do colegiado para colher análises sobre o assunto. A oposição trabalha, em conjunto com outros deputados, a ideia de buscar uma solução legislativa para o tema que passe por comissões como a Creden.
Para Neves, a suspensão do direito de propriedade sobre os imunizantes pode amenizar riscos a serem causados por novas futuras variantes que venham a surgir em território nacional no curso da pandemia.
“Sem alarmismos: nós não sabemos o que nos espera adiante. Uma eventual quebra ou flexibilização de patentes não resolverá o problema deste mês ou até mesmo dos meses seguintes, mas pode nos preparar para outros enfrentamentos do futuro. A grande realidade é que nenhum de nós sabe quando esse vírus será controlado.”
Resistências
A pauta também encontra resistência entre alguns segmentos. O Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por exemplo, fazem ponderações à ideia. As duas instituições produzem atualmente os únicos imunizantes contra o novo coronavírus que estão sendo aplicados no Brasil, a Coronavac e a vacina Oxford/AstraZeneca.
Em manifestação feita durante debate ocorrido na quinta (8), no Senado, o diretor do Butantan, Dimas Covas, disse que o Brasil não teria tanto desenvolvimento na indústria voltada à biotecnologia. “Mesmo se ocorresse a quebra de patentes, não teria como se incorporar a produção de muitas dessas vacinas, principalmente as que são mais complexas”, assinalou.
O gestor também disse que a eventual suspensão dos direitos intelectuais sobre o imunizante contra a covid teria como efeito colateral o entendimento sobre o direito de se quebrar a patente de vacinas brasileiras. O Butantan detém 40 patentes, ao todo.
Já a presidenta da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, disse ser a favor da suspensão do direito de propriedade. Ela destaca, no entanto, que a questão é densa e demandaria um percurso complexo até se conseguir de fato fabricar as fórmulas em debate.
“Neste momento, o importante e fundamental seria investir na produção local e com os acordos de transferência de tecnologia. É possível usar mecanismos de licença compulsória em áreas que sejam monopólicas e que prejudicam o acesso”.
A dirigente realçou ainda que o país não precisaria necessariamente desprezar as chances de utilização do parque técnico da indústria veterinária. Para a presidenta, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) poderia ser incumbida de avaliar tais casos.