Por que alimentos no Brasil estão caros e na Bolívia, baratos? Segredo está no pequeno produtor

Além de incentivos econômicos, políticas criadas por Evo Morales ajudam agricultores a vender produtos em feiras de preço justo, cruciais para evitar inflação

Por Guilherme Ribeiro, Diálogos do Sul.

No último mês de março, o valor da cesta básica aumentou em pelo menos 10 capitais brasileiras. Os dados são da Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, realizada mensalmente pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e que leva em consideração 13 produtos alimentícios.

As maiores altas foram registradas em Recife (5,81%), Fortaleza (5,66%), Natal (4,49%) e Aracaju (3,90%). Em relação ao custo total da cesta, os maiores ficaram em São Paulo (R$ 813,26), Rio de Janeiro (R$ 812,25), Florianópolis (R$ 791,21) e Porto Alegre (R$ 777,43).

Para adquirir os itens básicos, o salário mínimo em março deveria ser de R$ 6832,20, pouco menor que em fevereiro (R$ 6.996,36), mas maior que em janeiro (R$ 6.723,41) e dezembro (R$ 6.439,62).

Dos diferentes fatores que influenciam o preço dos alimentos no Brasil, essa reportagem observa especialmente o papel dos pequenos produtores e faz um paralelo com a Bolívia, que mantém uma política robusta de segurança e soberania alimentar e há anos ostenta uma das mais baixas taxas de inflação da América Latina (0,74% no primeiro trimestre de 2024, frente a 1,42% no Brasil, 2,73% na Colômbia e 51,6% na Argentina). Para isso, contamos com a análise de três especialistas:

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Bruno Bassi
: internacionalista formado pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e pesquisador, é coordenador do núcleo de pesquisa do De Olho nos Ruralistas, observatório que investiga os impactos sociais e ambientais do agronegócio no Brasil. Participou de delegações no Fórum Público da Organização Mundial do Comércio e da Cúpula Jovem do G20.

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Daniela Sandi
: graduada em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), é economista e assessora do Escritório Regional do Dieese no Rio Grande do Sul.

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Remmy Gonzáles
: engenheiro agrônomo e político boliviano, foi Ministro de Desenvolvimento Rural e Terras da Bolívia de 2021 a 2024, durante o governo do presidente Luis Arce, e vice-ministro de Desenvolvimento Rural e Agropecuário de 2008 a 2009, durante o primeiro governo do presidente Evo Morales.

Confira:

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Inflação e cesta básica

“A percepção geral da sociedade brasileira é que, hoje, os itens básicos estão muito caros e o rendimento mensal possibilita a compra de cada vez menos itens. Ocorre que o custo de vida aumentou entre 2020 e 2022 principalmente para as famílias de baixa renda”, adianta Daniela Sandi.

Isso acontece porque a alta ficou concentrada nos alimentos que proporcionalmente têm um peso maior no orçamento familiar. É o que mostra o quadro abaixo, que toma como exemplo as variações da cesta básica na cidade de São Paulo, por período de governo, de 2011 a 2023:

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É o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) que define a inflação no Brasil e se baseia na variação de preço de uma série de itens e serviços. Enquanto a variação da taxa durante os quatro anos do governo Bolsonaro ficou em 27,12% (similar aos 26,62% e 27,83% das gestões anteriores), a cesta básica em São Paulo subiu mais que o dobro no mesmo período (68%).

“Os preços podem não variar ou até caírem e, mesmo assim, o custo de vida ser elevado, pois no passado recente os principais itens do orçamento, alimentação, gás, energia, subiram muito acima da média geral de preços e a maior parte da população perdeu poder de compra”, explica Sandi.

Causas

Fato é que em 2024 o custo da cesta básica tem registrado crescimento. Sobre isso, a economista aponta: “A alta recente, depois de um ano de queda, foi puxada principalmente pelo grupo de produtos in natura, como batata, tomate, banana, etc., em razão da instabilidade climática [El Niño]”.

Os alimentos in natura, ou naturais, são aqueles obtidos diretamente de plantas ou animais e consumidos sem alterações. “Frequentemente têm uma variação maior para cima ou para baixo nos preços por conta do clima, da safra e dos ciclos de produção mais curtos”, comenta Sandi.

O impacto de eventos climáticos extremos no Brasil também é destacado pelo pesquisador Bruno Bassi como causa da alta nos preços: “afeta diretamente a produção, principalmente de hortaliças, frutas e alguns legumes que são menos resistentes a variações nas condições de plantio”, afirma.

Membro do portal De Olho nos Ruralistas, Bassi cita como exemplo o tomate, que acumula aumento de 13,21% em 2024, 9,85% apenas em março: “há uma questão ligada às mudanças climáticas e o ritmo cada vez mais avançado do aumento de calor nas principais regiões produtoras do Brasil”. E adverte: “Isso é, em grande parte, um reflexo do próprio sistema agrícola produtivo do país”.

Redução na área de plantio

“Aí a gente entra nas questões mais estruturais. Por quê? O Brasil vem sofrendo uma redução contínua nas áreas de plantio destinadas a produtos relativos à segurança alimentar”, assevera Bassi.

Em 2006, o Ministério da Saúde publicou o Guia Alimentar para a População Brasileira, que recomenda o consumo dos alimentos naturais e minimamente processados para as ações de promoção da saúde e da segurança alimentar e nutricional no Brasil.

“Você tem menos áreas, ou áreas iguais com uma demanda maior desses alimentos, o que afeta essa lógica de distribuição e consumo, portanto, aumentando os preços”, segue Bassi. É o caso do arroz e do feijão, que nos últimos 16 anos perderam 30% do território de plantio para a soja e o milho. “Isso vem acontecendo em todo país”, alerta.

Somam-se a essa questão a crise econômica presente no país nos últimos anos e os efeitos da pandemia da covid-19, um contexto que levou especialmente os pequenos produtores ao endividamento:

“Esse estrangulamento gera uma situação de bastante insegurança, porque, a qualquer momento, diante de uma quebra de safra ou de uma condição climática adversa, há uma flutuação muito grande na disponibilidade de produtos e, portanto, de preços”, diz Bassi.

Plantação de soja em área do município de Alto Paraíso de Goiás (GO) mostra o avanço da fronteira agrícola na região da Chapada dos Veadeiros (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil – mais informações)

Para o especialista, o avanço das commodities é um aspecto central da inflação de alimentos e insegurança alimentar no Brasil: “é fundamental discutir o papel do agronegócio, cujos interesses, especialmente das grandes corporações agroexportadoras, avança sobre territórios antes consagrados à produção alimentícia para o consumo das famílias brasileiras”, denuncia.

No mesmo sentido vai Daniela Sandi: “isso traz pressão sobre esses itens essenciais da mesa do brasileiro”. Ela destaca que a produção de itens como a soja é mais rentável por ser destinada à exportação – paga em dólares – o que diminui a oferta no mercado interno e também eleva os preços:

“E essa alta não é neutra. Quem mais é impactado é a população de menor renda, que tem proporcionalmente um peso maior da alimentação [em sua renda]. Mais recentemente, foi o caso do arroz, produto que mais subiu de preço na cesta básica, justamente pelo grande volume exportado”, avalia Sandi.

Na Bolívia, a chave foi virada há mais de 15 anos

“Cada país deve garantir a terra para os pequenos produtores. Deve-se canalizar o financiamento neles, melhorar a tecnologia para aumentar a produtividade e garantir a eles um mercado justo”, propõe Remmy Gonzáles, ex-ministro do Desenvolvimento Rural e Terras no governo de Luis Arce, na Bolívia.

O médio e o grande empresário, ele confirma, estão interessados em adquirir maior capital, e assim buscam utilizar todas as superfícies possíveis para itens de exportação: “se não houver pequenos produtores que se dediquem aos alimentos frescos, às hortaliças, aos tubérculos, é muito difícil”, assinala.

Gonzáles é engenheiro agrônomo e entre 2008 e 2009 integrou também a equipe de Evo Morales, como vice-ministro do Desenvolvimento Rural e Agropecuário. Portanto, foi parte da elaboração de políticas robustas de controle de preços e de segurança e soberania alimentar presentes ainda hoje na Bolívia – exemplos para a América Latina.

Mercado municipal de Sucre, na Bolívia (Foto: Alex Schwab / Flickr)

Em 2007 e 2008, o país sofreu altas taxas de inflação, 11,73% e 11,85%, respectivamente. Duas causas foram identificadas: o aumento nos países vizinhos e a ação dos grandes empresários que começaram a elevar os preços para desestabilizar a economia e o governo de Evo. “Tivemos que tomar várias medidas, porque somos conscientes de que segurança alimentar só é garantida com abastecimento, acessibilidade e disponibilidades dos produtos”, conta Remmy.

Uma das primeiras ações foi criar a Empresa de Apoio à Produção de Alimentos (Emapa), que subsidia sementes e insumos para o setor agrícola, além de comprar a produção a um custo de 15% a 20% acima do mercado para ser vendida a preços mais baixos para os consumidores. “Somam-se a isso financiamentos como o Programa de Alianças Rurais, onde os produtores são financiados em 70% e colocam os outros 30%”, detalha Remmy.

O governo boliviano também dedica políticas especialmente aos pequenos agricultores. O país possui mais de 800 mil unidades produtivas, sendo que 92% pertencem à agricultura familiar: “eles são incentivados por meio de programas de hortaliças e também de tubérculos e raízes, como a batata e outros produtos”, afirma Remmy.

Outras duas ações do Estado boliviano, decisivas na contenção da inflação, são a verificação contínua dos preços nos mercados – através do Ministério da Economia e do Ministério do Desenvolvimento Rural – e o controle de exportações: “primeiramente, é preciso garantir o mercado interno, e se está garantido e não há uma inflação elevada, permite-se a exportação do restante dos produtos”, cita o ex-ministro.

O Índice de Preço ao Consumidor define a inflação na Bolívia. O quadro mostra a variação acumulada mensalmente ao longo dos últimos 6 anos e em 2024. O governo boliviano atua constantemente para evitar altas que afetem o poder de compra.

É neste sentido que Remmy diferencia e valoriza a lógica dos pequenos agricultores: “eles têm outra visão, inclusive, muito deles se dedicam à produção ecológica orgânica, tentam ser mais amigos da Pachamama [Mãe Terra], têm outra composição produtiva”. E completa: “há uma tremenda economia para a população e para o Estado em regular, apoiar e fomentar sua produção”.

Ações do Governo Lula

“Várias medidas já estão em curso para melhorar o acesso aos alimentos básicos, como o Plano Safra, que fortalece a agricultura familiar, auxiliando a ampliação da produção de itens essenciais, como feijão, arroz e hortifrúti, e as políticas de estoques públicos, além da recuperação da renda, que é fundamental”, elenca Daniela Sandi, do Dieese.

De fato, o Governo Lula retomou o aumento do salário mínimo com ganho real após anos de reajustes, durante os mandatos de Temer e Bolsonaro (2016 – 2022), baseados apenas na inflação. Em 2024, o piso subiu de R$ 1.320 para R$ 1.412, uma alta de 7%, acima da soma da inflação e do crescimento do PIB (6,85%).

“São cerca de 60 milhões de pessoas que têm sua renda referenciada no salário mínimo. O peso da alimentação na renda dessas famílias é proporcionalmente maior”, explica Sandi.

Já com o Plano Safra – responsável por oferecer crédito, incentivos e políticas ao setor agrícola, dos familiares ao mega produtores – o Governo Federal pretende estimular a diversificação dos alimentos produzidos, contribuindo para a soberania alimentar.

O agricultor Máximo Nunes de Oliveira durante colheita de insumos no Quilombo Dona Bilina, no Rio de Janeiro, em 19 de dezembro de 2023 (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Ainda no âmbito do programa, Lula declarou, em junho de 2023, que pretende retomar a Política de Garantia de Preços Mínimos, por meio da qual o governo também pode incentivar o plantio de determinadas culturas, mas se compromete a comprar produção em excesso por um valor acima do mercado, evitando prejuízos ao setor agrícola. A quantia adquirida é estocada.

E por falar em estocar, também em junho de 2023, a atual gestão anunciou a retomada dos estoques públicos, administrados pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e abandonados pelos últimos governos:

“São estratégicos para a soberania e a segurança alimentar, sendo uma das ferramentas que o governo tem para atuar quando o preço dos alimentos dispara”, salienta Sandi. A Conab iniciou com a compra de 500 mil toneladas de milho em 2023. A proposta é garantir que o grão não falte nas granjas, impedindo a alta no preço do frango, dos ovos e da carne suína.

Vale dizer que os resultados da medida não são imediatos. Porém, a economista explica: “Sinaliza para o agricultor, para o mercado e para a população uma segurança maior na estabilidade dos preços e abastecimento”.

Dá para ir além…

“Temos iniciativas focadas no crédito, porém ainda precisamos de um programa estrutural de fomento à agricultura familiar, especialmente a agricultura de base camponesa e agroecológica, praticada nos assentamentos da reforma agrária, para que esse alimento chegue nas cidades de forma direta”, afirma Bruno Bassi.

O pesquisador explica: construir e fortalecer as cadeias diretas é fazer com que o alimento saia do campo e chegue aos consumidores sem atravessadores, ou seja, livre da intermediação das redes de supermercados e distribuidores atacadistas e varejistas, que não apenas encarecem o custo final, mas têm uma lógica pautada no desperdício.

15ª Feira da Reforma Agrária, de produtos agrícolas de assentados e acampados ligados ao MST e cooperativas, no Largo da Carioca, Rio de Janeiro, em 18 de dezembro de 2023 (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

“Temos, por exemplo, a Missão Josué de Castro, que visa alimentar cinco milhões de pessoas através de cadeias diretas e das cozinhas solidárias”, cita Bassi. A ideia do programa é construir infraestruturas de produção, processamento e logística para beneficiar 1,5 milhões de pessoas no Nordeste e Sudeste, e de 500 mil a 1 milhão no Sul, Norte e Centro-Oeste.

O projeto une forças de pelo menos 20 organizações, incluindo o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), e tem ainda ações ligadas a meio ambiente, inovação, comunicação, arte e cultura.

Quanto ao desperdício de alimento nas grandes redes de supermercado, Bassi observa: “É um problema estrutural no Brasil”. Ele indica ações como o repasse de produtos a iniciativas focadas em segurança alimentar, a fim de evitar perdas.

Feiras de preço justo na Bolívia

Com as políticas de incentivo de Evo Moraes aos agricultores e a consequente queda no custo dos alimentos, Remmy Gonzáles conta que o governo passou a lidar com os ranqueros, que compravam os produtos a preço baixo nas áreas de produção e vendiam caro na cidade. A solução foi criar, a partir de 2014, as Feiras de Peso e Preço Justo.

“O Estado teve que intervir para que os consumidores pudessem comprar diretamente, evitando assim a alta e a especulação dos preços dos principais alimentos”, explica o engenheiro.

Como funciona: o Ministério do Desenvolvimento Rural e Terras (MDRyT) contacta produtores para que vendam os alimentos nas feiras, que acontecem ao longo do dia, em datas pré-determinadas e próximas de mercados, para que a população possa comparar e escolher onde comprar. Em alguns casos, o MDRyT faz uma parceria com as prefeituras para ajudar os agricultores com o custo do transporte.

Feira em Cochabamba, Bolívia (Foto: Kristin Miranda / Flickr)

“Quando menos imaginamos, diante de um problema climático, um bloqueio de estrada, ou algo assim, os mercados aproveitam imediatamente e especulam com os preços, e para evitar isso temos que constantemente fazer as feiras”, reforça Gonzáles, que destaca: “é uma luta constante”.

Denuncie

No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor veda o preço abusivo, caracterizado como a prática de “elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços”. Caso se depare com casos como esse no mercado perto de você, denuncie. A reclamação pode ser feita no Procon ou através do site www.consumidor.gov.br, do Governo Federal.

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– Fotos dos entrevistados no início da matéria: Bruno Bassi: arquivo pessoal / Daniela Sandi: Sintrajufe-RS / Remmy Gonzáles: FAO/Max Valencia

 

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