Pureza, a mãe que enfrentou fazendeiros e jagunços para salvar o filho do trabalho análogo à escravidão

Pureza é interpretada por Dira Paes no cinema. Foto: Breno Pompeu/Divulgação

Por Luiz Antônio Araujo, POA.

Quando Pureza Lopes Loiola atendeu a primeira ligação telefônica de Renato Barbieri, impressionou-se ao saber que o cineasta desejava levar sua vida às telas. Dias antes, durante um culto, um pastor evangélico dissera que os olhos do mundo iriam vê-la. “Agora estou entendendo. O cinema são os olhos do mundo”, disse a mulher, que criara cinco filhos com a venda de tijolos em Bacabal (MA), distante 240 quilômetros de São Luís.

Onze anos antes da ligação, Pureza recebera em Londres o Prêmio Anti-Escravidão da Anti-Slavery International, mais antiga entidade mundial de combate ao trabalho escravo. Mas, no Brasil, poucos conheciam sua trajetória.

No início dos anos 1990, depois de um mês sem notícias do filho caçula, Antônio Abel Lopes Loiola, que partira em busca da sorte no garimpo, Pureza decidiu seguir seu rastro. Munida de uma bolsa e da roupa do corpo, estava resolvida a encontrá-lo vivo ou morto. Ela sabia apenas que ele tinha ido ao Pará.

A jornada transformaria a mãe angustiada em um símbolo do combate ao trabalho escravo e seria o ponto de partida do longa Pureza (2019), de Barbieri, que já fez parte da seleção oficial de outros 23 festivais ao redor do mundo e aguarda o fim da crise sanitária para chegar ao circuito comercial.

Peregrinação em busca do filho

Pureza nasceu em Presidente Juscelino, município a 85 km de São Luís, e chegou com três filhos a Bacabal, onde o marido tinha parentes. Com o fim do casamento, a sobrevivência passou a depender da olaria na qual trabalhava ombro a ombro com a prole.

Evangélica, Pureza alfabetizou-se aos 40 anos com o objetivo de ler a Bíblia. Quando o filho Abel parou de dar notícias, cerca de um mês depois de ter partido para o Estado vizinho para buscar fortuna como garimpeiro, a fé ajudou-a na peregrinação em busca do caçula.

A oleira percebeu que havia algo errado quando telefonou para parentes que Abel pretendia procurar no Pará. Surpresos, os familiares disseram-lhe que sequer sabiam da viagem do jovem e que não haviam sido contatados por ele.

“Medo eu não tinha. Nunca tive. Mas tinha a certeza de que ia ir atrás dele, porque eu tenho um Deus. Eu chamava ele e dizia ‘não deixa eu morrer, deixa eu ir ao fim. Eu quero ir ao fim dessa briga'”, diz Pureza à BBC News Brasil, por telefone, de Bacabal, onde vive com uma neta.

Em busca do filho, Pureza começou a trabalhar como cozinheira em fazendas do sul do Pará, para onde acreditava que o filho tinha ido.

O serviço dos empregados nas propriedades da região consistia em derrubar grandes extensões de mata nativa a fim de converter a área em pastagem para o gado. Os empregados, em sua maioria migrantes de outros Estados das regiões Norte e Nordeste, eram recrutados em grandes municípios como Marabá (PA) por aliciadores —conhecidos como “gatos” — a serviço dos fazendeiros.

O transporte até o local do serviço, situado a centenas de quilômetros dos centros urbanos, era feito por caminhões. Ao chegar ao destino, os trabalhadores encontravam uma realidade muito diferente da apregoada pelos contratantes. Privados de documentos e de contato com o mundo exterior, obrigados a se endividar com os empregadores para custear comida, vestuário e até ferramentas de trabalho, eram reduzidos em pouco tempo à condição de cativos.

De fazenda em fazenda, Pureza conheceu de perto o drama dos peões. As habilidades de cozinheira e a condição de mulher madura fizeram com que se tornasse amiga e confidente de muitos trabalhadores. Ouviu sobre o sistema pelo qual os empregadores confiscavam documentos de identificação dos empregados e tornavam-nos totalmente dependentes dos encarregados para comer, se vestir, se abrigar e obter remédios. Embora não tenha presenciado assassinatos, ouviu de muitos que o destino à espera de quem tentava se rebelar ou fugir eram covas sem identificação na floresta.

Pureza havia esbarrado numa das pontas do iceberg do trabalho em condições análogas às de escravidão no Brasil.

Escravidão moderna

O fenômeno, que se expandiu velozmente a partir dos anos 1980, começou a atrair a atenção de organismos multilaterais e entidades de direitos humanos na década seguinte. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), foram identificados 3.144 casos de trabalho forçado em 32 propriedades do sul do Pará entre 1980 e 1991. Na região, a fiscalização das relações de trabalho era quase inexistente.

O padre missionário diocesano Flavio Lazzarin, 72 anos, italiano de Mântua que vive desde 1987 no Brasil e assessora a Comissão Pastoral da Terra (CPT) em São Luís, lembra-se do dia em que Pureza, depois de conhecer de perto a realidade do trabalho análogo à escravidão e convicta de que o filho era mantido naquela condição, chegou à sede da entidade.

“Na época, em 1994, não se marcavam reuniões com agenda. Ela entrou e contou essa história de uma mãe desesperada em busca do filho. Ficamos interpelados pela coragem amorosa dessa mulher”, recorda-se Lazzarin, por telefone, de São Luís. Ele serviu de inspiração ao personagem ficcional Padre Flavio, de Marabá, que, no filme, ajuda Pureza.

“O filme respeita a trajetória dela. A dramatização não é uma traição do sentimento profundo dessa mulher que não foi só mãe do Abel mas também de muita gente. A partir desse amor pelo filho, ela se envolveu em algo maior do que a família e do que a vizinhança. Uma causa”, diz Lazzarin.

Na tentativa de resgatar o filho, Pureza moveu céu e terra. Apoiada pela CPT, fez contatos com o Ministério do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho no Maranhão, no Pará e em Brasília. Escreveu cartas de próprio punho para três presidentes da República: Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso (o único a responder foi Itamar).

Esteve em Brasília, que qualifica de “cemitério” e “carniça”. “Ali ninguém tem coração, ali só briga por dinheiro”, afirma, acrescentando que, durante cerca de um ano, só recebeu ajuda de três pessoas, entre elas uma procuradora da República e um radialista.

Apesar das dificuldades, nunca pensou em desistir. “Não tem nada perdido para Jesus. Quando Jesus entra na guerra, não tem nada perdido, é só ganhar”. Ao final da peregrinação, com apoio de autoridades, Pureza conseguiu localizar e resgatar o filho caçula. Hoje, Abel vive em Bacabal com a família.

Da vida pro cinema

A jornada de Pureza deu impulso decisivo à criação, no final dos anos 1990, do Grupo Especial Móvel de Fiscalização, que uniu Executivo, Ministério Público do Trabalho e Judiciário para viabilizar o cumprimento da lei e a observância de direitos trabalhistas na Região Norte.

O caso da oleira passou a ser citado por entidades de direitos humanos e servidores das três esferas quando o tema do trabalho escravo era abordado. Em reconhecimento ao papel de Pureza, ex-integrantes do Grupo Especial Móvel de Fiscalização, como o juiz do Trabalho Jônatas Andrade, aceitaram o convite de Barbieri para participar das filmagens do filme Pureza representando seus próprios papéis.

Ainda assim, coibir o trabalho forçado é uma obrigação que o Estado brasileiro ainda está longe de realizar. Segundo o Radar do Trabalho Escravo, mantido pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia, foram encontrados 55.004 trabalhadores em condições análogas às de escravo desde 1995 no país.

O filme Pureza, livremente baseado na vida da maranhense, estreou no 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em novembro de 2019. Recebeu três prêmios de melhor filme pelo júri popular, incluindo o dos 22es Rencontres du Cinéma Sud-Américain em Marselha, França. A atriz Dira Paes, que interpreta Pureza, foi agraciada com quatro prêmios de melhor atriz pelo trabalho.

O diretor de Pureza, 63 anos, conheceu a história da oleira maranhense por intermédio do fotógrafo Hugo Santarém. Foram 11 anos entre a ideia inicial e a estreia do filme, durante os quais Barbieri e sua equipe visitaram Bacabal e conheceram a heroína de seu roteiro.

O filme foi rodado em locações reais, como Bacabal e Marabá. Trabalhadores que viveram a experiência do cativeiro e integrantes de um grupo que hoje fiscaliza o trabalho escravo interpretaram a si mesmos. “A presença desses indivíduos deu um banho de realidade e de afeto no elenco profissional. Muitos no elenco dizem que, se não tivesse os trabalhadores reais, o filme seria outro”, diz o diretor.

Quando Barbieri viu a exibição da própria obra na mostra do 22º Festival do Rio, Pureza estava ao seu lado. Aos 76 anos, ela visitava o Rio pela primeira vez.

Barbieri diz que estava inseguro. “Quando faço filme sobre uma comunidade ou uma pessoa, quando ela assistir tem de se reconhecer naquela obra. Se ela não se perceber no filme, eu terei errado”, afirma o diretor.

Ao longo da exibição, por cerca de cinco vezes, Pureza tocou no braço de Barbieri e disse: “É assim mesmo que acontece”. O diretor diz que teve a sensação de que o peso de um caminhão tinha sido retirado de seus ombros. Ao final da sessão, o público aplaudiu. Barbieri, Pureza e Dira ergueram-se das poltronas. Com a sala iluminada, a oleira de Bacabal fitou o diretor e repetiu: “É assim mesmo que acontece”.

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