Por Floriano Martins de Sá Neto.
A partir da Constituição Cidadã a previdência social passou a compor, juntamente com a saúde e a assistência social, uma grandiosa rede de proteção denominada Seguridade Social. Ficou a cargo do Poder Público, nos termos da lei, organizá-la, com base nos seguintes objetivos, constitucionalmente previstos: universalidade da cobertura e do atendimento; uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; irredutibilidade do valor dos benefícios; equidade na forma de participação no custeio; diversidade da base de financiamento; e caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.
Mas desde a vigência da Emenda Constitucional nº 20, de 1998, permanece sem efetividade a previsão de que a gestão da Seguridade Social pudesse se dar mediante colegiado quadripartite. E o que é pior, se aprovada a PEC 287/16 estaremos prestes a ver “aterrada” toda a legislação, seguindo o mesmo rumo da CLT diante da recém sancionada Lei da Terceirização – que priorizou a negociação ao invés da proteção legislativa do trabalho; que deu flexibilização total ao mercado de trabalho quebrando a relação entre empregado e empregador, descaracterizando a representação sindical. Tempos difíceis para o trabalhador!
Na ausência dessa instância de controle social, tem se avolumado problemas que afetam a gestão e a saúde financeira da Seguridade, e da previdência em especial, como o “desvio” de recursos de suas fontes de custeio, definidas no art. 195 da Constituição.
Esses desvios, bem como outras mazelas que desequilibram o orçamento da Seguridade, raramente são mencionados pelo poder midiático ou pelo governo. O que se lê e se ouve, até como mensagem presidencial, são as aludidas necessidades de reforma a estancar um rombo insustentável com o propósito de garantir o pagamento de aposentadorias futuras para o trabalhador.
Aparece como irrefutável a urgência de um socorro sob a forma de um ajuste fiscal, de uma política de austeridade capaz de propiciar de forma rápida a retomada do crescimento da economia. O governo e sua equivocada mania de atacar o lado das despesas diante da ineficiência em resolver os problemas pelo lado das receitas, adotando políticas macroeconômicas realmente eficazes. Diante de quadros recessivos é sempre mais inteligente a adoção de políticas anticiclicas do que corte de gastos. Em outras palavras, crescer, gerar emprego, expandir o crédito, o investimento e a produção, desvalorizar o câmbio, costumam ter respostas mais sólidas do que, por exemplo, liberar dinheiro do FGTS sob o pretexto de alavancar a economia.
A história da Previdência Social demonstra e comprova que todas as vezes que os governos precisaram amenizar as crises ou fazer caixa para alimentar o superávit primário, recorreram aos recursos do sistema. O quadro atual pouco difere dos anteriores.
Um exemplo típico e recorrente, que pela sua existência desmistifica o denominado déficit da previdência, é a Desvinculação de Recursos da União (DRU). A DRU é um mecanismo que permite ao governo federal utilizar, da maneira que lhe for conveniente, 30% dos recursos federais, dos quais 90% representam contribuições sociais. Por conta da grandeza desses recursos vem sendo fácil garantir a sua prorrogação.
Para se ter uma ideia da dimensão dessa desvinculação, nos últimos 10 anos foram quase R$ 500 bilhões[1]. Se corrigido, os números alcançam a expressiva soma de R$ 650 bilhões. Um volume de recursos significativo e que contesta a existência de um sistema deficitário, afinal, não se pode retirar recursos de um “caixa vazio”.
A verdade é que não fosse a DRU o governo não conseguiria alcançar os elevados superávits primários dos últimos anos[2]. E por esse motivo muitos são favoráveis à continuidade do mecanismo como alternativa a uma “ampla reforma nas finanças públicas brasileiras”.
Outro recurso que deveria pertencer exclusivamente a Seguridade Social, mas que foi utilizado com o propósito de reduzir os custos de produção no Brasil, em especial o custo da indústria, que há anos enfrenta dificuldades competitivas; e gerar empregos, foi a desoneração da folha de pagamentos. O fato é que com essa política nem alavancou a indústria, tampouco gerou emprego. O que se viu foi um impacto negativo no caixa previdenciário: R$ 25,2 bilhões em 2015; R$ 15,2 bilhões em 2016 e, em 2017, a estimativa é de R$ 17 bilhões, de acordo com o Relatório Resumido de Execução Orçamentária da Secretaria do Tesouro Nacional de outubro de 2016. O próprio governo reconheceu esse erro ao editar a Medida Provisória 774, que acaba com a desoneração da folha de pagamento para a maioria dos setores hoje beneficiados. Essas empresas voltarão a contribuir pela folha de pagamento, com alíquota de 20%, a partir de 1º de julho de 2017.
Mesmo com todas essas “subtrações” financeiras da Seguridade ainda há sobra de caixa, mas que provavelmente não se sustentará em decorrência do alto índice de desemprego e do baixo crescimento da economia. Se o governo, para assegurar seus propósitos de política econômica, concede benefícios fiscais e isenções que afetam esse caixa, deveria ressarci-lo, evitando quaisquer desvios indiretos de recursos.
Ainda sobre o financiamento da Seguridade perdura o grave problema do estoque da dívida ativa previdenciária que atingiu o montante de R$ 432,9 bilhões em janeiro de 2017 e continua crescendo a um ritmo de aproximadamente 15% ao ano[3]. Apenas os 100 maiores devedores possuem débitos que ultrapassam, conjuntamente, R$ 50 bilhões. Quando se leva em conta os 100 maiores devedores com débitos exigíveis, assim entendidos os que não estão parcelados, garantidos ou suspensos por decisão judicial, esse valor cai para R$ 33 bilhões. Cabe a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN uma ação mais incisiva para assegurar que esses recursos ingressem aos cofres públicos, recursos da Seguridade Social.
Sobre esse ponto também é importante dizer que desde a sua criação, em 2006, a Secretaria da Receita Federal do Brasil, que absorveu as funções antes a cargo do INSS, vem relegando a segundo plano a fiscalização de contribuições sociais e previdenciárias, em particular, destinando a essa finalidade, atualmente, menos de um quarto do total de Auditores-Fiscais que, até 2006, atuavam nessa tarefa no âmbito da Previdência Social.
É preciso dar nova ênfase à Auditoria Fiscal na esfera das receitas da Seguridade Social, mediante um comando constitucional expresso que determine a qualificação plena e priorização dessa tarefa no âmbito da Administração Tributária.
A Previdência Social é o maior programa de redistribuição de renda de que dispõe o governo para a realização da justiça social e para garantir a paz social no seio familiar. Entretanto, as renúncias fiscais que recaem sob as fontes exclusivas de financiamento da Seguridade, bem como a baixa celeridade na recuperação de créditos previdenciários, vêm tendo o poder de aniquilar parte dos efeitos sociais dessa rede de proteção. Por isso se faz urgente acabar com essas “políticas”, possibilitando, na prática, um retorno de recursos mais que suficiente para cobrir o financiamento do ameaçado superávit da Seguridade. Isso sim são medidas úteis para o sistema, diferente de reformas excludentes!
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[1] Cofins, CSLL, PIS/Pasep e a ex-CPMF. Dados dos Relatórios de Arrecadação da RFB.
[2] Com a criação da DRU, a partir de 2000, em média, cerca de 60% do superávit foi em decorrência dessas desvinculações.
[3] Segundo dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). Disponível em: http://www.pgfn.fazenda.gov.br/noticias_carrossel/pgfn-recupera-mais-de-r-22-bilhoes-em-creditos-previdenciarios
Floriano Martins de Sá Neto – Auditor Fiscal da RFB e Vice-Presidente de Política de Classe da ANFIP.
Fonte: Jota.