Por João Werneck em Sputnik Brasil.
Da colonização africana ao fracasso da Operação Barkhane: em entrevista para a Sputnik Brasil, analistas explicam como funcionou o imperialismo francês na África, e por qual razão o governo de Emmanuel Macron, presidente da França, se recusa a pedir desculpas para a população argelina pela colonização.
Embora com múltiplas complexidades históricas e geopolíticas envolvidas, a relação da França com a África nos últimos dois séculos é marcada por uma característica singular: a ocupação militar.
A presença do Exército francês em países africanos, em especial na Argélia, durante a colonização (1830-1962), e depois no Mali e nos países do Sahel, no esteio da Operação Barkhane (2014 -2022), provocou cicatrizes nas relações entre os países que ainda são difíceis de superar.
Recentemente, Macron disse que não acredita que a França deva pedir perdão à Argélia, apesar dos pedidos para que Paris se retratasse pelos massacres que marcaram a primeira metade do século XX. O mesmo chefe de Estado também recusa associar a palavra fracasso à Operação Barkhane.
Em entrevista para o podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, as jornalistas Melina Saad e Thaiana de Oliveira conversaram com Helena Wakim, doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP), e Guilherme Ziebell, professor de relações internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
É essa combinação de fatores que caracteriza a presença francesa na África nos últimos dois séculos.
A questão Argélia
A invasão da Argélia começou em 1830, dando início a um processo de desapropriação de terras dos nativos. Até 1962, quando o então presidente francês, Charles de Gaulle, aceitou a independência argelina após sete anos de guerra civil, morreram 400 mil argelinos e 30 mil soldados franceses.
Os horrores da ocupação francesa são documentados e conhecidos. Muitos de seus responsáveis, entretanto, permanecem no anonimato nos documentos classificados do governo francês.
Para Helena Wakim, a posição francesa sobre a colonização argelina envolve questões de “um passado muito recente”. Segundo ela, um pedido de desculpas, em primeiro lugar, seria o reconhecimento de uma culpa que o Exército da França, sobretudo soldados e oficiais que estiveram presentes na Argélia durante a colonização, não está disposto a assumir.
Esse ferimento que nunca cicatrizou, seja nas relações entre os países, ou dentro de cada uma dessas sociedades, na avaliação da professora da USP, é o que o impede o presidente francês de pedir desculpas pela colonização.
“Isso significa mexer em traumas e responsabilização que são temas muito dolorosos, pois, na França, existem pessoas que participaram dessa história, como soldados e combatentes, que poderiam ser responsabilizados pelos seus atos em um eventual pedido de desculpas”, comentou.
‘Abertura dos arquivos do colonialismo’
Para ela, não se trata exatamente de pedir desculpas, porque seria “absolutamente ineficiente“, mas de trabalhar em um “processo de reconciliação para enfrentar os traumas do colonialismo francês”. Isso quer dizer, sobretudo, “a abertura dos arquivos do colonialismo e a necessidade de trazer essas questões para o debate público“.
Ela defende que a França deve apresentar à sua população “a outra parte do que foi a história da colonização francesa”, mesmo que isso mude “a narrativa de Paris sobre o período, que trata a questão como parte de um processo civilizatório“.
“Quando se faz esse tipo de narrativa ultrapassada, ela não assinala a quantidade de violência dos processos coloniais, sobretudo a opressão sobre o povo argelino, cuja grande maioria teve direitos básicos negados”, afirmou.
Apesar da negação em pedir desculpas, o líder francês espera que seu homólogo argelino, Abdelmajid Tebboune, visite a França em 2023 para continuar “um trabalho de amizade sem precedentes” no campo da memória e da reconciliação.
Esse processo começou após sua própria visita à Argélia em agosto do ano passado, onde ele pediu desculpas por declarações de outubro de 2021, nas quais ele criticou o sistema político argelino e questionou a existência de uma nação argelina antes da colonização francesa.
‘Nunca houve combate ao terrorismo’
Os problemas herdados do passado colonialista francês na Argélia, entretanto, não são os únicos que preocupam o governo de Macron quando o assunto é África. O presidente ainda busca uma solução para a “desastrosa”, como classificou o analista Guilherme Ziebell, “participação da França no combate ao terrorismo” no continete.
Em outubro de 2022, pouco menos de três meses após a retirada dos soldados franceses do Mali, o presidente da França comunicou o fim da Operação Barkhane defendendo os oito anos de combates.
Sob essa égide, as tropas da França operaram na região desde 2014 lutando contra grupos islâmicos em Burkina Faso, Mali, Mauritânia e Chade, países que foram colônias francesas. As missões na região tiveram a participação de 14 países europeus, com o objetivo de combater o terrorismo na região do Sahel, na África Ocidental.
Ataque em um casamento
Para Guilherme Ziebell, “a operação foi um desastre”, apesar de a França ter deslocado mais de cinco mil soldados nesses países”. Ele cita que, como consequência dos conflitos, “milhares foram mortos, além de dois milhões de deslocados, fugindo das zonas de batalha e da destruição causada nas cidades“.
“As tropas francesas não conseguiram eliminar os grupos terroristas, que se mostraram mais fortes, controlando mais territórios e escalando a violência contra civis”, disse ele.
Apontando os “inúmeros erros” que marcaram a operação Barkhane, ele lembrou que, em 2021, “foi feito um ataque que atingiu um casamento no Mali. Esse tipo de erro foi bastente frequente, tornando ela [a operação] cada vez mais impopular”.
“Por conta desses elementos, ela me parece um grande fracasso”, afirmou.
O verdadeiro objetivo francês
Em fevereiro de 2022, a França, o Canadá e seus aliados na Força-Tarefa Takuba, um braço da Operação Barkhane no Mali, anunciaram a retirada de suas tropas do país africano, após nove anos de ocupação.O governo do Mali, desde então, denuncia as consequências da ocupação francesa.
Em reiteradas ocasiões, autoridades do país acusaram o Exército francês de espionagem, violação do espaço aéreo e financiamento de terroristas.
“Os militares da França dividiram deliberadamente o Mali e realizaram espionagem durante sua luta contra militantes islamistas”, declarou, em fevereiro de 2022, Choguel Maiga, primeiro-ministro interino do país africano.
Segundo ele, a chegada das tropas francesas em 2013 não só dividiu o país como permitiu que jihadistas ligados à Al-Qaeda (organização terrorista proibida na Rússia e em vários outros países) se reagrupassem e continuassem realizando ataques.
Para Guilherme Ziebell, “os reais objetivos dessas operações na região” são a França “garantir sua influencia” sobre territórios “ricos em recursos naturais”. Para ele, desse ponto de vista, as operações tiveram “um sucesso parcial”, porque apesar de o encerramento mostrar um revés duro, muitas empresas se estabeleceram na região”.
Ainda assim, o analista enfatiza que são graves as acusações que o Mali faz contra o governo francês, principalmente as que dizem respeito à “coloboração com os insurgentes, que fazem operações de inteligencia que estão além das capacidades desse grupos”.
“O Mali entende que a França ajudava esses grupos para justificar a ocupação francesa na região. Além disso, é estranho pensar que a França, um Exército de capacidade, seja incapaz de derrotar inimigos que são muito menos capacitados”, comentou.
“A França queria usar a narrativa do terrorismo para explorar a região”, disse Ziebell.
O analista, por fim, destacou “outra questão relevante” nessas ocupações, que é o fato de a Junta Militar que controla o Mali “buscar firmar laços com outros parceiros para combater grupos terroristas, inclusive o Grupo Wagner, da Rússia, que tem apoiado o Mali nesse combate“.
Para ele, a África buscará com mais frequências essas parcerias, sobretudo com a China, Rússia e outros emergentes, que promovem “relações que são benéficas, que são horizontais, mas sem imposições”.