Por que os países subdesenvolvidos “desperdiçam” o bônus demográfico? Por José Álvaro Cardoso.

Por José Álvaro Cardoso.

Pelos dados do último Censo, realizado em 2022, a população brasileira chegou a 203.062 mil habitantes (até 31 de julho de 2022). A população residente no Brasil tem aumentado sucessivamente, apresentando um crescimento superior a 20 vezes nos últimos 150 anos, desde o primeiro censo, realizado em 1872. Em 12 anos, na comparação de 2022 com 2010, a população recenseada brasileira aumentou em 12,3 milhões de pessoas. Mas o ritmo de crescimento demográfico vem reduzindo: foi de 0,52% na média anual dos últimos 12 anos, uma redução drástica em relação aos 1,17%, na média anual do censo anterior.

A razão fundamental da queda das taxas de crescimento demográfico no país foi a redução da taxa de fecundidade (média de número de filhos por mulher em idade de procriar, entre 15 a 49 anos), que vem caindo desde 1960, quando era de 6,3 filhos por mulher. A queda da taxa de crescimento da população não é novidade, ela começou a ocorrer desde 1960 e se manteve de forma contínua.

Há portanto, um processo de envelhecimento da população, decorrente do aumento na expectativa de vida e da redução do número de filhos por casal. Segundo dados da Organização das nações Unidas (ONU), a taxa de fecundidade em 2018, no Brasil, foi de 1,7 filho por mulher, abaixo da média mundial naquele ano, de 2,5 filho por mulher. Esse processo de redução da taxa de fertilidade, que está ocorrendo de forma gradativa, ao longo das últimas décadas, combinado com o aumento da expectativa média de vida das pessoas, vem alterando a pirâmide etária brasileira. A queda da taxa média de crescimento da população brasileira ocorre de forma continua desde 1960, conforme se pode observar no gráfico.

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010/2022

Os pesquisadores do IBGE preveem o início do processo de redução da população brasileira, para uma data entre 2030 e 2040. Aqui já não se trata de redução da taxa de crescimento da população, e sim da diminuição do número absoluto de residentes no país. O Brasil atravessa uma transição demográfica, na qual o número de nascimentos está caindo e a população está vivendo mais tempo. Mas, proporcionalmente, o número de pessoas economicamente ativas supera o de crianças e idosos. Esse fenômeno ocorre somente uma vez na história demográfica de cada país e é denominado “bônus demográfico”, ou “janela demográfica”. Para os demógrafos o auge do bônus demográfico ocorreu em 2020, o que significa que o processo já está na descendente, com encerramento previsto para uma data entre 2030 e 2040.

É certo que o país deveria estar aproveitando o período de bônus demográfico para desenvolver sua economia e melhorar a renda per capita da população, preparando-se para períodos mais bicudos do ponto de vista demográfico. Seria uma preparação do país para o envelhecimento de sua população: fazer a renda crescer e melhorar sua distribuição, elevar os níveis educacionais. Garantir, ademais, um sólido sistema de aposentadoria, que tivesse condições de absorver uma população crescentemente incapacitada para o trabalho. O Brasil, como se sabe, nos últimos 30 anos pelo menos, tem desenvolvido políticas que vão exatamente na direção contrária.

Um dos cálculos feitos para aferir a importância do bônus demográfico é o da taxa de dependência, um índice que expressa a proporção existente entre a população dependente com a população economicamente ativa, da qual aquela depende para a produção de riquezas. Geralmente a taxa de dependência é calculada através da proporção entre as pessoas acima de 65 anos, em relação às que se entram em idade economicamente ativa. Este indicador é bastante utilizado na análise da sustentabilidade de sistema de pensões e aposentadorias. A taxa de dependência consegue indicar, por exemplo, quantas pessoas em idade ativa são necessárias para financiar uma aposentadoria de valor médio. O cálculo de que o Brasil deve encerrar em alguns anos a etapa de bônus demográfico, certamente está presente no diagnostico que inspirou a contrarreforma da previdência em 2019.  

Alguns especialistas nos estudos de população fazem duras críticas ao fato de o Brasil não estar aproveitando a fase de janela demográfica para crescer e melhorar a renda da população. Observam que se a população envelhece sem dar um salto para níveis superiores de renda per capita, dificilmente o país conseguirá realizar isso na fase de esgotamento do bônus, em função do envelhecimento da população. Alguns lembram que precisaria ser feito um investimento pesado em educação e profissionalização, preparando a população para o período mais difícil de maturidade etária, no qual diminuiu a capacidade de trabalho e aumenta a incidência de doenças, pressionando previdência e saúde públicas. Costuma-se inclusive fazer a comparação com a trajetória individual das pessoas, ou seja, a ideia de que se deve aproveitar a juventude para fazer um “pé de meia” e se preparar para os tempos mais difíceis da velhice, (o que é tão certo quanto a morte).

Alguns desses críticos citam os países ricos, como Alemanha, França e EUA, cujas populações já envelheceram, mas que possuem elevada renda per capita e altos níveis de educação de sua população. A Coreia do Sul também é um país habitualmente citado, pelo sucesso no aproveitamento do bônus demográfico.

O grande problema dessas críticas é que são muito superficiais e desconsideram o âmago do problema: o funcionamento das relações internacionais concretas, nas quais o subdesenvolvimento da maioria dos países explica o desenvolvimento de um número reduzido deles. As críticas são feitas como se o não aproveitamento do bônus demográfico fosse apenas um problema de incompetência dos governos na execução das políticas de distribuição ou de crescimento, e não uma questão essencialmente política e econômico, de relações entre países imperialistas e países subdesenvolvidos ou periféricos.

Por exemplo, em 2016, quando o governo Dilma foi interrompido por um golpe coordenado pelos EUA, os indicadores de rendimento dos trabalhadores vinham melhorando em decorrência de políticas públicas, ou seja, o tal bônus demográfico estava sendo concretamente aproveitado para melhorar a vida da população. Com o golpe, imediatamente começou a piorar a vida da população com as medidas que passaram a ser adotadas, processo que nada teve a ver com o aproveitamento, ou não, da janela demográfica.

Todas essas críticas ao não aproveitamento do bônus demográfico nos países subdesenvolvidos são feitas como se o fato resultasse de uma incompetência dos governos dos países subdesenvolvidos, uma incapacidade administrativa. Os países ricos teriam, ao contrário, de forma competente, aproveitado a janela demográfica melhorando assim a vida de suas populações. Mas essa hipótese tem sustentação? Será que esse é um problema administrativo, de falta de planejamento, ou o fato está relacionado com questões mais estruturais, ligadas às características do (sub) desenvolvimento dos países da periferia capitalista?

Cabe lembrar nesse debate que o problema apontado não é exclusivo do Brasil, a maioria dos países latino-americanos atravessa atualmente um período que seria favorável ao desenvolvimento, em função do bônus demográfico. Se as condições políticas e econômicas desses países fossem favoráveis, isto é, se houvesse soberania e projeto de desenvolvimento nacional, e suas riquezas fossem destinadas ao desenvolvimento e ao bem-estar de suas populações, certamente poderiam aproveitar a oportunidade trazida pela demografia.

O problema do Brasil e da América Latina em geral não é técnico, relacionado à demografia ou outras áreas de intervenção governamental, descoladas da economia política de uma forma geral. Nos países subdesenvolvidos o próprio desafio de desenvolver o país, pressuposto fundamental para garantir qualidade de vida para jovens e idosos, não é um problema meramente técnico, depende de decisões políticas e da chamada correlação de forças. O desenvolvimento econômico e social, especialmente neste momento, é uma ação quase que proibida nesses países.

José Álvaro Cardoso é economista e Coordenador do DIEESE/SC.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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