O crescimento da massa evangélica apresenta enormes questões à esquerda. Se por um lado o cristianismo é a marca da colonização e da exploração, por outro, a maioria dos evangélicos são trabalhadores não-brancos, o que levanta um ponto muito importante sobre o significado da fé cristã na disputa política e a necessidade de uma inversão de perspectivas estratégicas.
Há pelo menos três décadas que a esquerda institucional se debate em torno da questão evangélica no país. O protestantismo cresceu muito no Brasil, sobretudo durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Em 2012, o então ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, reforçou, durante o Fórum Social Mundial a necessidade de disputar politicamente a comunidade evangélica para que os méritos das conquistas sociais não caíssem convenientemente sob a teologia da prosperidade:
Nós sabemos, quem conhece a periferia desse país, que é um público hegemonizado por setores conservadores. Lembro aqui, sem nenhum preconceito, o papel e a hegemonia das igrejas evangélicas, das seitas pentecostais, que são grande presença para esse público que está emergindo.
Uma pesquisa do Datafolha realizada no início de 2020, apontou que temos no Brasil aproximadamente 50% de pessoas católicas, 31% de evangélicas, 10% de sem religião, 3% de espíritas, 2% praticantes de religiões afro-brasileiras, 2% outros, 1% de ateus e 0,3% são judeus. A Frente Parlamentar Evangélica cresceu, em 2019, para 195 deputados federais e oito senadores, o que mostra que a representação da comunidade evangélica na Câmara excede a média de sua incidência na população brasileira. A pesquisa apontou também que entre os evangélicos brasileiros são 43% de pardos, 30% de brancos, 16% de pretos, 3% de amarelos, 2% de indígenas e 5% são de outras etnias, ou seja, a maioria dos fiéis de todas as denominações protestantes são não-brancos.
Cruzando essas informações com dados socioeconômicos, observamos um entrelaçamento de indicadores raciais, sociais e religiosos: quanto mais pobres, “menos brancos”, “menos escolarizados”, mais suscetíveis ao resgate religioso. Entretanto, a primeira condição para abordar a questão da religião como força política com o mínimo de inteligência, é não começar pelo ódio.
Cristianismo e humanidade
A antropologia nos ensina, nas palavras de Lévi-Strauss em Raça e história (1952), que os limites da humanidade cessam nas fronteiras da tribo, onde podemos inferir neste corolário absolutamente indispensável aos direitos humanos, em que humanidade é o direito ao modo de ser específico de um grupo. Esse direito exclusivo não se estende a outros grupos além de suas fronteiras, é preciso criar seus próprios limites a fim de assegurar os mesmos direitos para si. Por outro lado, raramente esses limites foram absorvidos quando tiveram de ir além de suas próprias fronteiras, nunca o fizeram senão para ocultar a própria humanidade da qual derivam. O desenvolvimento ocidental lançou o anátema sobre a diversidade cultural, em primeiro lugar porque a crença de sua superioridade moral não pode ser disfarçada em sua voragem energética, o que tem levado a guerras infinitas, apesar de seu dispositivo “humanitário”, e em segundo lugar, porque os espíritos dos mortos não descansam.
Encarando “limites” como ontogênese política da espécie humana (ou seja, a relação entre sociedades), temos uma definição de etnocentrismo fundada na percepção de “nós contra eles” enquanto processo de diferenciação ativa: a disjunção social dá origem a um movimento que irrompe dentro ou fora da comunidade estabelecendo as relações que regrarão comensalidade e hostilidade. Mas há culturas que experimentam, contrariamente, “eles contra nós”, enquanto perspectiva fundante de suas relações culturais, uma postura de autodefesa que podemos chamar de diferenciação passiva.
É interessante notar que a palavra “China” em mandarim, Zhongguo, significa “país do meio” – esta etimologia parece conduzir suas relações internacionais de forma relativamente comensal ao longo dos milênios. Não deixa de ser curioso que o filósofo pré-socrático Heráclito tenha fundado a noção de guerra épica como princípio, no Ocidente, e, Sun Tzu, a noção de guerra psicológica como diplomacia, no Oriente.
O antropólogo anarquista Pierre Clastres descobriu, entre os povos da América do Sul, que a guerra previne a formação do Estado ou, conforme escreve em Arqueologia da violência (1977): com efeito, a política dos selvagens é exatamente opor-se o tempo todo ao aparecimento de um órgão separado do poder, impedir o encontro de antemão fatal entre instituição de chefia e exercício de poder. Como o movimento etnocêntrico nasce em oposição ao outro grupo social, toda a comunicação entre mundos nasce de um esforço político, seja resultado da guerra ou autodefesa.
O pastor e escritor Jean de Léry descreve o comércio entre dois mundos além de suas fronteiras em seu livro Viagem à terra do Brasil (1578):
Os nossos tupinambás muito se admiram dos franceses e outros estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar o seu arabutan. Uma vez um velho perguntou-me: Porque vindes vós outros buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra? Respondi que não a queimávamos, mas dela extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com seus cordões de algodão e suas plumas. Retrucou o velho imediatamente: e por ventura precisais de muito? — Sim, respondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo pau-brasil com que muitos navios voltam carregados. — Ah! retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas, mas esse homem tão rico de que me falas não morre? — Sim, disse eu, morre como os outros. Mas os selvagens são grandes discursadores, por isso perguntou-me de novo: e quando morrem, pra quem fica o que deixam? — Para seus filhos se os têm, respondi; na falta destes para os irmãos ou parentes mais próximos. – Agora vejo que vós maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pai, mãe e filhos que amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte, a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados.
As “fronteiras” conferem à política sua plausibilidade. O direito à humanidade além de suas fronteiras, inventado pela civilização ocidental a partir do cristianismo, determinou as fronteiras do mundo fora do mundo.
É justamente esse fora do mundo, com base nos direitos humanos e nos valores do evangelho, que nos interessa. A pergunta é: como esse desinteresse dos cristãos pelo “mundo” pode gerar um mundo onde as diferenças devem morrer em nome daquilo que não pertence ao mundo? Em suma, como foi possível estabelecer os limites da humanidade, para fazer política além das fronteiras de qualquer mundo? Frederico Lourenço propõe uma tradução dos quatro evangelhos é reveladora, onde o “filho do homem”, ou “filho de deus”, se torna o “filho da humanidade”. Sendo, Jesus Cristo, o filho da humanidade abstrata, sua mensagem é ilimitada, porque é impossível que alguém seja filho da humanidade sem perder sua própria humanidade.
Dessa forma, as políticas de Cristo, os limites de sua humanidade, não são deste mundo. Não ser deste mundo significa que não possuem fronteiras de identificação. O cristianismo se torna a base mental da máquina colonial justamente por operar na ideologia da conversão ao outro mundo, o ponto de não retorno de integração à humanidade (abstrata) que vai ser identificada com o mundo europeu. Os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari apontam, no livro Mil Platôs (1980), que o absoluto da religião é essencialmente horizonte que engloba, e, se ele mesmo aparece num lugar, é para fixar ao global o centro sólido e estável.
Teologia da prosperidade e confissão positiva
Adoutrina cristã nos ensina que devemos separar as coisas do reino de Deus das coisas do mundo. Essa separação deu origem a uma longa divergência exegética culminando na Reforma Protestante de 1517. A ascese monástica católica e a renúncia ao mundo, foram substituídas pelo cumprimento das tarefas do século, a ascese intramundana. O mundo torna-se o lugar de gratificar o trabalho, a profissão, a vocação, como disse Marx Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo (1905):
O calvinismo é, precisamente, a primeira ética cristã que deu ao trabalho um caráter religioso. Anteriormente, o trabalho fazia parte das atividades pertencentes à vida material; ele se impunha porque, de uma forma ou outra, não se podia dispensá-lo; mas, como atividade temporal, nenhuma relação tinha com a salvação eterna ou com a vida espiritual. Para o calvinismo, ao contrário, o trabalho, considerado uma vocação, torna-se atividade religiosa. Importa trabalhar, custe o que custar, haja ou não necessidade de prover seu sustento, porque trabalhar é uma ordem de Deus.
O missionário protestante canadense Robert McAlister chegou ao Brasil em 1959. Em 1961, fundou, no Rio de Janeiro, a Igreja Pentecostal Cruzada Nova Vida, que mais tarde se tornaria a Igreja Nova Vida. Em 1964, ergueu o primeiro templo, e, em 1965, tornou-se um dos primeiros televangelistas do Brasil. Foi inspirado em McAlister que em 1975, o pastor Edir Macedo iniciou a terceira onda pentecostal no Brasil, com a fundação da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). A IURD, assim como outras denominações neopentecostais, pregam a teologia da prosperidade. A teologia da prosperidade baseia sua doutrina na confissão positiva ou wishful thinking do apóstolo Lucas: a tua fé te salvou; vai-te em permanente paz (Lucas 8:48) – a invocação de passagens bíblicas é usada para sustentar o poder da confissão, diretamente associado ao êxito na vida prática.
A elaboração da nova carta constitucional no Congresso Nacional em 1988 contou com a participação de 33 deputados evangélicos, incluindo 18 de denominações pentecostais e o primeiro congressista neopentecostal, ligado à IURD. Entre as iniciativas da bancada estava o pedido de que um exemplar da Bíblia fosse deixado na mesa da Constituinte para uso dos congressistas. Atendido o pedido, a presença do livro sagrado seria mencionada em diversos discursos ao longo da Constituinte e posteriormente usada sustentar apoios de toda espécie de matérias e discursos ligados à dinâmica da sociedade brasileira.
Por que disputar a palavra?
Ao desprezar os limites da humanidade, a fé cristã ultrapassou as fronteiras da tribo. A partir desse momento, todo assassinato vai estar justificado, como aponta Albert Camus em O homem revoltado (1951): se o nosso tempo admite tranquilamente que o assassinato tenha suas justificações, é devido a essa indiferença pela vida que é a marca do niilismo. Mas, se Deus está mais vivo do que nunca, aplicando leis, julgando réus, encarcerando os pobres, e, paradoxalmente, o evangelho inaugura o fim do mundo, é preciso voltar à ele para restituir os direitos de humanidade para a humanidade não europeia. Fazer política de esquerda não é apenas mediar a correlação de forças culturais em jogo, é invocar, fora das fronteiras que definem essas forças, uma espécie de messianismo.
A disputa da palavra cristã vai muito além de mostrar que as palavras de Jesus podem favorecer abordagens menos conservadoras, afinal, ela busca resolver o problema central do colonialismo europeu: a desumanização do humano não europeu. Só é possível denunciar o abismo cultural promovido pelo cristianismo extraindo das escrituras sagradas uma alternativa à profanação da humanidade perpetrada pela “religião de Estado”.
Amar teu próximo como a ti mesmo, é a sublimação do respeito hebreu aos estrangeiros que dizia como o natural, entre vós será o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-ei como a vós mesmos, pois estrangeiros fostes na terra do Egito. Eu sou o Senhor, vosso Deus. Não bastava amá-los, era preciso tornar-se um deles e vice-versa, era preciso que houvesse a fusão entre dois mundos, romper os limites e borrar as fronteiras, uma reciprocidade baseada na lei do amor. Amor que lança povos europeus ao desconhecido 1500 anos depois de Cristo, com a crença de que só eles podem libertar o humano do “fetichismo religioso”, é o mesmo que deve ser usado para combater falsos profetas, re-encantar e reumanizar o mundo.