Por José Chrispiniano.
Não foi um vídeo de Roberto Alvim de 6 minutos sobre política cultural com plágio de fala de Joseph Goebbels no dia 16 de janeiro de 2020. Foi um relatório de 5 páginas do desembargador federal Rômulo Pizzolatti em setembro de 2016, referendado por uma votação de 13 desembargadores contra 1 no Tribunal Regional da 4º Região, que abarca os 3 estados do Sul do Brasil, que sacou do porão da história a doutrina jurídica de Carl Schmitt, o jurista do nazismo, para não punir Sérgio Moro de um crime explícito e assumido cometido pelo então juiz às vistas do país inteiro.
O caso, do ponto de vista objetivo, era pornográfico, explícito: Sérgio Moro, no dia 16 de março, cometeu um crime ao divulgar ilegalmente interceptação telefônica de uma conversa da então presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sem autorização judicial. A gravação não tinha autorização judicial porque ele mesmo a havia suspendido duas horas antes do telefonema interceptado e divulgado.
Advogados representaram no tribunal apontando que Moro havia cometido um crime previsto na legislação. O crime de interceptação telefônica ilegal e sua divulgação, delitos previsto em lei, cometido por um juiz que deveria ser o protetor da ordem legal, contra a autoridade máxima eleita, a presidente da República, documentado e admitido pelo próprio Moro. O TRF-4 então passa a ter um problema não óbvio: como fazer o que queriam, livrar a cara do juiz celebridade, e não simplesmente executar a lei e punir Moro? Como justificar isso juridicamente, em um texto?
Roberto Alvim plagiou Goebbels mas não avisou isso no vídeo, claro.
Pizzolatti embasou seu relatório dizendo que a norma jurídica incide sobre o plano da “normalidade”, mas que não se aplicaria em “situações excepcionais”. Para isso, usou uma citação do jurista e ex-ministro do Supremo Eros Grau, do seu livro “Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito”. Foi essa a citação no relatório, para a qual vou chamar atenção depois para uma palavra:
“De início, impõe-se advertir que essas regras jurídicas só podem ser corretamente interpretadas à luz dos fatos a que se ligam e de todo modo verificado que incidiram dentro do âmbito de normalidade por elas abrangido. É que a norma jurídica incide no plano da normalidade, não se aplicando a situações excepcionais, como bem explica o jurista Eros Roberto Grau: A ‘exceção’ é o caso que não cabe no âmbito da ‘normalidade’ abrangida pela norma geral. A norma geral deixaria de ser geral se a contemplasse. Da ‘exceção’ não se encontra alusão no discurso da ordem jurídica vigente. Define-se como tal justamente por não ter sido descrita nos textos escritos que compõem essa ordem. É como se nesses textos de direito positivo não existissem palavras que tornassem viável sua descrição. Por isso dizemos que a ‘exceção’ está no direito, ainda que que não se encontre nos textos normativos do direito positivo. Diante de situações como tais o juiz aplica a norma à exceção ‘desaplicando-a’, isto é, retirando-a da ‘exceção [Agamben 2002:25]. A ‘exceção’ é o fato que, em virtude de sua anormalidade, resulta não incidido por determinada norma. Norma que, em situação normal, o alcançaria (GRAU, E. R. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). 6ª ed. refundida do Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 124-25)”.
O texto citado pelo desembargador como citação também tem uma citação. A palavra chave é “Agamben”, do filósofo italiano Giorgio Agamben. Eros Grau no seu trecho está analisando não uma norma jurídica, mas o livro (excelente, por sinal) “Estado de Exceção” (Boitempo) de Giorgio Agamben. Esse livro analisa, criticamente, a natureza do Estado de Exceção (instrumento contraditório com a lei e a democracia, mas presente em praticamente todas as constituições) e os conceitos do jurista que deu base teórica e “ legal” ao nazismo, Carl Schmitt. O trecho citado por Eros Grau não é uma jurisprudência legal baseada nas leis brasileiras: é um comentário sobre uma análise do direito nazista. Essa citação é apresentada assim, como fato, no relatório que recebeu voto favorável de 13 desembargadores da região Sul do Brasil “É que a norma jurídica incide no plano da normalidade, não se aplicando a situações excepcionais, como bem explica o jurista Eros Roberto Grau”. Quem decreta a situação de excepcionalidade? Na prática, foi como se o TRF-4 já desse como válido um “excludente de ilicitude” para Moro, que talvez agiu sobre “forte emoção. A formatação de texto clichê de decisão jurídica do relator torna banal a gravidade dele, que seria entendida de forma clara se dita de outra forma: foda-se a lei!
O resumo do caso: só havia um jeito do TRF-4, provocado pela sociedade, não reagir aplicando a lei e punindo Sérgio Moro por cometer um crime: suspendendo a lei. E só havia um jeito de um tribunal de leis buscar alguma fundamentação conceitual para justificar isso: buscar conceitos em Carl Schmitt, no direito nazista.
Na prática, Moro no episódio do grampo, e o TRF4, ao isentá-lo de punição pelo crime cometido, “suspenderam a lei”, o tal do “rule of law” que alguns gostam tanto de pronunciar em discursos como se tivessem uma batata na boca. Instituíram o vale tudo. Escreveram isso, não no aplicativo Telegram, onde tal questão foi chamada pelo procurador Deltan Dallagonol em mensagem privada de “filigrama jurídica”, mas em uma decisão judicial:
“Ora, é sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada ‘Operação Lava-Jato’, sob a direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns” – Rômulo Pizzolatti setembro de 2017
Mas se um tribunal de aplicação leis decide que não precisa mais seguir leis, seu poder baseia-se no que? No poder de dizer quando as leis valem e quando elas não valem? Se a Lava Jato não segue a lei, ela segue o que? Um advogado atua nele como? Como ler suas decisões?
Rápida digressão: o desembargador escreve que a Lava Jato estava “sob a direção” de Moro. Estranho, não? Fim da digressão.
Voltando ao livro de Agamben, cujo autor provavelmente jamais imaginaria que seria usado para reanimar – e ser aplicado em um caso específico – o horror que ele estudou: “0 estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo.”
Bem vindos ao Brasil talvez acima de tudo. Em alemão, Brasil acima de tudo é Brasilien Über Alles. Foi o slogan de campanha e é o mote do presidente eleito em 2018, Jair Bolsonaro. Não se chega à um ministro da Cultura que segue a política para área de Goebbels do dia para a noite nem por acaso, nem sem aviso. Em alemão, Alemanha acima de tudo é “Deutschland Über Alles”, e gritar isso em logradouro público naquele país é crime.
Na primeira audiência do caso do Tríplex do Guarujá, julgado por Moro contra Lula, ouviu-se o ex-senador tornado delator Delcídio do Amaral. Posteriormente, em um processo contra Lula do qual ele foi inocentado na justiça de Brasília, Delcídio foi considerado mentiroso pelo juiz. Mas no dia 21 de novembro de 2016 ele prestou depoimento como testemunha para Sérgio Moro, e seu depoimento está na sentença final dele. Durante a audiência o então juiz se irritou com a defesa: ““A defesa pelo jeito vai ficar levantando questões de ordem a cada dois minutos nesta inquirição. É inapropriado, doutor. Estão tumultuando a audiência”. Um dos advogados de Lula, José Roberto Battochio, retrucou que o juiz não é dono do processo e disse: ““Se vossa excelência quiser eliminar a defesa… E eu imaginei que isso já tivesse sido sepultado em 1945 pelos aliados e vejo que ressurge aqui, nesta região agrícola do nosso país. Se vossa excelência quiser suprimir a defesa, então eu acho que não há necessidade nenhuma de nós continuarmos essa audiência .” A audiência e o processo continuaram. Muita gente no Paraná não gostou de ser chamado de habitante de “região agrícola”, outros se orgulharam disso. A referência aos derrotados pelos aliados causou menos reação. As vezes uma declaração em um determinado tempo parece um arroubo exagerado de retórica. Mas o tempo passa.
A condenação de Lula por Moro e pelo TRF-4 o impediu de disputar as eleições de 2018, nas quais liderava por ampla margem as pesquisas. Sem Lula, venceu Jair Bolsonaro, Über Alles.
Quem defende a condenação garante que ela seguiu a lei e a normalidade do processo legal. Mas, curiosamente, há uma decisão do TRF-4 que diz que Moro e a Lava Jato não precisariam seguir o “regramento genérico” para “casos comuns”. Quem diz que o caso é excepcional não sou eu, é o TRF-4. Por 13 votos contra um.
No governo onde Alvim era ministro da Cultura e Bolsonaro presidente, o Ministro da Justiça é Sérgio Moro. Ele foi juiz, dirigiu e julgou (bateu escanteio e cabeceou) uma operação de combate à corrupção. Cometeu um crime aos olhos de todo o país. E nunca foi punido em uma decisão baseada em conceitos do jurista do nazismo Carl Schmitt. Ninguém se indignou.
Links:
Decisão do TRF-4 – https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php…
Íntegra do relatório de Pizzolatti: https://www.conjur.com.br/…/lava-jato-nao-seguir-regras…
Livro de Eros Grau: https://www.amazon.com.br/Ensaio-Discurso…/dp/857420935X
Livro de Agamben: https://www.boitempoeditorial.com.br/…/estado-de…
Fala de Battochio em audiência com Moro: https://www.gazetadopovo.com.br/…/advogado-de-lula…/
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