Quando comecei a estudar filosofia, minha primeira pesquisa se concentrou na ideia de reconhecimento do filósofo alemão contemporâneo Axel Honneth (foto de capa). A teoria de Honneth fazia-me entender as demandas do ser humano para além daquelas ligadas ao direito. Tendo o direito sido minha primeira formação havia plantado a ideia de que tudo poderia ser resolvido por este viés. A filosofia em geral, e particularmente a de Honneth abria-me os olhos para outras exigências dos indivíduos. A luta por reconhecimento doravante parecia-me mais plausível para explicar as relações intersubjetivas do que a luta por direitos. Não que devêssemos abondar para sempre o direito. Mas, entendia que era preciso ir além.
Por Evânia Reich, para Desacato.info.
Diante de um mundo debruçado em suas várias lutas, luta de religiões, de culturas minoritárias, luta de gênero, as quais reivindicam uma igualdade de consideração, de respeito e de direitos não somente no âmbito jurídico, mas também no âmbito social, político e cultural, algo para além do direito está sendo exigido.
Embora uma justa repartição de bens materiais permaneça ainda na pauta das reinvindicações, assiste-se hoje incontestavelmente o borbulhar de novas reivindicações que estão para além da indispensável redistribuição de riquezas, saúde e educação. Paralela ou mesmo prioritária a tais reivindicações de cunho material, a demanda por respeito, por dignidade e estima tanto cultural quanto religiosa surge com uma força ativa nestas duas últimas décadas. Nas palavras da filósofa americana Nancy Fraser, as lutas políticas propriamente modernas, que durante dois séculos tinham sido lutas por redistribuição, se tornaram prioritariamente lutas por reconhecimento.
O filósofo Axel Honneth, na sua obra Luta por reconhecimento, publicada em 1992, quis demonstrar que a formação da identidade de cada indivíduo necessita das relações de reconhecimento que são essencialmente de natureza intersubjetiva. Isto é, a realização de si mesmo como pessoa autônoma e individualizada depende da presença de um reconhecimento entre os indivíduos que se dá em três níveis diferentes de relações: no amor, no direito e na solidariedade. Unicamente a partir do momento em que as pessoas são amadas, possuem direitos, e são detentoras de atitudes práticas singulares contribuindo à reprodução de uma vida comum, é que elas podem então se autocompreender como indivíduos plenamente realizados. Estas três dimensões de reconhecimento possibilitam três atitudes positivas aos indivíduos: a autoconfiança, o autorrespeito e a auto-estima.
Já faz um tempo abandonei a leitura da teoria do reconhecimento de Honneth. Em tempos sombrios venho pensando se Honneth não estava errado. Aliás é preciso que Honneth o esteja. Se a autorrealização do indivíduo somente ocorre no percurso destas três esferas do reconhecimento; amor, direito e solidariedade então corremos um grande risco de estarmos vivendo em uma sociedade sem nenhum reconhecimento recíproco, e por consequência nos tornando seres não realizados.
Em um país como o Brasil já a primeira fase do reconhecimento é frequentemente frustrada através do abandono de milhares de crianças nas ruas e ou em abrigos, ou as vezes permanecendo em casa, mas sendo ou submetidas aos maus-tratos ou jogadas precocemente ao mundo do trabalho. Segundo um relatório da ONU, no mundo existem cerca de 150 milhões de crianças em situação de rua. No Brasil, 32,7 milhões de crianças e jovens até 17 anos vivem em condições de extrema precariedade. Cerca de 18 milhões de crianças vivem em casas cuja a renda familiar não chega à 300 reais para toda a família. Enquanto isso, 6,2% das crianças brasileiras exercem algum tipo de trabalho remunerado obrigando-os, na maioria das vezes, substituir os bancos escolares pelas ruas em busca de um trocado para aumentar a renda familiar.
Portanto, o Brasil é o exemplo escancarado de que a primeira fase do reconhecimento é aniquilada já nos primeiros anos de vida do indivíduo. Para além do aniquilamento desta primeira fase, a negação das duas outras, direito e solidariedade também podem ser presenciadas no exemplo do abandona das crianças, ou na pobreza das famílias brasileiras. Claramente o direito à uma renda digna para a manutenção de si e de sua família está sendo negado pelo Estado brasileiro. Quando o índice de desemprego atinge mais de 13% da população, e os direitos trabalhistas são reduzidos todos os dias jogando milhares de brasileiros no mundo do precariado, sem dúvida o reconhecimento ao direito mais elementar, de sobrevivência digna está sendo aniquilado.
E onde fica a solidariedade? Somos um país solidário com nossos concidadãos? Estamos sensibilizados com a população pobre de nosso imenso país? Chocamo-nos com a angústia dos desempregados e da população de rua que cresce aceleradamente nas grandes e médias cidades do Brasil? Vamos às ruas em defesa dos moradores dos morros que são ameaçados de morte, cotidianamente, por um Estado opressor que lhes deve proteção? Ou no lugar de nos indignar com toda essa situação da população vulnerável preferimos apostar em políticas neoliberais, onde somente os melhores e mais afortunados viverão tranquilamente em suas bolhas?
De forma geral, e particularmente no Brasil, acostumamo-nos a pensar a situação de privação dos bens materiais, de pobreza como uma situação que diz respeito à relação dos homens com a “natureza”, e não à relação dos homens entre si. Pensamos que ser pobre está relacionado à incapacidade do indivíduo de ir em busca do seu próprio sustento. Quantas vezes no Brasil a frase, “não dê o peixe, mas ensina-lhes a pescar”, foi repetida? Virou até lema de campanha política. Lema que foi igualmente a base contra os programas de políticas públicas, como o bolsa família, as cotas nas universidades, minha casa vida, e tantos outros. Portanto, torna-se difícil de imaginar o povo brasileiro solidário com o outro da sua relação intersubjetiva de reconhecimento.
Pelo menos ainda posso pensar que Honneth deve estar certo em situar os conflitos sociais a partir da violação das expectativas de reconhecimento arraigadas em uma destas três dimensões. Não ser reconhecido pode levar os indivíduos a lutarem pela busca pelo reconhecimento. São essas experiências de desrespeito, na forma de maus-tratos e violação na negação do amor, a privação de direito e exclusão na esfera do direito e a degradação e ofensa no âmbito da sociedade, que constituem o arcabouço de injustiças que, em muitos casos, se tornam motivos de luta na conquista de relações de reconhecimento cada vez mais plenas e efetivas.
De fato, não está fácil para milhares de brasileiros iniciar essa luta. O que se tem presenciado é que para muitos a luta pela sobrevivência passa antes do que qualquer luta por reconhecimento. E neste sentido estamos caindo naquela primeira luta que a filósofa americana Nancy Fraser (foto interior) fez menção: a luta por redistribuição de riquezas. Uma parcela da população luta todos os dias para ter o que comer, ainda luta por uma ínfima parcela do enorme bolo que é mal repartido na sociedade. Reconhecimento, portanto, é algo quase metafísico para essa parte da população.
Se levarmos em consideração mais um conceito do meu filósofo, vivemos em uma sociedade patológica. Doente, se assim quisermos. Honneth fala em patologia social. Segundo ele, os critérios a partir dos quais é possível falar de patologias sociais fazem alusão aos modos de constituição possíveis de relações de vida em sociedade que podem ser consideradas intactas ou não distorcidas, na medida em que elas garantem a todos os membros da sociedade a oportunidade de uma autorrealização bem-sucedida.
As relações sociais ocorreriam de forma não patológicas se os indivíduos fossem vistos como pessoas detentoras de direitos, capazes de formar um juízo autônomo e de partilharem com os outros membros de sua coletividade as suas propriedades individuais e serem valorizados por elas. Este processo de formação dos indivíduos até o seu mais completo nível de relação, isto é, com o outro ser social, ocorre naqueles três diferentes momentos das relações de reconhecimento: o amor, o direito e a solidariedade.
Para Honneth as sociedades pós-modernas necessitam de um modelo de solidariedade social que seja capaz de ligar seus membros entre si em uma rede de reconhecimento recíproco. Esta rede deve ser forte o suficiente para ser capaz de sustentar as tensões e desafios que os indivíduos sociais sofrem em suas relações mútuas. E essas redes de solidariedade não podem advir apenas daquelas primeiras fontes de relações familiares e de amizades, assim como não podem permanecer dependentes unicamente do direito. O que significa dizer que nas sociedades modernas a solidariedade tem que ocorrer em relações intersubjetivas que estão para além do escopo da família, dos amigos, mas igualmente daquela rede de relações cujo parâmetro de reconhecimento estava centrado apenas nas características e virtudes do grupo do qual o indivíduo pertencia.
A grande questão é a de saber se realmente conseguiremos essa solidariedade genuína do qual fala o filósofo. Diante de uma sociedade em que cada vez mais nos é plantada a ideia de que devemos lutar por nossos próprios interesses e para a realização de nossos fins como se estivéssemos sozinhos nesse barco, a solidariedade me parece uma exigência moral difícil a ser cumprida. O cuidado com o bem-estar do outro está cada vez mais centrado no outro que está bem perto de mim, que compartilha dos mesmos interesses, das mesmas opiniões e na maioria das vezes possui o mesmo nível social. A pena que sentimos pelas vítimas de sofrimento social, por si só não leva à ação, até que também nos sintamos indignados em direção àqueles que são a causa deste sofrimento. É preciso saber em que instância os indivíduos irão conseguir se relacionar solidariamente, de tal forma que esta solidariedade não permanece somente entre aqueles que estão muito próximos ou apenas como um ato de caridade.
Fotos tomada de: pt.wikipedia.org e Escola Superior Dom Helder Câmara
Evânia E. Reich é doutora em Filosofia pela UFSC – Pesquisa do pós-doutorado em Filosofia Política pela UFSC.
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