A França, por sua vez, tem a particularidade de que a crise se desenrolará em um terreno político e social já bastante minado. A estreita base social do governo Macron e suas decisões políticas o fizeram marcado aos olhos da população, desde o início de seu mandato, como o presidente dos ricos. Em sequência, veio a sucessão sem precedentes de movimentos de protestos sociais, desde o levante histórico dos Coletes Amarelos iniciado em 2018 – a crise política mais forte desde 1968 – até a recente greve geral iniciada em 2019 contra a reforma da previdência – a mais longa greve do transporte público da história -, reforma a qual Macron foi obrigado a suspender com o desencadeamento da atual crise sanitária. Todos esses elementos são a prova de um clima social efervescente, mas também a demonstração do surgimento de um novo ciclo da luta de classes que se abriu na França em 2016 contra a reforma trabalhista do governo anterior (Hollande) e que se aprofundou com o macronismo. [1]
Uma aparente unidade nacional que não consegue conter o aumento da raiva social
No início da crise do coronavírus, a popularidade do chefe de Estado francês chegou a subir. Este aumento é clássico em tempos de crise, como o governo anterior já havia demonstrado após os ataques terroristas de 2015, mas isso não impediu de terminar seu mandato como o governo mais impopular da Quinta República. Mas esse crescimento de popularidade de Macron não passa de uma ilusão. Como diz o pesquisador Bernard Sananès,: “É um crescimento forte e significativo que ocorre principalmente em sua base eleitoral e em seus núcleos de apoiadores, como os executivos e os já aposentados […] Essa progressão não significa uma unidade nacional”. [2]
No geral, a comunicação do governo não inspira confiança. A transparência das informações oficiais é cada vez mais questionada e as escolhas feitas pelo governo em matéria dividem fortemente a população. Hoje, após quase um mês de confinamento e com a perspectiva de seu prolongamento, a desconfiança do executivo em relação a sua condução e gestão da crise atinge seu nível mais alto. 56% da opinião pública desconfia de sua capacidade de gerir a crise, segundo algumas pesquisas. A razão disso é que, pela primeira vez na história da França, pelo menos desde os principais conflitos nos quais a classe dominante meteu o país no século 20, a burguesia e seu governo estão colocando em risco a vida e a saúde de milhões de pessoas. Isso de maneira deliberada e descaradamente mentirosa quanto à pandemia. “Pedindo”, por um lado, que a população se mantenha em confinamento, usando métodos policiais para aplicá-lo, ao mesmo tempo que pressiona uma fração significativa da classe trabalhadora a ir trabalhar com um enorme embrulho no estômago por medo do contágio e pela falta de material de proteção à disposição. Em outras palavras, a pandemia exacerba as desigualdades sociais e desperta, mais do que nunca, grande ressentimento contra a classe dominante. [3]
É o que afirma o jornal suíço Le Temps, em um artigo com título bastante revelador “Covid-19: um coronavírus francês vestido de colete amarelo” [4]: “Faltava um novo catalisador. Uma boa razão para reconectar, na França, o auto-falante das raivas e dos ressentimentos. Agora, o Covid-19 (e a proliferação de ansiedades após o estrito confinamento estabelecido pelo governo desde 16 de março) está desempenhando esse papel. Raiva pela falta de equipamentos de proteção para o exército do estado de emergência sanitária, que são os enfermeiros, mas também lixeiros, caixas, entregadores ou carteiros. Cada vez mais solicitam o “direito de retirada” [direito de sair do trabalho quando sua vida está ameaçada] para a CGT [Confederação Geral do Trabalho, uma das principais confederações sindicais da França, em números de associados], juntamente com um chamado à greve. Há processos políticos em todos os níveis contra o chefe de Estado e o governo, acusados ??de terem perdido os meses de janeiro e fevereiro, concentrando-se na reforma previdenciária – agora suspensa – e não nos preparativos sanitários essenciais para enfrentar a epidemia. A desorientação dos eleitores e dos candidatos locais eleitos, presas da organização mais do que contestável, no 15 de março, do primeiro turno de uma eleição municipal cujo segundo turno, anunciado para o final de junho, parece bastante irrealista. Ofensiva antinomenklatura médica liderada pelo infectologista dissidente de Marselha, Didier Raoult… “
O medo da revanche dos proletários
Como dissemos, a combinação de uma crise sanitária de dimensões inéditas e uma grande depressão econômica, tudo dentro de um quadro de fortes atritos geopolíticos entre grandes potências e entre estas e os países da periferia capitalista – bem explícitos pela briga pelos equipamentos e recursos de saúde contra o Covid-19 – poderia muito bem levar a uma explosão social em escala mundial. Na França, todas os sensores estão em alerta. Os “trabalhadores essenciais” ou a “primeira e segunda linha”, como são chamados pela imprensa se encontram entre, por um lado, o medo de serem contaminados e, por outro, a raiva pelas decisões tomadas pelos “de cima” e, assim, começam a sentir o seu próprio poder. E isso será algo difícil de ser esquecido, uma vez que o pior da crise tiver passado. Foi essa possível mudança na correlação de forças que levou, por exemplo, o governo de Portugal a não hesitar por um momento sequer em suspender o direito dos trabalhadores de fazerem greve. Por isso, na França, o governo se encontra bastante inquieto.
Como conta o jornal Le Monde: “No alto-comando do Estado, alguns fizeram a mesma constatação e temem que a crise sanitária desencadeie em uma crise social, evocando uma potencial forma de ’colete-amarelização’ da crise.” Segundo o deputado de Deux-Sèvres do La République en Marche [LREM, partido de Macron], “o drama atual pode fazer ressurgir um fenômeno de luta de classes. Hoje, as funções vitais do país são asseguradas exclusivamente por empregados e trabalhadores. As categorias mais precárias são aquelas que ocupam as funções mais essenciais para o bom funcionamento do país e, por outro lado, são as mais expostas ao risco sanitário de contaminação. Isso deve acentuar de maneira legítima suas reivindicações”. Essa situação, ainda segundo o Le Monde, é vista como perigosa segundo alguns macronistas. Para o delegado geral do LREM, Stanislas Guerini, “não pode se deixar instalar a ideia de que existiriam duas Franças, aquela dos trabalhadores ’no terreno’ e aquela do home office; a que está confinada nos HLM [Habitation à loyer modéré, edifícios construídos através de financiamento Estatal para famílias com baixa renda] e a que está em suas casas de veraneio; aquela das pequenas e médias empresas e outra das gigantes empresariais (…). O risco de que as fraturas entre essas duas Franças se exacerbem é real”. [5]
Em outras palavras, a atual crise sanitária não está apenas fortalecendo a posição social dos setores mais explorados de nossa classe. Ao mesmo tempo, ela gera um sentimento, atualmente ainda difuso, de consciência de classe em oposição à França da bolsa de valores que, por sua vez, é sustentada apenas por uma base muito estreita da classe média alta. É esse o sentimento que os principais pesquisadores reconhecem. De acordo com Jérôme Fourquet, diretor IFOP [Instituto Francês de Opinião Pública], “notamos uma queixa muito forte contra a falta de máscaras e testes, com a ideia de que os primeiros que irão sofrer serão os trabalhadores, que continuam trabalhando no terreno. Isso reativa um ressentimento da França de baixo contra tecnocratas, acusados de não terem preparado o país suficientemente para enfrentar uma crise como essa. Percebemos uma síndrome do movimento dos Coletes Amarelos, com a idéia de que a classe política teria fracassado coletivamente.” [6]
As armadilhas dos falsos amigos do povo
É muito provável, portanto que novas revoltas à grande escala estão se formando. Elas podem explodir frente à ocorrência de escassez alimentar, do aumento de preços de produtos de necessidades básicas ou, muito provavelmente, porque a brutal crise econômica corre o risco de atingir sobretudo os trabalhadores que estão na “primeira-linha” do combate ao coronavírus, e que geralmente são os primeiros a serem sacrificados em tempos de crise. São estes que podem desencadear uma enorme onda de fúria nos setores mais precários e explorados da classe trabalhadora que, durante o período de confinamento, puderam ter um certo reconhecimento simbólico de seu papel social e, em alguns casos, receberam certos bônus. Isso lembra o “prêmio excepcional para poder de compra”, também conhecido como “prêmio Macron”, criado em dezembro de 2018 para lidar com a revolta dos Coletes Amarelos e impedir sua ampliação a trabalhadores das grandes empresas, encontrado novamente na Lei de Finanças de 2020. Esse bônus chegou a 1.200 euros, na atual crise. É claro que, nas patronais, ninguém fala em aumento salarial, ainda mais pelo fato de que em várias empresas onde a atividade é mantida, ocorreram paralisações de trabalho para exigir o pagamento do “prêmio Macron”, como entre trabalhadores da Gestamp (terceirizada automotiva) em Theil-sur-Huisne, em Orne, em Marie Surgelés, em Maribeau, em Vienne, da Comdata (central de telemarketing) em Chalon-sur-Saône, da Agis (indústria agro-alimentar), em Herbignac, no Loire Atlantique, ou entre lixeiros de Grand-Poitiers. Um sinal de que o radicalismo está longe de ser colado em suspensão, apesar do clima atual.
No contexto de forte desconfiança com a classe política e as elites dominantes, o fator econômico pode ser decisivo para dar origem a um coquetel social explosivo. Isso poderia levar a uma situação pré-revolucionária ou revolucionária, como a que a Rússia viveu, guardando todas as proporções e diferenças, como produto do inédito sofrimento atravessado pelo país durante a Primeira Guerra Mundial. Nessa Rússia de 1917, diante das reivindicações por pão, paz, e terra, os bolcheviques eram aqueles que estavam melhor preparados e mais determinados, em comparação a outros partidos e frações de classe, para dar um resposta à catástrofe que ameaçava o proletariado.
Estes elementos ressaltados indicam uma certa maturação embrionária da consciência de classe. No entanto, para esta se materializar e cristalizar completamente como consciência para si, esta consciência de classe deve ser traduzida em um programa proletário claro. A crise atual permite a possibilidade de superação de alguns dos pontos cegos da perspectiva dos Coletes Amarelos. Tanto em relação à sua atitude frente ao grande empresariado – cuja imagem saiu bastante ilesa da revolta em comparação com a do governo – quanto em relação às suas ambiguidades frente à questão do Estado-nação. Para fazer isso, no entanto, devemos desmascarar os falsos amigos do povo que desejam tirar proveito desse sentimento geral e difuso para colocar à frente seu projeto populista de direita, no pior dos casos, mas também populista de esquerda, no melhor dos casos, ou representando simplesmente a ressurreição da esquerda burguesa. Todos esses são projetos de conciliação de classes a serem implementados no contexto de um capitalismo francês em rápido declínio.
Este último projeto é o que defende Yannick Jadot do partido Europe Ecologie-Les Verts, que coloca mais ênfase no Conselho Nacional de Resistência [7] do que na Frente Popular [8], preferida por Jean-Luc Mélenchon ou François Ruffin da La France Insoumise. A propósito, em ambos os casos, sejam as concessões feitas pela burguesia e pelos empregadores em 1945 ou em 1936, são todas subproduto daquilo que os trabalhadores puderam arrancar através de sua própria ação direta e devido ao medo da burguesia quanto ao perigo da revolução social, sejam as greves com ocupação de fábricas em 1936 ou sua resistência armada no final da Segunda Guerra Mundial. Voltando a Jadot, o ecologista-macronista que assume plenamente sua estratégia de discutir tanto com a esquerda quanto com a direita, ele defende a idéia de que “devemos nos convencer de que, com as forças vivas de nosso país, podemos reparar a sociedade, respeitar e proteger as mulheres, os homens e a natureza e promover uma economia resiliente, inovadora, pujante e justa (…). Que somos capazes de unir os franceses e mobilizá-los em torno de uma nova esperança, um projeto solidário que nos projete mais serenamente em direção ao futuro [ou mesmo para] combater as estratégias de recuo [propostas pelos] nacionalistas (…) Frente à perigosa opção do populismo, frente a um modelo liberal que se perdeu nas areias da globalização, a via ecologista é a única legítima”. [9]
Diante da perspectiva de uma profunda recessão econômica comparável apenas, em sua magnitude, à crise da década de 1930, o programa de Jadot, localizado à direita da antiga esquerda institucional em crise desde o desastre do Partido Socialista (PS), defende a idéia de que seria possível “produzir e consumir diferentemente” dentro da estrutura do sistema econômico atual sem a ocorrência de a menor convulsão social, ou seja, sem luta de classes. O discurso de Jadot, que se enquadra entre o de Mélenchon e a guinada à direita do macronismo nas grandes cidades. É um discurso que se destina hoje aos setores da classe média, impactados pela crise, que desejam um ambiente urbano “verde e orgânico”, mantendo os benefícios da globalização (a saber, as viagens, o turismo, etc). Deste ponto de vista, é o mundo da globalização capitalista que está se desmoronando com o Covid-19.
Frente ao reformismo burguês de Jadot, o discurso de Mélenchon soa mais radical. De fato, o deputado de Bouches-du-Rhône e líder do La France Insoumise chama por uma revolução. No entanto, não se trata de uma revolução proletária e socialista para acabar com o sistema capitalista e o domínio do grande capital sobre a economia francesa. De acordo com Mélenchon, “não estamos lutando contra nenhum inimigo para além dos erros, os abusos de um modo de vida. Chegou a hora de mudar radicalmente. Esta é a revolução que deve ser realizada pela civilização humana de nosso tempo”.
Sua outra grande consigna é a planificação. Não se trata da planificação socialista frente à anarquia inerente à competição capitalista, exacerbada em tempos de crise, mas simplesmente de planejamento dentro da estrutura do Estado burguês. É uma questão, para o líder do La France Insoumise, de substituir o livre comércio e a abertura de mercados do Estado neoliberal por um retorno ao intervencionismo gaullista tão amado pelo antigo Partido Comunista Francês de Georges Marchais. Tudo para Mélenchon recuperar suas oportunidades como “presidenciável” após os erros dos quais foi acusado dentro de seu próprio movimento e que explicariam, segundo eles, os fracos resultados da LFI nas eleições europeias de 2019. Mélenchon retoma isso em uma entrevista dada esta semana à La Croix: “Estamos saindo da lógica do puro conflito, que é o nosso método usual, para criar conscientização entre os cidadãos, para passar para uma estratégia de causa comum “. Enquanto as forças do proletariado deveriam se preparar para enfrentar a brutalidade da crise capitalista, Mélenchon como Bernie Sanders – que acaba de jogar a toalha na corrida pela indicação do Partido Democrata nos Estados Unidos – pede para abaixar a guarda em vez de se preparar seriamente para um grande combate entre classes.
Diante dessas falsas saídas, reafirmamos que não há nenhuma solução para a catástrofe que nos ameaça sem tocar nos interesses dos investidores, ou seja, dos grandes ricos e grandes grupos econômicos que governam a França, cuja riqueza é equivalente a 30% do PIB, daquelas 500 grandes fortunas que se multiplicaram por três nos últimos dez anos, atingindo um recorde de 650 bilhões de euros. Aí, tem dinheiro de sobra para reconstruir o sistema de saúde público, elaborar um plano de moradias que acabe com os alojamentos insalubres das banlieues, onde o confinamento é particularmente difícil para seus habitantes, e para melhorar o nível de vida, da saúde e do lazer de todos aqueles que têm finais de meses difíceis, como reclamavam os Coletes Amarelos, no marco de uma economia planificada que seja respeitosa com o homem e com a natureza. Ao mesmo tempo, é necessário que seja possível dar possibilidades de desenvolvimento a milhares de pequenos produtores, pequenos trabalhadores informais e comerciantes que hoje sentem a corda no pescoço devido ao peso das dívidas bancárias e à pressão dos grandes grupos da grande distribuição de mercadorias ou das grandes empresas industriais como a Airbus ou a Peugeot, que pressionam os setores menores levando à falência e ao empobrecendo milhares destes. Dar novas possibilidades especialmente aos nossos agricultores que, antes da atual crise, cometeram suicídio freqüentemente devido à falta de perspectivas e de reconhecimento de seu métier. Nenhuma mudança radical é possível sem que, primeiramente, todos os gigantes da bolsa de valores francesa, entre outros, sejam expropriados, nacionalizados e colocados sob o controle democrático dos trabalhadores. Essa é a condição sine qua non da planificação democrática da economia.
Frente à crise da globalização capitalista e dos becos sem saída do patriotismo econômico, precisamos, mais do que nunca, do internacionalismo proletário
O direcionamento econômico proposto por Mélenchon frente aos excessos incontroláveis da globalização neoliberal caminha de mãos dadas com o retorno ao antigo patriotismo econômico. Em um tweet recente, o próprio Mélenchon elogiou o ex-membro do PS que defende a desglobalização: “Apaixonante entrevista de Arnaud Montebourg. Percebo a convergência de preocupações, às vezes até a última palavra. Bravo!”
Nessa entrevista, publicada no Libération, o antigo ministro da industrialização de Hollande, responsável pelo fechamento dos altos fornos de Florange, é duro com o atual presidente e se pergunta “se Macron é o mais colocado para falar sobre patriotismo econômico”. Ao mesmo tempo, Montebourg faz um chamado ao Estado a se comprometer com uma “reconstrução ecológica” que deveria passar pela “menor quantidade possível de importações, uma economia voltada privilegiadamente para o mercado interior continental com bons salários e melhores preços para pagar aos que aqui produzem”. [10]
Esses falsos amigos do povo, frente à crise da globalização capitalista, apenas nos oferecem um retorno aos estreitos limites do soberanismo, isto é, um retorno ao Estado-nação absolutamente ultrapassado e caduco, na medida em que a pandemia em curso e a crise capitalista exigem mais do que nunca uma coordenação e uma solidariedade em escala internacional. No entanto, essa necessidade básica entra em contradição mais do que nunca com a obstinação de cada Estado e de cada burguesia nacional das grandes potências imperialistas e capitalistas de priorizar salvar a si mesmas, o que inclui pisar em cima dos mais fracos, ignorando as reivindicações legítimas dos países “periféricos”. Isso é perceptível na impiedosa guerra comercial por máscaras e outros suprimentos médicos contra os países da América Latina, África e Ásia. A maneira como os países “centrais”, a exemplo da França, organizam o apoderamento de testes ou de máscaras é a mostra mais patérica de pirataria moderna.
Além disso, esses falsos radicais buscam apenas reciclar a produção nacional. Cobrem-se com um discurso esquerdizado com uma falsa planificação à qual associam, frequentemente, os sindicatos, buscando competir quase no mesmo terreno com a soberania reacionária de Marine Le Pen. Mais estruturalmente, esse patriotismo econômico não está de maneira alguma em contradição com algumas das posições assumidas pelos setores mais concentrados da patronal frente à crise que enfrenta a globalização capitalista. Uma amostra eloquente do que dizemos é a declaração de Philippe Varin, ex-CEO da Peugeot (aquela que fechou Aulnay em 2014, uma de suas principais fábricas na região parisiense!!) e hoje presidente da France Industrie, que afirma que: “A questão fundamental é a realocação de atividades na França. Nesta crise, há uma verdadeira oportunidade”. Destaca que as “tendências pesadas, como um inevitável imposto sobre o carbono, irá encarecer os transportes, a importância das matérias primas ou os bens intermediários para nossa soberania, a digitalização permite fabricar em séries menores uma melhor resposta à demanda de clientes próximos”. [11]
Embora a crise atual tenha demonstrado a brutal impotência das autoridades e dos Estados nacionais, em geral, para lidar com a propagação da crise sanitária, a pandemia fez surgir uma consciência universal de que a vida ou a morte de milhões de pessoas dependem de nossas decisões coletivas. Colocar nossas vidas nas mãos de um Estado e de uma classe capaz apenas de defender seus próprios e mesquinhos interesses de classe terá como único resultado o caminho para um novo beco sem saída.
O que dizer daqueles que, mais uma vez, continuam esperando que a Europa do Capital será solidária, como os intelectuais, economistas e artistas alemães que assinam esta nova petição, como Jürgen Habermas, Daniel Cohn-Bendit e Joshka Fischer, que demandam à Comissão Européia a criação de um “Bonds Corona”, de modo a assumir de maneira conjunta, à escala da União Européia, o endividamento provocado pela crise: “De quê pode servir a União européia se, em tempos de coronavírus, não mostra que os europeus se apoiam mutualmente e lutam por um futuro comum? Não se trata apenas de um dever de solidariedade, mas sim de responder aos nossos próprios interesses. Nesta crise, estamos todos os europeus no mesmo barco. Se o norte não ajuda o sul, então não apenas perderá a si mesmo como toda a Europa”.
Frente à crise do Covid-19 e da impotência da burguesia mundial para evitá-la, a definição que Marx dá à revolução proletária, para a distinguir de todas as outras revoluções anteriores, resoa com um eco particular: “Todas as classes que, no passado, conquistaram o poder, tentaram consolidar a situação adquirida submetendo a sociedade às condições que lhes asseguravam sua própria renda. Os proletários somente podem se tornar donos das forças produtivas sociais se abolirem o próprio modo de apropriação atual e, conseqüentemente, todo o modo de apropriação em vigor até os dias de hoje. Os proletários não têm nenhum pertence a assegurar, eles têm que destruir todas as garantias privadas, toda a segurança privada anterior… Todos os movimentos históricos, até agora, foram realizados por minorias ou em benefício de minorias. O movimento proletário é o movimento espontâneo da imensa maioria em benefício da imensa maioria. O proletariado, a camada inferior da sociedade atual, não pode se erguer nem se relocalizar sem explodir toda a superestrutura das camadas que constituem a sociedade oficial”.
Frente à consciência universal atualizada pela crise ecológica e pela epidemia, somente uma classe como o proletariado, baseada em sua solidariedade internacional, a saber, o internacionalismo proletário, saberá estar à altura dos desafios que precisamos enfrentar hoje. Qualquer outra “solução” nos levará, mais cedo ou mais tarde, à barbarie.
Esse artigo foi publicado originalmente em Francês no diário Révolution Permanente, site da mesma Rede Internacional de Mídia Online à qual pertence o Esquerda Diário, traduzido por Lina Hamdan.
Notas de rodapé:
[1] É assim que, por exemplo, o editorialista Alain Duhamel destaca sobre Macron: “ele foi eleito porque a França estava em crise, uma crise política intensa que abalou uma geração, atomizou os dois partidos da situação, registrou o surgimento de dois movimentos anti-sistema – La France Insoumise (esquerda) e o Rassemblement National (extrema-direita), abrindo uma brecha inesperada em que ele soube e ousou se meter. Poderíamos imaginar que um equilíbrio substituiria o outro. Nada disso. Desde então, Emmanuel Macron atravessa implacavelmente crise atrás de crise, sem descanso, como nenhum de seus antecessores. É certo que todos os presidentes da Quinta República foram postos à prova, mas nunca tão continuamente, sem respirar. De Gaulle foi admirado, Georges Pompidou foi apreciado, Valéry Giscard d’Estaing teve popularidade em seis dos sete anos. Algo inimaginável hoje. François Mitterrand e Jacques Chirac tiveram suas horas de glória, o primeiro mais que o segundo. Nicolas Sarkozy impressionou frente às crises econômicas e financeiras, François Hollande conseguiu “encarnar a República” frente aos atentados [terroristas]. Todos se beneficiaram vez ou outra de uma trégua, às vezes até mesmo de um consenso, coisa tão rara na França. Emmanuel Macron, não. Ele nasceu em e devido a uma crise e, desde então, vem lutando de crise em crise. Tudo começou, mal eleito, de maneira lamentável com o caso Benalla. Seguiu-se de maneira ainda mais grave, muito mais perturbadora e muito mais preocupante com a crise dos Coletes Amarelos, de duração e forma sem precedentes em mais de dois séculos. Nesta ocasião, é como uma cortina que foi rasgada, evidenciando uma França infeliz, ansiosa e ulcerada, cuja magnitude e sofrimento subestimamos. Uma crise que de fato não foi acalmada, muito menos suprimida. E então, sem transição, a crise da reforma previdenciária, também sem precedentes na memória das lutas sociais, devido a sua duração, popularidade e implacabilidade. E agora a crise do coronavírus ”. Para aprofundar, recomendamos a alguns de nossos artigos em francês sobre a crise orgânica do capitalismo francês, notadamente aqui e aqui , entre outros.
[3] De acordo com um estudo recente realizado pela Odoxa-Adviso Partners para Franceinfo, France Bleu e Challenges, pouco menos da metade dos trabalhadores interrompeu completamente o trabalho desde o início do confinamento. 20% atualmente estão realizando home office, sobretudo as mais altas categorias de assalariados. Um quarto continua a ir regularmente a seu local de trabalho. O estudo destaca as disparidades de uma região para outra de acordo com a inserção de cada território na cadeia de produção e de acumulação. Segundo o estudo, 56 % dos trabalhadores pertencentes às categorias populares interromperam completamente sua atividade profissional desde o início do confinamento e são os que mais precisam ir diariamente (ou quase diariamente) ao local de trabalho (31% dos CSP- e 35% dos trabalhadores). Por outro lado, as chamadas categorias mais altas e mais particularmente os gerentes, para os quais o teletrabalho é mais fácil de implementar, tiveram muito menos frequência de parar de trabalhar (apenas 34% do CSP +, ou 22 pontos a menos que o CSP.
[4] “Le Covid-19, un coronavirus français en ‘gilet jaune’”, Le Temps, 1/4/2020.
[5] “La majorité face au risque d’un front social causé par le coronavirus”, Le Monde 31/3/2020.
[7] Em referência ao organismo que dirigia e coordenava os diferentes movimentos da Resistência interior francesa durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo todas as tendências políticas.
[8] Em referência à coalizão de partidos de esquerda e centro-esquerda que governou a França entre 1936 e 1938
[11] “Il faudra un superplan de relance industrielle”, Le Monde, 25/3/2020.