Por Désceo Machado, para Desacato.info.
O Diogo Araújo, maior crítico de música de Santa Catarina, meu amigo, disse pelo canto da boca: “- Tu és um especialista em ressentimento, hein Désceo?”, recolhi o machado e, com uma lágrima se formando na pálpebra esquerda, afirmei que o Désceo é mais frustrado do que ressentido! Mas, vindo do Diogo Araújo, mais precisamente do Diogo Araújo Silva, o mané pós-tropicalista, guardei com cuidado sua observação.
Ressentir é sentir outra vez, reviver a dor sofrida, reabilitar aquele fato que nos atingiu. Organizamos esse sentimento pela linguagem, narramos o acontecido e recuperamos as emoções passadas com gestos de fala, com a carga afetiva e emocional que envolve a narração. Não é tão óbvio constatar que somente podemos estar ressentidos por algo que nós próprios sofremos, pois há muitos casos de usarmos um discurso ressentido sem termos sido a vítima, e, assim, reproduzirmos o discurso ressentido alheio. Por esse lado, a compaixão pode gerar um ressentimento, sofrer com o sofrimento alheio e em seguida ressentir. Por outro lado, podemos nos deparar reproduzindo um discurso ressentido enlatado!
Nada de novo que a grande imprensa prepare e ofereça para o grande público ressentimentos coletivos, narrativas já prontas para o público usar, contendo além da carga emocional a ideia de que fomos nós que sofremos. É certo que a identificação do público com o âncora/apresentador favorece essa transferência de rancores e ódios! Um Sardenberg tem grande parcela de seu poder no apelo familiar, ele se coloca no lugar de um tio, no lugar de um pai que quer cuidar da prole, e estando nesse lugar familiar é muito fácil transferir discursos ressentidos, onde compramos as dores que querem nos convencer de serem as nossas dores!
Pois se essa penetração dos discursos ressentidos da imprensa nas relações cotidianas das pessoas, se essa penetração é forte mesmo não temos como saber: a contingência da vida, do confronto de experiências, a sucessão de acontecimentos descosturados, mas cheios de sentidos, a contingência da vida tende a reorientar e corrigir o ressentimento enlatado. Assim, o peso, o ódio e a mágoa de uma frase do Sardenberg, que à primeira vista pode ser boa para incorporarmos, num segundo momento, pode revelar-se desprovida de sentido por confrontar nossas próprias experiências.
Fico pensando se hoje aqueles paneleiros pobres, que consumiram à época o ressentimento enlatado, fico pensando se hoje eles, já vivendo alguma dificuldade decorrente do achaque político, fico pensando se eles não estariam mais amadurecidos, menos ingênuos. Fico pensando no abismo com o qual essas pessoas se defrontaram: assumir o discurso ressentido “contra os corruptos que quebraram o Brasil” e, após o gozo da vingança, viver a dura realidade de perder o seu emprego, morar de favor, interromper um curso na faculdade.
Mas não há nada de surpreendente na diversidade da fauna humana. Quando o discurso ressentido contra a política se torna uma justificativa para o que os outros podem julgar como erro, é melhor que esse ressentimento continue sempre ativo e colorido. Muito ouvi com minhas próprias orelhas chorumelas de eleitores contra a política, experiências frustradas, narradas para concluir: por isso hoje vendo o meu voto, se eles ganham durante quatro anos, temos o direito de ganhar uma vez a cada quatro anos.
Quanto aos temas da frustração que não gera ressentimentos, da superação da perda, da reformulação de nossas expectativas, da responsabilização e do risco implicados em nossas escolhas, deixarei para tratar depois, pois quando uma ironia que recebemos ainda está doendo, é melhor valorizar a ferida. Certo Diogo?
Bons dias, boas tardes ou boas noites!
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Imagem: redes sociais
Désceo Machado é repórter em Floirnaópolis.