Por José Álvaro de Lima Cardoso.
A greve dos caminhoneiros e dos petroleiros, com todas as suas complexidades, trouxe à tona, mais uma vez, a luta histórica do Brasil por um desenvolvimento nacional e soberano. A questão de fundo é que, na impossibilidade de simplesmente privatizar a Petrobrás, em decorrência da possível reação política que isso poderia causar, o governo optou por “privatizá-la por dentro”. Isto é, sem alarde, vêm desmantelando a empresa e vendendo ativos estratégicos a preços de banana. Já entregaram para estrangeiros 30 ativos fundamentais da Petrobrás, o que inclui: campos do pré-sal (alguns vendidos para estatais estrangeiras), sondas de produção, redes de gasodutos, distribuidoras de gás, termoelétricas e usinas de biocombustíveis.
São ativos imensamente cobiçados pelos capitalistas, porque representam um caixa líquido, certo, e imediato, para qualquer empresa. Qual a lógica de privatizar uma distribuidora de gás, que em condições normais, não tem como dar prejuízo, e que vende um produto 100% essencial a qualquer família do mundo? Sendo, além disso, o Brasil, um dos maiores mercados consumidores do mundo, mesmo tendo parte de sua população praticamente fora do mercado consumidor? A única explicação lógica para isso é a da espoliação da empresa, que estava no roteiro do golpe em curso, sacramentado em 2016.
As mesmas multinacionais petrolíferas que apoiaram e ajudaram a financiar o golpe, estão agora adquirindo os ativos vendidos pela Petrobrás, regra geral, a preços aviltantes.
Os golpistas passarão a atacar agora as refinarias, vendendo 60% de quatro unidades essenciais, segundo as organizações sindicais dos petroleiros: REPAR (PR), Abreu e Lima (PE), RLAM (BA) e Refap (RS). Qual o sentido de um país, tendo capacidade de refinar praticamente todo o petróleo extraído, vender petróleo cru e importar derivados, e vende-los em média, 50% acima dos preços internacionais? Qual o sentido de importar derivados sendo o Brasil uma potência petrolífera que fez recentemente a maior descoberta de petróleo dos últimos 30 ou 40 anos?
Por trás de tudo que ocorreu no Brasil nos últimos anos tem um fato inapelável: combustíveis fósseis respondem por 86% da matriz energética mundial, sendo que os renováveis são apenas 2,8%. Do consumo mundial verificado em 2015, o petróleo (32,9%), o carvão (29,2%) e o gás natural (23,8%) totalizaram 86% do total.
Enquanto a energia hidroelétrica (6,8%), a nuclear (4,4%) e os renováveis (2,8%) constituem os 14% restantes . Os combustíveis de origem fóssil, petróleo, carvão e gás natural são, portanto, fundamentais para o suprimento mundial. A propriedade e o uso das fontes de energia, o que significa o domínio das fontes dos combustíveis fósseis, garantem vantagem econômica, política e militar aos países, corporações ou sociedades que disputam os recursos cada vez mais escassos do planeta. E os países ricos, especialmente os EUA, sabem muito bem disso.
Um dos alvos do golpe de 2016 foi a interrupção da tentativa do Brasil de forjar sua soberania nacional, incluindo a energética, que é um pré-requisito para o desenvolvimento econômico-social e para a condição de figurar entre as grandes potências. Por detrás do golpe está uma questão de fundo essencial, que é uma agenda de resistência histórica que vem no Brasil desde muitos anos. Essa agenda foi derrotada várias vezes na história do país: há algumas décadas, em 1954 (quando renasceu com o suicídio de Vargas, adiando o golpe); em 1961, quando quiseram impedir Jango de assumir; e duramente derrotada com o golpe de 1964. Essa agenda é, basicamente, a luta por um projeto nacional de desenvolvimento, com distribuição de renda e com soberania em relação às potências imperialistas.
A implementação da referida agenda pressupõe a superação das nossas vulnerabilidades crônicas. Dentre os vários tipos de vulnerabilidades e que ficaram ainda mais evidentes nos anos recentes do Brasil, uma que se destaca é a ideológica. É absolutamente chocante como os chamados “formadores de opinião” se deixam influenciar pelas ideias do centro desenvolvido mundial, provindas especialmente dos Estados Unidos. Esse tipo de complexo de inferioridade na nossa cultura, que influencia empresas, partidos, governo, igreja, etc. é decisivo na nossa postura política e ideológica.
Este tipo de sentimento ajuda a explicar porque os brasileiros aceitaram, por exemplo, a aprovação da Medida Provisória 795, mais conhecida como MP da Shell, que sozinha irá representar, em 20 anos, perda de receita para o Brasil na casa de R$ 1 trilhão e, já em 2018, uma perda de R$ 16,4 bilhões. Outro exemplo: o acordo fechado recentemente pela Petrobras na justiça norte-americana, então sob a direção de Pedro Parente, irá pagar US$ 2,95 bilhões pelos supostos prejuízos causados aos especuladores dos EUA com os casos investigados pela Lava Jato. Para termos ideia do vira-latismo que representa esse acordo, o seu valor é quase 7 vezes o montante que a direção da Petrobrás disse que recuperou do dinheiro desviado (R$ 1,4 bilhão).
O detalhe é que a Petrobrás, que foi a empresa vitimada pela corrupção de alguns de seus executivos, pagou indenização bilionária e antecipada aos especuladores norte-americanos. A lista de atrocidades, que é imensa, será dissecada pelos historiadores nos próximos anos. Mas, por mais ingênuo ou subserviente que alguém seja, se pode acreditar que medidas dessa natureza sejam positivas para o Brasil e que tenham sido encaminhadas de boa-fé?
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José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.