Texto: Míriam Santini de Abreu, de Florianópolis
Fotos: Movimento Ponta do Coral 100% Pública e Jerônimo Rubim
Uma ponta de terra na avenida mais badalada de Florianópolis simboliza a disputa por uma cidade voltada ao lucro ou à população. O lugar mencionado é a Ponta do Coral, promontório vizinho da Casa do Governador, na Avenida Beira-Mar Norte, que aparece nos cinco primeiros lugares do ranking do metro quadrado mais caro da capital catarinense. Cenário em disputa: área de lazer em uma cidade carente delas ou endereço de hotel com 18 andares e 210 apartamentos.
A luta para que a área seja parque público vem dos anos 1980, mas em 2015 ganhou contornos dramáticos. Em fevereiro a prefeitura de Florianópolis autorizou a construção do hotel, que também já recebeu licença ambiental prévia (LAP) da Fundação Estadual do Meio Ambiente (Fatma). As licenças cheiram a ilegalidade.
Acontece que, em janeiro de 2014, a Câmara de Vereadores aprovou o novo Plano Diretor da capital. Essa lei permitiu que, na Ponta do Coral, delimitada como Área Turística de Lazer (ATL), o empreendimento tenha até seis pavimentos. A proposta para transformação em Área Verde de Lazer (AVL) foi derrotada pela maioria dos vereadores. Mas não se passaram nem dois meses depois da aprovação do Plano Diretor e o prefeito Cesar Souza Júnior (PSD) assinou dois decretos que abriram brecha para permitir o hotel com 18 andares, atropelando assim o Plano Diretor, a lei maior de ordenamento da expansão urbana do município.
A Hantei queria mais. O projeto original previa 22 andares e um aterro de 34 mil metros quadrados. A empresa, em sua página na internet, usava adjetivos como “uma das cidades mais dinâmicas do mundo”, cidade “do novo século”, “capital mais saudável do país”, “reserva da biosfera urbana modelo”. Mas quem mora nas áreas de risco dos morros de Florianópolis, e treme de pavor a cada tempestade que varre a Ilha, não vai citar esses adjetivos. Para os moradores dos 65 assentamentos ou comunidades de baixa renda do município, com precárias condições de água, luz, educação, saúde e transporte, esses conceitos de “marketing” são vazios.
Turismo de luxo
No Seminário Interuniversitário intitulado “Hotel na Ponta do Coral: Quem ganha? Quem perde?”, realizado no dia 20 de março, Paulo Capela, professor do Centro de Desportos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), alertou que o projeto no qual o empreendimento está embutido quer transformar Florianópolis em “cidade mundial”. Uma das premissas é o estímulo ao turismo de luxo, pelo qual o espaço reservado à classe trabalhadora é aquele onde ela tenha a menor visibilidade. “Não interessa a esse projeto, desenhado há cerca de 20 anos, que haja uma organização social que o contraponha”, disse Capela.
A luta por esse “pedacinho de terra perdido no mar”, como canta o hino de Florianópolis, ficou aguda desde a segunda metade dos anos 1980. Famílias empobrecidas se organizaram e houve muitas vitórias, com a legalização de áreas onde antes as pessoas eram vistas como “invasoras”. Mas também nessa época a capital catarinense ficou sob os holofotes por ter virado uma mercadoria apetitosa e lucrativa, a “Ilha da Magia”. Mercadoria turismo. A disputa tornou-se mais forte.
A Ponta do Coral é hoje um dos símbolos deste embate. Há outros. Mas falamos dela porque a decisão sobre a forma de ocupação a ser feita ali sintetiza boa parte do que, no Brasil, transforma o cidadão em consumidor e faz dele alguém em busca de privilégios, e não um sujeito de direitos. Essa frase é de um grande geógrafo brasileiro, Milton Santos.
A gula pela mercadoria turismo afeta outras paragens, como em Recife, onde a poderosa construtora Queiroz Galvão, aliada a empresas, à prefeitura de Recife e ao governo de Pernambuco, planeja construir um empreendimento gigantesco batizado de NovoRecife, mas sob protestos do movimento social e ambiental. Coisa bem parecida com a Ponta do Coral, onde os empreendedores, o poder público e a mídia se unem em torno do discurso da geração de empregos, do “desenvolvimento sustentável” e da “inclusão social”.
A Hantei, por exemplo, é a patrocinadora do Jornal do Almoço, o mais badalado da RBS TV – retransmissora da Globo – que mostra com generosos minutos o suntuoso projeto da empresa a cada vez que fala dele. Santa Catarina ainda enfrenta essa catástrofe informativa: o grupo gaúcho é dono dos quatro maiores jornais diários do estado. Seus colunistas usam tevê, rádio e jornal para rugir a favor do hotel, classificado de “maravilhoso” e “moderno”. Quem é contrário ao empreendimento recebe os adjetivos de “xiita” e “ecochato” e obviamente não tem espaço nos meios de comunicação do grupo.
Exemplar precioso
A Ponta do Coral teve uma importância estratégica no passado, como ponto de visualização quando a Ilha contava com um sistema de defesa composto por várias fortificações e pontos de vigia. Com a construção do aterro para a hoje engarrafada Avenida Beira-Mar Norte, no final dos anos 1970, a ponta avançada sobre o mar ficou como um dos poucos elementos geográficos com as características físicas que o distinguiram no período colonial.
O Colegiado do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFSC deu parecer esclarecedor: “Julgamos que o fato de a Ponta do Coral apresentar-se como patrimônio coletivo está, antes de tudo, em sua excepcionalidade: dificilmente existirá na Ilha de Santa Catarina outro lugar com vocação tão extraordinária para o uso público, seja como parque urbano ou equipamentos afins. Sua inserção urbana, em área central e ricamente acessível, bem como seus atributos paisagísticos e históricos – o contato físico com o mar e visual com o entorno natural e construído, próximo e distante – fazem da Ponta do Coral um exemplar raro e precioso, configurando assim uma área de interesse público por excelência”.
Até 1930 a Ponta do Coral era ocupada por particulares. Naquele período a Standard Oil, depois a Esso, fizeram ali um depósito de combustíveis. Em 1960, a Esso vendeu a área para o Governo do Estado e, em 1979, houve a transferência para a Fucabem – que controlava os chamados “Abrigos de Menores”.
Depois de um incêndio – com fortes suspeitas de provocado – no local, em 1980, a Fucabem, através do governador do estado naquela época de ditadura miliar, Jorge Bornhausen, vendeu o terreno para a Carbonífera Metropolitana, procedimento sem licitação e que não passou pela Assembleia Legislativa. Depois a dona foi a Carbonífera União e, mais adiante, em 1991, a Nova Prospera Mineração, agora parceira da Hantei no projeto. Há informação recente, em nota publicada na revista Exame, de que o Mubadala, fundo soberano de Abu Dhabi, dos Emirados Árabes, também está no negócio. Resumindo, nos anos 80, portanto, o terreno público, por negociações suspeitas, passou a ser privado.
Essas informações estão no projeto “Breve histórico sobre a Ponta do Coral em Florianópolis – do século 18 aos dias atuais”, produzido pelo gabinete do ex-vereador petista Mauro Passos. Em 2000, o projeto dele que transformava aquela área em Área Verde de Lazer parecia estar no ponto para virar realidade. Dois anos depois, o PLC 245/2000 foi levado à primeira votação, sendo aprovado por unanimidade pelos vereadores presentes no Plenário da Câmara. Mas manobras na relatoria do projeto fizeram com que, em 2005, fossem aprovadas emendas que permitiram a possibilidade de construção de hotel.
Foi do mesmo modo – mudando a lei – que o projeto do badalado Costão Golf, no norte da Ilha, saiu do papel. É assim. A lei vale quando beneficia quem tem poder de pressão para dela tirar lucro, como ficou claro na Operação Moeda Verde, da Polícia Federal, que em 2007 desnudou a corrupção que permite a construção de empreendimentos ilegais na Capital.
Mas há resistência contra isso, graças à qual Florianópolis hoje tem espaços públicos de lazer como o Parque da Luz, na cabeceira insular da Ponte Hercílio Luz, que foi o resultado da mobilização – desde o final dos anos 80 – da associação local, do movimento ambientalista e de universitários. A população do Sul da Ilha lutou e ganhou a Lagoa do Peri e o bairro Coqueiros também conquistou o Saco da Lama.
O movimento popular agora está fazendo circular um abaixo-assinado “SOS Florianópolis – Ponta do Coral 100% Pública e sem edificações e pela criação do Parque Cultural das 3 Pontas”. São elas a Ponta do Coral, a do Goulart e a do Lessa, as três na embocadura do Manguezal do Itacorubi. O objetivo é que a Câmara de Vereadores aprove o projeto para criação do Parque, através de projeto de iniciativa popular. A imprensa, porém, quando fala do assunto, praticamente só dá destaque para a ideia faraônica da Hantei.
Cinco dimensões
O professor Flávio Villaça, que ministrou palestra na UFSC sobre o tema “Espaço Urbano e Conflitos Sociais” e tem várias publicações sobre o tema, elucida a questão. Ele diz que a terra urbana só interessa como terra-localização, como meio de acesso a toda a cidade. Portanto, a acessibilidade é o valor de uso mais importante para a terra urbana. De um de seus livros, pincei uma frase isolada que retrata a luta que envolve a Ponta do Coral: “Apenas os terrenos vagos têm seu preço continuamente atualizado; só, entretanto, quando estiverem com o uso certo no momento certo, estarão com seu valor plenamente realizado”.
Ora, um terreno que passou de mão em mão ao longo de décadas, e agora está localizado em um metro quadrado “vip” da Ilha que virou “Meca do Turismo”, está no momento certo, para seus supostos donos, para ser devorado. Nesse processo de “engorda” do terreno, a Hantei e a prefeitura o deixam largado, com mato crescendo. Isso dá aos incautos o argumento, que volta e meia aparece nos jornais, de que precisa de hotel para evitar o abandono…
Para o professor e vereador Lino Peres (PT), a luta pela Ponta do Coral 100% Pública tem cinco dimensões. Uma é a dimensão histórica de conflitos, carregada de avanços e retrocessos, em uma área que mobilizou professores e estudantes da UFSC, particularmente os da Arquitetura, no início de 1981, contra a demolição do Abrigo de Menores. O local estava em ruínas por causa do incêndio, e clamava-se pelo uso e acesso público à área.
Desde lá, lembra o professor, o lugar vem se impregnando de um longo período de lutas, que hoje culmina no Movimento Ponta do Coral 100% Pública. Há também, segundo Lino, a dimensão jurídico-fundiária, de tramitação duvidosa e irregular. A terceira é a dimensão socioambiental, que vai desde as primeiras propostas de uso cultural, nos anos 80, por acadêmicos, até o Projeto das Três Pontas e todo o simbolismo paisagístico da área, o último promontório insular.
A quarta é a dimensão acadêmica, pois muitos trabalhos de conclusão de curso, como nos de Arquitetura e Urbanismo da UFSC e UNISUL, foram inspirados na Ponta, todos dando a ela um uso público e cultural. Por fim há a dimensão legislativa: “Essa dimensão implica a transformação de Área Verde de Lazer – incluída no Plano Diretor de Florianópolis de 1976 – em Área Turística de Lazer, modificação esta manipulada na Câmara Municipal”, finaliza Lino.
Espaço para as futuras gerações
Em um dos Atos em defesa da Ponta do Coral, o arquiteto Loureci Ribeiro, envolvido nessa luta desde os anos 80, deixou claro que a situação de abandono atual da Ponta do Coral só ocorre porque o poder público assim quer. O local é deixado em espera, enquanto germina a especulação. Loureci disse que representantes das elites políticas atrasadas, empresários e políticos inescrupulosos fazem da coisa pública e dos cargos públicos instrumentos e objetos de suas rendas e de seus financiadores de campanha. “Assim a cidade deixa de ser espaço de realização plena e digna de vida para o conjunto da população e para nossas futuras gerações”, afirma o arquiteto.
Nesse sentido, é esclarecedora a avaliação do professor Luís Roberto Marques da Silveira, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFSC: “Nos anos 80, de uma tacada só, desmantelaram um espaço público e uma história”, disse ele no Seminário Interuniversitário sobre o projeto do hotel.
Enquanto a Hantei articula políticos, empresários e jornalistas para sua causa, o Movimento Ponta do Coral 100% Pública busca sensibilizar a população para os impactos que o hotel irá causar. A luta pela criação do Parque Cultural das 3 Pontas visa a conservação ambiental e cultural das únicas áreas naturais remanescentes da antiga formação geomorfológica da Baía Norte. A meta é garantir o uso público e adequado da região, estimulando um turismo de alta qualidade, que permita a interação entre a população e os visitantes com a natureza. “Outro objetivo do Parque é a geração de trabalho e renda para a população e economia local, nos setores da pesca artesanal [três comunidades pesqueiras cercam a área], gastronomia, artesanato, lazer, turismo ecológico, histórico e cultural”, diz a arquiteta Elisa Jorge, integrante do Movimento.
Nos últimos anos, diversos pareceres de órgãos públicos, como a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), defendem o caráter público e cultural da área. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) emitiu parecer contra o empreendimento de hotel, destacando que a Ponta do Coral fica na Zona de Amortecimento da Estação Ecológica de Carijós, bem como do Parque Municipal do Manguezal do Itacorubi.
Pandorgas livres
2015 já viu ao menos meia dúzia de Atos públicos na Ponta do Coral. Deles participam militantes envolvidos na luta desde os anos 80, ambientalistas, sindicalistas, professores e, agora, muitos jovens universitários e secundaristas. Cada vez mais pessoas atendem aos chamados nas redes sociais. No dia 8 de março, em uma celebração às mulheres, quem estava lá viu um grupos de meninos soltar pandorga perto de onde a ponta de terra encontra o mar.
A cena, para mim, ligou 1998 a 2015. Naquele ano, um garoto que se chamava Willian Barbosa de Araújo e tinha 12 anos foi eletrocutado em Canasvieiras quando soltava uma pandorga. O fato inspirou a criação de um grupo chamado Pandorgas Partidas, formado por professores e estudantes. Eles pintaram um mural no Centro de Ciências da Educação da UFSC que dizia: “Uma pipa arrebentou e caiu nas ruas da cidade. Já não se escutam as brincadeiras, o riso, o jogo das mãos que a seguravam. Quem vai resgatá-la?”.
Pois em 8 de março de 2015, um menino chamado Guilherme Gabriel Antunes da Silveira, de 12 anos, também saiu de casa, lá nos altos da rua José Boiteux, no Maciço do Morro da Cruz, a espinha montanhosa que corta a Ilha de Norte a Sul. Ele tinha um destino, a Ponta do Coral, e um objetivo: soltar pandorga.
Sem saber, Guilherme voltava a realizar o sonho daqueles meninos do Abrigo de Menores, expulsos de lá por um incêndio com indícios de criminoso. Na Ponta eles jogavam futebol e certamente soltavam pipas. Na época, antes de ser rasgado pela Beira-Mar Norte, o lugar formava uma extensão contínua entre o Maciço do Morro da Cruz, o sopé da montanha do bairro da Agronômica e o promontório da Ponta do Coral.
A avenida cortou também aquele sonho e o fio de tantas pandorgas que não mais voltaram a voar. Mas agora há esse clamor: que a Ponta do Coral volte a germinar sonhos no ar das pandorgas, nos pés de meninos jovens do futebol, nos barcos dos pescadores e visitantes na embocadura do manguezal do Itacorubi.
Guilherme, esse pequeno conhecedor da arte dos ventos, e seus amigos pintaram um outro mural, real, num espaço verde que – assim seja – pertencerá a toda a população de Florianópolis e às suas pandorgas.