Por Edison Veiga.
Não é nada simples explicar a relação umbilical da Igreja Católica, cuja sede geográfica, política e espiritual fica em uma área de 44 hectares no coração de Roma, e o próprio Estado italiano. Essa amálgama costuma ser lembrada — e reverberar socialmente — em episódios como o ocorrido nos últimos dias.
No dia 17, o arcebispo Paul Gallagher, secretário do Vaticano para Relações com os Estados — posto equivalente ao de um ministro das Relações Exteriores —, remeteu uma carta para a embaixada italiana na Santa Sé questionando um projeto de lei que criminaliza a homofobia e a transfobia, em tramitação no governo italiano.
Idealizada pelo deputado Alessandro Zan, do centro-esquerdista Partido Democrático, o projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados no ano passado e agora enfrenta resistência, no Senado, de políticos mais conservadores.
A nova lei pretende incluir homofobia e transfobia na mesma tipificação do código penal italiano que pune violência e discriminação por motivos religiosos, étnicos e raciais.
Segundo fontes do Vaticano, Gallagher afirmou que o projeto, se aprovado, violaria a Concordata — termo firmado entre a Igreja e o governo italiano, originalmente entre o papa Pio 11 (1857-1939) e o líder fascista Benito Mussolini (1883-1945), depois revisado e ajustado em 1984.
É a primeira vez, contudo, que essa prerrogativa é utilizada pelo Vaticano. “A Igreja geralmente faz pressão sobre leis por meio da conferência dos bispos e de associações. É raro o Vaticano se meter diretamente”, comenta o vaticanista Filipe Domingues, doutor em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
“A Concordata prevê que as duas partes [Igreja e Estado italiano] entrem em diálogo amigável quando houver algum mal entendido, alguma possível violação do tratado. Mas isso nunca foi feito de forma institucional”, pontua ele.
Mussolini e a oficialização do Vaticano
É preciso recuar 150 anos para compreender a gênese desse imbróglio. A partir de 1870, quando a Itália foi reunificada e se tornou o país com os contornos atuais, a Igreja Católica acabou perdendo suas imensas possessões na região central da bota.
“O papa Pio 9º [(1792-1878)] se declarou prisioneiro do recém-criado Estado e se refugiu num bairro chamado Vaticano, criando ali um problema que duraria quase 60 anos”, explica o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Na década de 1920, com a chegada de Mussolini ao poder, houve toda uma articulação para tentar resolver essa questão.
“Ele foi gradativamente conquistando espaço junto à sociedade italiana. Fez acordos com a monarquia, com os militares, com os latifundiários, com os industriais. Faltava o acordo com a Igreja, que seria de fato a pedra de toque do processo de conquista e consolidação do poder pelos fascistas”, avalia Moraes.
“A Igreja, por sua vez, estava ansiosa para resolver essa questão”, completa. Assim, em 11 de fevereiro de 1929 foram assinados três documentos que compõem o chamado Tratado de Latrão — por Mussolini e pelo cardeal Pietro Gasparri (1852-1934), na condição de representante do papa.
O primeiro documento era o reconhecimento mútuo de que o minúsculo território do Vaticano, a partir daí, seria um Estado soberano. O outro previa uma compensação financeira à Igreja pelos danos ocorridos durante a reunificação italiana.
“O terceiro tem reflexos diretos na sociedade e mostra a força da Igreja, pois deixa evidente essa relação entre o Estado e a Igreja”, analisa Moraes. Trata-se da Concordata, segundo a qual o catolicismo seria declarado a única forma de religião do Estado italiano, o casamento religioso passava a ser reconhecido pelas autoridades civis, os padres ficavam isentos do serviço militar e o ensino da religião católica tornava-se obrigatório em todas as escolas italianas.
“Tanto para a Itália quanto para a Igreja, esses acordos acabaram sendo muito interessantes”, explica o historiador e teólogo. “Mussolini conseguiu consolidar seu poder e passou a ser visto como representante de Deus, um enviado de Deus. O papa Pio 11 disse diversas vezes que Mussolini era o ‘homem que a providência nos enviou’, então ele passou a ser visto como alguém para resolver uma arenga que já vinha se arrastando há muito tempo.”
“Por outro lado, a Igreja também tinha ali seu poder político reconhecido. E o poder espiritual também: poder falar diretamente para as crianças, poder ensinar nas escolas, poder estabelecer e consolidar seus valores para aquela geração e para as futuras gerações”, contextualiza.
Com a queda do regime fascista de Mussolini, os acordos firmados entre Pio 11 e o governo italiano acabaram incluídos na Constituição de 1948.
A revisão do acordo
Na década de 1980, a Concordata foi revisada. “Revelou-se um acordo desatualizado ao longo do tempo, tanto porque a posição privilegiada conferida à Igreja contrastava com os valores de igualdade expressos pela nova Constituição, como porque não era apropriada à visão que surgiu após o Concílio Vaticano 2º [realizado nos anos 1960]”, explica o especialista em direito canônico Vincenzo Fasano, professor na Pontifícia Universidade de Estudos São Tomás de Aquino de Roma, advogado do Tribunal Apostólico da Rota Romana, postulador para as Causas dos Santos e advogado nos Tribunais do Estado da Cidade do Vaticano.
A versão atual do termo data de 1984 — ficou conhecida como Acordo de Villa Madama. O Vaticano estava sob o comando do papa João Paulo 2º (1920-2005). O governo italiano, por sua vez, era liderado por Bettino Craxi (1934-2000), do Partido Socialista Italiano.
“A estrutura da Concordata de 1984 é radicalmente diferente da anterior”, compara Fasano. “Em vez de um texto formulado de maneira meticulosa e casuística, temos uma estrutura ágil de apenas 14 artigos que visa a enunciar os princípios que devem inspirar a regulação das relações entre Igreja e Estado.”
Para o pesquisador Raylson Araujo, membro do Núcleo de Diálogo Católico-Pentescostal de São Paulo, essa atualização se fez necessária porque o documento original “respirava os século 18 e 19”. “Dizia, por exemplo, que a única religião na Itália era a católica, e isso foi revogado. A educação religiosa também passou a ser opcional nas escolas.”
Laicidade sui generis
Pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, a vaticanista Mirticeli Medeiros sublinha que este documento “é o que regulamenta a presença da Igreja Católica na Itália”.
Sua revisão estava adequada a dois movimentos: o fato de que o Estado italiano já se declarava laico desde a Constituição de 1948; e a questão posta no Concílio Vaticano 2º sobre a importância da liberdade religiosa e da liberdade dos Estados.
“A partir de então, o catolicismo não é mais apresentado como a única religião do Estado italiano, como era reconhecido no artigo primeiro do texto de 1929”, compara Medeiros. “Na primeira versão dos pactos, para termos uma noção, os princípios católicos regulavam temas como matrimônio e divórcio. E a Igreja era obrigada, inclusive, a rezar pelo rei da Itália, que deveria ser católico, e pelo Estado italiano, durante as missas.”
Mas há implicações contemporâneas. “As leis italianas, à diferença de outros estados com os quais a Santa Sé firma acordos, reconhecem o catolicismo como patrimônio histórico do país ainda hoje”, ressalta ela. “Tal reconhecimento faz com que a república italiana estabeleça, em lei, que o ensino religioso católico seja obrigatoriamente ministrado em escolas públicas, por exemplo.”
“O aluno é livre para decidir se quer ou não participar das aulas, mas o curso compõe a grade escolar”, explica. “Alguns especialistas chegam a considerar que a Itália, embora a Constituição diga o contrário, nunca deixou realmente de ser um Estado confessional. Por privilegiar, até hoje, o ensino religioso católico nas escolas. Por conta disso, chegam a dizer que, na Itália, se vive uma ‘laicidade sui generis’.”
Fasano frisa que o artigo segundo da revisão da concordata dispõe que a república italiana “reconhece a plena liberdade da Igreja Católica para cumprir a sua missão pastoral, educativa e caritativa, de evangelização e santificação”. “Em particular, é garantida à Igreja a liberdade de organização, do exercício público do culto, do exercício do magistério e do ministérios espiritual. Aos católicos, suas associações e organizações, é garantida a plena liberdade de reunião e expressão do pensamento por meio da palavra, da escrita e de qualquer outro meio de divulgação”, acrescenta.
Educação
Seria justamente por conta dessa questão a discussão levantada pelo Vaticano frente à lei anti-homofobia que tramita na Itália. Fontes do Vaticano ouvidas pela reportagem explicam que o projeto tem dois pontos que não foram bem-digeridos pelos católicos mais conservadores.
O primeiro é a previsão da instituição de um futuro Dia Nacional contra a Homofobia — cuja data serviria para dar visibilidade ao tema e recordar as vítimas de discriminação pela orientação sexual. A preocupação aqui residiria no fato de que as escolas confessionais católicas também seriam obrigadas a participar.
O outro tema levantado na carta do arcebispo Gallagher é sobre o risco de que, com a lei em vigor, sacerdotes católicos possam ser enquadrados nela se emitirem opiniões contundentes contra casamentos homoafetivos, por exemplo.
No cerne da Igreja, a discussão parece ser entre o direito às liberdades, anteriormente adquirido, e as liberdades adquiridas com direitos recentes.
“A Igreja tem o direito de ser para o homem mestra de verdades da fé: da verdade não só do dogma, mas também da moral que dimana da mesma natureza humana e do Evangelho”, defende Fasano. “A palavra do Evangelho não deve somente ser ouvida, mas também posta em prática: a coerência nos comportamentos manifesta a adesão do crente e não se restringe ao âmbito estritamente eclesial e espiritual, mas abarca o homem em todo o seu viver e segundo todas as suas responsabilidade.”
O questionamento formal do Vaticano ao governo italiano, recorrendo ao direito previsto pela concordata, contudo, chama a atenção pelo ineditismo. Isso não ocorreu mesmo em outros temas considerados espinhosos para a moral católica.
“Em 1974, após um referendo, o [direito ao] divórcio foi sancionado na Itália. Houve protestos por parte de algumas associações católicas e dos bispos locais contra a aprovação, mas o Vaticano, em si, em respeito a essa independência que a neorrepública italiana conquistava, não abriu um canal diplomático para tratar da questão”, lembra a vaticanista Medeiros.
“[O papa] Paulo 6º [(1897-1978)] se manifestou, sinalizando um descumprimento da concordata de 1929, mas mesmo assim não atuou através de vias formais, digamos assim. Da mesma forma, João Paulo 2º, em 1981, condenou a aprovação do aborto no país, mas não acionou medidas protocolares. Por isso, o caso de agora é uma novidade absoluta.”
“Geralmente é a CEI [(Conferência Episcopal Italiana)] que faz intervenções ou expressa um descontentamento de uma coisa ou outra, mas o próprio Vaticano, assim, foi até surpreendente”, comenta o pesquisador Araujo.
É a terceira vez em menos de um ano que a maneira como o Vaticano se posiciona em temas relativos aos direitos dos homossexuais repercute. Em outubro, o assunto veio à tona por conta do lançamento do documentário ‘Francesco’, do cineasta americano de origem russa Evgeny Afineevsky, em que o papa aparece dizendo que os homossexuais têm direito a uma família. O Vaticano acabou se posicionando em seguida, alegando que o trecho veiculado estava fora de contexto.
Em março, a Congregação para a Doutrina da Fé divulgou comunicado enfatizando que o catolicismo não abençoa uniões homoafetivas.
“São três movimentos da própria Santa Sé. Talvez seja o recado de que em relação à doutrina, esse é um pontificado que não é progressista, não abre mão [dessa postura]. Embora seja progressista na dimensão pastoral”, afirma Araujo.
O caso atual
“Seja no campo do ensino, seja no campo da liberdade de expressão, qual o medo da Igreja? O medo da Igreja é que uma legislação que criminaliza a homofobia possa impedir os padres de falarem [sobre homossexualidade], de apontarem isso como um pecado. Eles temem ser processados”, resume o historiador e teólogo Moraes.
“Mesmo que se garanta a liberdade, há o medo, a lógica do medo. É a lógica que funciona nos grupos religioso, tanto nos católicos quanto nos evangélicos”, acrescenta ele. “E sempre vai provocar uma postura reativa toda vez que se falar em criminalizar a homofobia. É algo estranho mas é o que se passa na cabeça desses religiosos.”
Para ele, no aspecto educacional, há a questão de que grupos católicos conservadores tendem a ver como uma “ingerência” equivocada que crianças, mesmo em escolas confessionais, sejam estimuladas a participar de um dia de conscientização na luta contra a homofobia. “É uma área para eles essencial, para garantir que esses valores cristãos sejam passados para as futuras gerações”, explica Moraes.
“Esses dois fatores geram melindre. Estamos vivendo um momento de recrudescimento de posturas racistas, nazifascistas. No mundo todo. Posturas ditas conservadoras, reacionárias. Nesse sentido, a bola da vez é a luta contra a homofobia. Ou seja: aquilo que criminalize aqueles que agem de maneira violenta contra os homossexuais”, contextualiza.
Para ele, esses religiosos mais conservadores tendem a enxergar supostos pacotes de doutrinação por trás dessas legislações que buscam proteger e garantir direitos para grupos minoritários. “Como uma religião se perpetua? Fazendo um trabalho com as futuras gerações, e eles querem garantir isso por meio dos colégios católicos, que toda essa postura conservador seja preservada, a ideia da família tradicional”, acrescenta. “Para eles, é como se essas leis tivessem a intenção de implantar novos modelos familiares.”
A vaticanista Medeiros comenta que o gesto do Vaticano, “exigindo esclarecimentos sobre o projeto de lei” precisa ser entendido mais como um pedido de revisão do que uma intervenção. “Talvez seja até exagerado chamar de intervenção, uma vez que uma intervenção direta, na verdade, não pode ser feita”, ressalta.
“A via prevista pelo acordo é a de convocar uma ‘comissione paritetica’, um recurso, previsto no pacto entre os dois Estados, que pode ser acionado para se chegar a uma solução amigável sobre determinados assuntos”, explica ela.
“Foi feito um pedido de revisão, por vias diplomáticas, e é a grande novidade, sobre um dos artigos do projeto que exige às escolas, incluindo as católicas, que se celebre o dia de combate à homotransfobia”, contextualiza. “A diplomacia pontifícia entende que isso feriria o artigo segundo da concordata de 1984, uma vez que, na prática, as escolas católicas têm liberdade de organização.”
O vaticanista Domingues acredita que a questão basilar da questão esteja no fato de que, embora o Estado italiano seja laico, se trata de um país onde “a doutrina cristã é prevista como valor moral, como orientação moral”.
“No pacto [a Concordata], a doutrina cristã é prevista como arcabouço moral da educação pública”, enfatiza. “Claro que muita coisa aconteceu de lá para cá, a sociedade está mais plural, o papel da Igreja mudou, mas há uma situação de zonas cinzentas sobre até onde vai o papel da Igreja.”
Em sua visão, contudo, isso não significa que o Vaticano queira barrar o projeto. “Só não quer que as escolas católicas sejam obrigadas a seguir da mesma forma que as públicas. Quer uma liberdade, que o projeto seja alterado para que as escolas confessionais possam aderir [a seu modo] a esse dia”, argumenta.
E Francisco?
Para o teólogo e historiador Moraes, essa tentativa de interferência pode não representar a vontade pessoal de papa Francisco, cuja imagem costuma ser vista como progressista e que já se manifestou em favor da autonomia de Estados para suas legislações civis.
“A política é a arte do possível, e a política eclesiástica também. Há tantas questões, o governo de um papa também é um período de muitas frentes, muitas lutas. Às vezes, para ganhar uma guerra é preciso perder determinadas batalhas”, comenta ele.
“De fato causa estranheza isso vir em um papado de Francisco. Por outro lado, é política: ele conclama as partes para um diálogo. A posição da Igreja sempre será conservadora, mas uma posição conservadora, que aceita mudanças lentas, graduais e progressivas, não precisa ser necessariamente reacionária, que quer dar marcha à ré na história”, acrescenta.
“Francisco tem de lidar com grupos conservadores e reacionários dentro da Igreja Católica, porque é uma instituição humana que tem interesses variados”, conclui o especialista. “Ele tem de fazer uma política que agrade a todos esses grupos e que, ao mesmo tempo, não abra mão do patrimônio histórico, simbólico, intelectual, espiritual e religioso da Igreja Católica.”
Araujo ressalta que o pontificado de Francisco é progressista nas questões pastorais mas conservador quanto à doutrina, cujas “mudanças são pouquíssimas, raras”. “Não sei se esse movimento [atual] tem a mão de Francisco ou se é a cúria romana, ou membros da cúria, mexendo seus pauzinhos até mesmo talvez para criar um conflito que não era necessário, jogar Francisco em maus lençóis”, especula ele.