Lançamento de campanha em defesa das empresas estatais, no Rio, em 6 de junho
Reportagens de Hylda Cavalcanti e Paulo Donizetti de Souza.
Em 30 de março, a cineasta Anna Muylaert, diretora do premiado filme Que Horas Ela Volta?, participava de um ato promovido por artistas no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Dizia ela que, se houvesse o golpe, “o governo que assumir não conseguirá dar dois passos” porque não terá legitimidade. Para a diretora, Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva eram vítimas de “tortura moral”. No dia seguinte, Anna Muylaert iria além. Em pleno território de O Globo – um dos alicerces do golpe –, dedicou a Dilma e a Lula o prêmio “Faz Diferença”, com que era agraciada pelo jornal.
“Quero dedicar esse prêmio às Jéssicas que estão hoje na universidade e a algumas pessoas que eu acredito que têm muito a ver com isso. Eu entendo essas pessoas como pai e a mãe das Jéssicas. Não no filme, mas na vida real, que são o ex-presidente Lula e a presidente Dilma Rousseff”, afirmou. Exatos dois meses depois, em 30 de maio, era a atriz Camila Márdila, a própria Jéssica do filme, quem abraçava Dilma em um ato de apoio.
“A Jéssica ajudou as pessoas a verem que é possível buscar um futuro, lutar pela profissão que querem, pela universidade. Ajudou muita gente a conhecer outro universo, perceber que o mundo é maior, que as possibilidades são outras”, disse a atriz, em evento de lançamento do livro A Resistência ao Golpe de 2016 (Canal 6 Editora, 425 páginas). Jéssica, no filme, é filha de uma empregada doméstica que estuda, passa em vestibular da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (USP) e se relaciona em pé de igualdade com os patrões da mãe.
Naquele lançamento, durante evento na Universidade de Brasília (UnB), parte das projeções de Anna Muylaert já estava consumada. O processo de impeachment estava posto. E integrantes do governo interino de Michel Temer, de fato, mal conseguem dar dois passos. Por onde passam são escrachados, no Brasil e no mundo. O titular em exercício no Palácio do Planalto, diferentemente de se firmar como “líder capaz de unir o Brasil”, foi com tanta sede ao pote de maldades que conseguiu despertar mais rejeição e desconfiança do que supunham os senadores que votaram pelo afastamento de Dilma. Alguns já dão sinais de que podem mudar de voto no julgamento final.
Os eventos de lançamento do livro têm sido marcados por fortes manifestações. O trabalho reúne 105 artigos e entrevistas, descreve em detalhes como foi construído o ambiente que levou ao processo de impeachment e tenta influenciar a votação final. “O livro se insere na luta política. Ainda que não necessariamente alinhados política ou partidariamente, abordamos do papel do Supremo Tribunal Federal à atuação da mídia, das ‘pedaladas fiscais’ aos meandros do Legislativo, do papel dos atores políticos internacionais aos bastidores da Lava Jato, da crise de representatividade à ofensiva golpista”, diz a professora de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) Gisele Cittadino, uma das idealizadoras da obra.
No mesmo 30 de maio em que foi lançado o livro caía o ministro da Transparência, Fabiano Silveira, flagrado em conversa na qual, como integrante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dá orientações ao senador Renan Calheiros (PMDB-AL) sobre como agir diante da Operação Lava Jato. Antes dele, caíra Romero Jucá do Ministério do Planejamento, também depois do vazamento de conversas com o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado, nas quais escancaram o objetivo de pôr Temer na cadeira de Dilma como forma de esfriar a operação, por haver muita gente graúda do PMDB e do PSDB em apuros.
Na semana seguinte, o STF determinou, por meio liminar, o retorno do jornalista Ricardo Melo à presidência da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) – Temer o havia demitido contrariando a lei de criação da EBC, que assegura mandato ao presidente da empresa pública. Aguardavam ainda na fila das exonerações o advogado-geral da União, Fábio Medina Osório, o ministro do Turismo, Henrique Alves, o secretário de Governo, Geddel Vieira Lima, e a candidata a secretária da Mulher, Fátima Pelaes. Todos devido a currículos desabonadores.
Além de moralmente combalido desde o dia da posse, o governo em exercício empunhou bandeiras – como se verá em reportagens desta edição –, nas áreas econômica e social, que nada têm a ver com união nacional ou esforço para sair da crise. Remetem diretamente aos programas derrotados nas eleições presidenciais desde 2002. Para o ministro da Justiça do governo Dilma Eugênio Aragão, o país está diante de um momento crucial para combater o desmonte das políticas sociais. “Resistir a esse grupo que não tem compromisso com a democracia é muito importante, porque significa resgatar a dignidade do nosso voto”, afirma.
Em um dos capítulos de A Resistência ao Golpe de 2016, o sociólogo Giovanni Alves, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), traça em longa narrativa o processo econômico desde 2003 para explicar que a presidenta Dilma iniciou seu primeiro governo, em 2010, em conjuntura de crise global, e precisou adotar medidas impopulares. Os oposicionistas aproveitaram para impor a crise política.
“O economista Marcio Pochmann sintetizou numa frase a tragédia do lulismo: ‘Os ricos não nos querem mais’”, observa Alves. “Golpear o PT no governo e na sociedade civil foi uma decisão suprema das oligarquias que historicamente controlam, há séculos, o sistema de produção, de reprodução social, de representação política e de poder.”
As forças que trabalharam pelo “golpe” sentiram uma mudança de clima a favor de Dilma. E passaram a conviver com um tripé de adversidades. Primeiro, o governo Temer não convence a sociedade. Segundo, a base de apoio da presidenta trabalha com perspectiva real de alcançar entre 28 e 33 votos e barrar o desfecho do golpe no Senado. E, terceiro, há um quadro nacional e internacional de mobilizações pela restituição da ordem democrática. Não se passa um dia, desde 12 de maio, sem um “Fora Temer”.
Se imprensa e forças políticas cogitaram uma possível calmaria, o vento logo virou. As revistas semanais começaram com edições fingindo distanciamento crítico e até ensaiaram mudar de assunto. IstoÉ, que conclamou “coxinhas” e “mortadelas” a dar uma trégua, e Veja, que chegou a dar como capa a pílula do câncer, logo voltaram aos panfletos condenatórios de Dilma. Jornais passaram a trazer manchetes como “Recessão se aprofunda, mas surgem sinais de recuperação” (Folha de S.Paulo), ou “Crise econômica perde força” e “Temer fala em retomar crescimento” (Valor Econômico).
Dilma, aliás, sumiu do noticiário. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou a atenção: “Tentam esconder a farsa do golpe censurando nossos protestos e até as atividades da presidenta Dilma. Depois do golpe, a Rede Globo simplesmente retirou a Dilma do ar, como se ela não existisse. Como se ela não estivesse lutando diariamente junto com os democratas para restabelecer o mandato e o Estado de direito”, afirma, em vídeo exibido na UnB durante o lançamento de A Resistência ao Golpe de 2016.
O jornalista norte-americano Glenn Greenwald, com sua coluna no site independente The Intercept, virou tormento para o colunismo político tradicional e se tornou referência para a imprensa internacional. “Desde o começo, ficou evidente que o processo tinha como objetivo principal o fortalecimento dos verdadeiros ladrões de Brasília, permitindo assim que impeçam, obstruam e ponham fim às investigações da Operação Lava Jato (além de impor uma agenda neoliberal de privatizações e austeridade extrema)”, escreveu Greenwald.
“Não se trata apenas da destruição da democracia no quinto país mais populoso do mundo, tampouco da imposição de uma agenda de privatizações e ataque aos pobres para benefício da plutocracia internacional. Trata-se do fortalecimento de operadores corruptos – desrespeitando as regras democráticas – cinicamente conduzido em nome da luta contra a corrupção.”
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Fonte: RBA.