Por Bia Barbosa.
Terminou no sábado 23 a edição temática do Fórum Social que, além de celebrar os 15 anos do processo iniciado 2001, no Rio Grande do Sul, também se propôs a debater, com seriedade, as perspectivas para a continuidade desta articulação global. A reflexão não começou agora. Já há quatro anos as organizações que integram o Conselho Internacional do FSM (CI) constataram que o espaço vinha perdendo relevância e a capacidade de pautar agendas e articulações de impacto global.
Muito diferente do que aconteceu em 2003, quando um chamado internacional pela paz saiu dos palcos do FSM em Porto Alegre, às vésperas da invasão no Iraque, e levou milhões às ruas em todo o mundo, hoje os obstáculos são muitos.
O mundo mudou bastante neste período, assim como as formas de organização da sociedade civil e movimentos populares. O FSM, entretanto, não conseguiu acompanhar de perto essas transformações. Atualmente, além das dificuldades internas de aglutinação do campo progressista, o chamado movimento altermundista enfrenta uma conjuntura externa muito mais complexa. E um inimigo cada vez mais forte.
“A velocidade de cruzeiro que o capitalismo alcançou em sua expansão está levando o mundo para o precipício. O sistema se transformou numa máquina de produção enlouquecida, insaciável. Uma máquina que, para produzir e ter lucro, destrói o que tem pela frente. Se a barragem estoura em nome do lucro, não tem problema”, avalia Chico Whitaker, da Comissão Justiça e Paz, um dos construtores do processo do FSM, em referência ao crime ambiental da Samarco, em Mariana/MG.
“É um sistema que está em crise, mas que domina a comunicação global e assim faz todo mundo acreditar que outro mundo não é possível nem necessário, que não há o que se fazer, que não estamos fazendo nada”, acrescenta.
No que pese os percalços do capitalismo, ele ainda é a força que detém hegemonia política, econômica e ideológica, acredita Givanilton Pereira, secretário de relações internacionais da CTB.
Na última mesa de convergência da programação deste Fórum Temático, o sindicalista lembrou que foi contra esses propósitos que o FSM se articulou, produzindo denúncias e mobilizações. “Socializamos consciência crítica para que os povos lutem e resistam contra a barbárie do capital. E a diretiva ‘outro mundo é possível’ se tornou inspiração para as lutas em todo o planeta”, afirmou.
Visões divergentes no seio do Fórum e as mudanças na conjuntura global têm, entretanto, dificultado a capacidade de produção de uma resposta à altura dos atuais desafios.
Para Oded Grajew, outro ativista dos primórdios deste processo, hoje na Rede Nossa São Paulo, o FSM está em crise, assim como as associações que dele participam. Reconhecer esta crise deve ser o primeiro passo para enfrentá-la e encontrar saídas que permitam ao “mundo do Fórum” dar um salto político.
“Temos que reconhecer nossa responsabilidade sobre essa crise. Só conseguiremos reerguer as forças do outro mundo possível e enfrentar o neoliberalismo se reconhecermos nossos erros, fizermos uma reflexão sincera sobre eles e construirmos outras formas de dar legitimidade às nossas ações. Se não conseguirmos mudar, haverá muito poucos conosco”, alerta Grajew.
Caminhos possíveis
O diagnóstico é duro, mas há caminhos possíveis. A presença de 15 mil pessoas nas atividades em Porto Alegre ao longo desta semana comprova que, apesar de todos os seus limites, o FSM é um legado antineoliberal e acumulou o patrimônio de articular organizações e movimentos com profundo conhecimento teórico e político dos campos em que atua, além de grande experiência prática, como lembrou Pereira.
Para o dirigente da CTB, com uma estratégia bem definida, esta importante frente política social pode jogar um papel maior na luta contra o capitalismo. “Mas para isso devemos ampliar a base política do FSM e forjá-la com objetivos comuns. Isso poderá maximizar sua energia, aumentar a capacidade aglutinadora do Fórum e elevar sua força transformadora. Essa é uma necessária atualização tática, para melhor se posicionar frente à transição geopolítica em curso”, analisa.
“Temos que considerar que existem novos sujeitos políticos se organizando, como os jovens que ocuparam as escolas em São Paulo, os jovens que vão à luta contra o aumento das passagens de transporte público, que lutam na África e na América Latina contra todas as formas de opressão”, diz Dennis de Oliveira, professor da Universidade de São Paulo e membro do coletivo de ativistas anti-racistas Quilombação. “É importante que se absorva essa rica experiência e é necessário que o FSM seja o espaço de articulação de todas essas lutas”, ressalta.
O momento seria, portanto, de envolver no processo do Fórum e dar visibilidade aos inúmeros e plurais sujeitos que têm protagonizado a resistência dos povos nos territórios e que têm ampliado as agendas de lutas. Dar conta dessa tarefa nada simples depende das opções que forem feitas no caminho.
Uma delas, sempre motivo de polêmica, é se o FSM deve ou não ser um espaço de tomada de decisão, com encaminhamentos e orientações concretas a seus participantes feitas após os encontros mundiais – que agora ocorrem a cada dois anos, mudança feita no curso desses 15 anos já como uma resposta às dificuldades políticas e financeiras dos movimentos se encontrarem anualmente em escala global.
“Buscamos novos formatos para que o Fórum possa, além de reivindicar, também incidir concretamente e, quiçá, até implementar diretamente algumas de suas propostas. Os sonhos têm que ter suas próprias ferramentas. Esperamos que o FSM tenha a possibilidade de construir sua própria ferramenta de incidência”, almeja Cesare Otonini, da AIH/Itália.
Questões internas e externas
O desafio, porém, ultrapassa a inclusão de novos atores e de processos decisórios. Passa, de certa forma, por todo o funcionamento do Fórum, incluindo as responsabilidades de cada organização membro do Conselho Internacional (composto por mais de 100 entidades) e a democracia interna do órgão.
“É possível oxigenar este espaço. E já estamos avançando neste sentido, com boa parte da organização do próximo Fórum Social Mundial sendo feita por jovens no Canadá, visto que o desafio de oxigenação no CI passa pela juventude”, acredita Rogério Pantoja, dirigente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e integrante do CI.
Por fim, será preciso também relacionar os desafios internos com o processo externo vivenciado por governos progressistas em âmbito global – e sobretudo na América Latina –, que chegaram ao poder com apoio significativo das organizações e movimentos que participam do processo do FSM.
“Não podemos desvincular nossas questões dos impasses, conflitos e limites que esses governos tiveram, e que agora estão implicando nas derrotas que estamos tendo na região. Tais impasses são fruto de uma relação contraditória desses governos com a ordem geral capitalista, que se utilizou das ferramentas do capital para implementar uma série de políticas públicas”, critica Nalu Faria, da Marcha Mundial das Mulheres.
“Assim, não temos apenas uma rearticulação das forças imperiais para combater em nosso continente, mas também a incorporação e cooptação das nossas demandas no discurso do capitalismo”, aponta.
Que a energia militante e a vontade de construir lutas lado a lado, que animaram as discussões nos últimos dias em Porto Alegre, sejam a base para a condução deste complexo e também conflituoso processo de transição. “O futuro dependerá de como articulamos todas essas questões”, concluiu Nalu.
Fonte: Carta Capital
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil