Plano de Bolsonaro era ‘matar primeiro as crianças’, diz liderança Yanomami Junior Hekurari

"A floresta ainda está de pé, mas os rios não aguentaram. O rio está contaminado, está morto", relata Junior Hekurari

Hekurari é presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami – Reprodução

Nós já sofremos demais em silêncio dentro da floresta. É importante a sociedade ouvir nossa voz.

Por José Eduardo Bernardes, Brasil de Fato.

As comunidades Yanomami que vivem em Roraima seguem sitiadas pelo garimpo, pela malária e a falta de alimentação adequada. O relato de Junior Hekurari, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena da etnia revela as graves consequências do abandono sistemático dos mais de 35 mil indígenas Yanomami que vivem na região.

E segundo Hekurari, essa crise tem “a digital, a assinatura do governo Bolsonaro”. “A gente avisou, pedimos socorro e o governo Bolsonaro simplesmente virou as costas e tampou os ouvidos. Ele via a situação, os nossos problemas, mas infelizmente tampou os olhos. Várias equipes dele, do Ministério da Saúde, equipes do governo federal vieram aqui no Surucucu para ver a realidade”, comenta o indígena.

Hekurari é o convidado desta semana no BDF Entrevista e conversou com o jornal na última quinta-feira (2). Na entrevista, o presidente do Conselho Distrital de Saúde explica que o número de mortos pela desnutrição aguda e pelos casos de malária pode ser ainda maior do que os registrados nos últimos dias.

Segundo o jornal Sumaúma, 570 crianças Yanomami morreram entre 2019 e 2022, destas, 152 foram vitimadas pela desnutrição. “São 570 que a gente teve informação. O número pode crescer mais, muitas comunidades não têm acesso de saúde, nós não temos informações. Nestas comunidades morreu bastante gente de malária. Então, se a gente levantar esses óbitos das crianças, o número pode ser muito maior”, aponta Hekurari.

Após a visita do presidente Lula (PT) a Roraima, em 21 de janeiro deste ano, ações de bloqueio do espaço aéreo da Terra Indígena Yanomami foram realizadas pela Força Aérea Brasileira para impedir o tráfego de garimpeiros na região. Também foram restabelecidos atendimentos de saúde de casos urgentes e a remoção de indígenas para hospitais na capital de Roraima, Boa Vista.

No entanto, Hekurari aponta que ainda faltam profissionais de Saúde para atender as comunidades afetadas pela devastação do garimpo. “Tem três médicos aqui no Surucucu, que são da Força Nacional do SUS. Tem uma médica que é contratada pelo governo federal para cuidar de 14.000 pessoas. Tem três técnicos de enfermagem que são contratados pela Terra Indígena Yanomami, mas o número é muito baixo.”

“Nós precisamos de mais de 200 profissionais, entre médicos, enfermeiros, técnicos de laboratório para fazer de tudo para salvar o povo Yanomami”, completa Hekurari.

Na última semana, mais três mortes de Yanomami foram registradas na Terra Indígena. Lideranças relataram o assassinato dos jovens na região de Homoxi e os autores dos crimes seriam garimpeiros que ainda atuam ilegalmente na área. Os 20 mil garimpeiros que estavam na Terra Yanomami têm sido pressionados pelas forças de segurança a deixar a região.

:: Garimpeiros matam três jovens indígenas Yanomami, denunciam lideranças ::

Para Hekurari, a tragédia que acomete o povo Yanomami é um projeto gestado pelo ex-presidente Bolsonaro há muito tempo. “O governo Bolsonaro nos abandonou, deixou que morrêssemos. Ele planejou, desde 1992, nós vemos todos os relatórios, todas as ameaças que ele fez contra o povo Yanomami, não demarcou a Terra Indígena”, diz.

O primeiro plano era matar as crianças, que são mais vulneráveis. Depois, quando a gente ficasse doente, automaticamente os homens e mulheres iriam morrer. Esse é o projeto. Ele conseguiu, mas nós resistimos, lutamos, enfrentamos junto com as mulheres, com a floresta. A floresta ainda está de pé, mas os rios não aguentaram. O rio está contaminado, o rio está morto.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Queria começar esse programa falando sobre a questão do acesso à Terra Indígena Yanomami, ele segue fechado por garimpeiros?

Junior Hekurari: Então, antes de ontem (1) o presidente da República bloqueou o espaço aéreo de toda a Terra Indígena Yanomami. E isso é muito importante para nós, porque os garimpeiros usam muitas aeronaves para chegar aonde estão destruindo as comunidades, os rios, colocando em risco a população Yanomami, as crianças.

Esse apoio que o governo federal, essa união do governo federal, a força do governo federal que está chegando na Terra Indígena Yanomami, quanto tempo a gente esperou por isso.

Mas demorou muito, as crianças não resistiram, as crianças faleceram. Os garimpeiros destruíram as comunidades, os rios, a floresta. Então, essa união vai salvar o meu povo Yanomami.

Mas o acesso segue fechado? Sei que agora ela está parcialmente fechada e só entram pessoas autorizadas, para atendimentos de saúde e etc…

Também tem um decreto da Funai, que saiu ontem (1), para o acesso à Terra Indígena Yanomami. Tem que entrar na sede da Funai, solicitar para visitar ou fazer um trabalho de jornalismo. É importante que nós, lideranças e o governo, possamos trabalhar com transparência, mostrar a realidade para a sociedade.

Nós, Yanomami, já sofremos demais em silêncio dentro da floresta. É importante a sociedade ouvir nossa voz e a sociedade pressionar o governo, pressionar autoridades também. Essas doações que estão chegando, nós precisamos reforçar mais a ajuda.

A visita, principalmente de jornalistas, da imprensa, é importante para a gente mostrar a realidade, o sofrimento do meu povo Yanomami. Mas para isso tem que pedir autorização na sede da Funai, no Ministério dos Povos Originários, órgãos que estão aí para ajudar a nós Yanomami.

O posto da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) foi sequestrado e usado como depósito de combustíveis pelos garimpeiros. Esse posto segue fechado? Como estão sendo realizados os atendimentos dentro da Terra Yanomami? 

Aquela Unidade Básica de Saúde do Homoxi, os garimpeiros sequestraram. Era uma unidade que cuidava de mais de 400 Yanomami e agora, neste local, estão surgindo grandes casos de malária na comunidade. Essas comunidades estão sem atendimento, porque a presença dos garimpeiros é muito grande.

No ano passado, os garimpeiros queimaram a Unidade Básica de Saúde como retaliação. Eles ficaram com raiva porque chegou uma operação do Ibama e destruiu tudo, os equipamentos, os helicópteros. Por isso, os Yanomami ficaram muito tempo sem atendimento de saúde.

Esse posto de saúde continua fechado? Onde estão sendo realizados os atendimentos? 

Então, esses pacientes do pólo base do Homoxi estão sendo atendidos pelos Surucucu. Eles avisam sobre os pacientes que estão mais graves e os helicópteros vão buscar esse paciente e traz para cá. Quando estão muito ruins, a gente manda para Boa Vista.

Júnior, 570 crianças yanomami morreram entre 2019 e 2022. Nesse mesmo período, foram 152 crianças mortas por desnutrição. Qual é o tamanho do descaso da gestão Bolsonaro com o povo Yanomami?

É, 570 que a gente teve informação. O número pode crescer mais, muitas comunidades onde não tem acesso de saúde, nós não temos informações, nestas comunidades morreu bastante gente de malária. Então, se a gente levantar esses óbitos das crianças, o número pode ser muito maior.

Essa é a digital, a assinatura do governo Bolsonaro. A gente avisou, pedimos socorro e o governo Bolsonaro simplesmente virou as costas e tampou os ouvidos. Ele via a situação, os nossos problemas, mas infelizmente tampou os olhos. Várias equipes dele, do Ministério da Saúde, equipes do governo federal vieram aqui no Surucucu para ver a realidade.

Você chegou a mandar vários documentos para o governo federal, relatando o que estava acontecendo com o povo Yanomami. Esses documentos, para além dessas pessoas que foram até aí e voltaram, esses documentos nunca tiveram nenhuma resposta?

Eu mandei muitos documentos, desde 2019, avisando que o povo Yanomami estava morrendo, que o povo Yanomami estava sem atendimento, que tínhamos mais de 26 mil casos de malária e que as crianças estavam morrendo. Avisamos que os garimpeiros tomaram Unidades Básicas de Saúde e esses documentos não foram respondidos.

Como não respondia, eu ia para o Ministério Público Federal, falar que a gente precisava de ajuda, para o MPF entrar com ação contra à União e obrigar o atendimento da população Yanomami. Depois da repercussão na mídia, a própria equipe do Ministério da Saúde chegava, colocava coisas que não tinham nada a ver, planos que foram maquiando com falsas informações, dizendo que a saúde dos Yanomami estava bem, que eles não estavam morrendo.

A gente sabe que eles fizeram grandes relatórios e enganaram até o STF, o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição Federal. Foi muito ruim, o governo Bolsonaro matou crianças, ele é responsável, tem uma grande responsabilidade. A culpa é dele, do governo Bolsonaro e da equipe dele e tem que ser responsabilizado e punido criminalmente por omissão de socorro do povo Yanomami.

A Terra Yanomami foi demarcada em 1992. Mas, desde então, segue ameaçada. Foi justamente por uma tragédia que aconteceu nesta terra, que o Brasil tipificou e condenou dois garimpeiros pelo crime de genocídio, após a morte de 16 indígenas Yanomami. O que acontece neste momento com os Yanomami pode ser caracterizado como um genocídio praticado pela gestão anterior do governo federal?

Sim, com certeza, porque o governo Bolsonaro nos abandonou, deixou que  nós morrêssemos. Ele planejou, desde 1992, nós vemos todos os relatórios, todas as ameaças que ele fez contra o povo Yanomami, não demarcou a Terra Indígena.

Como eu falei, os adultos, mulheres, os jovens e os homens foram resistência. Mas algumas comunidades não conseguiram resistir, morreram e até os garimpeiros mataram. Esse é o projeto dele, ele incentivou os invasores a entrarem na Terra Indígena, incentivou não vacinar os Yanomami, não mandar medicamento.

O primeiro plano era matar as crianças, que são mais vulneráveis. Depois, quando a gente ficasse doente, automaticamente os homens e mulheres iriam morrer. Esse é o projeto. Ele conseguiu, mas nós resistimos, lutamos, enfrentamos junto com as mulheres, com a floresta. A floresta ainda está de pé, mas os rios não aguentaram. O rio está contaminado, o rio está morto.

Há relatos de que indígenas têm caminhado por mais de 20 dias para buscar alimentos pela região. Como isso pode impactar a vivência coletiva dos yanomami e, inclusive, até sua própria existência?

Sim, muitas comunidades andaram muitos dias, 10 dias, 15 dias, 20 dias, 30 dias para buscar alimentação em outras comunidades. E no meio do caminho várias crianças morreram. Antes de ontem, nós deixamos as cinzas de uma criança que faleceu no meio do caminho. A mãe também adoeceu e foi removida. O pai da criança também faleceu, uma liderança da comunidade faleceu.

Amanhã, a gente vai buscar o pai da criança que faleceu, de helicóptero. Está longe daqui, 15, 20 minutos de helicóptero. É longe, andando fica a 15 dias. É uma tragédia muito grande. A mãe dessa criança está lutando para não morrer no hospital geral de Roraima. Ela está com malária falciparum, que é uma malária muito ruim, que mata um adulto.

Os profissionais que estão aqui trabalham 24 horas, veem crianças chegando convulsionando. Os profissionais, às vezes, também não aguentam e choram junto com as mães quando não conseguem salvar uma vida.

Quantos profissionais de saúde estão trabalhando na Terra Yanomami hoje?

Tem três médicos aqui no Surucucu, que são da Força Nacional do SUS. Tem uma médica que é contratada pelo governo federal para cuidar 14 mil pessoas. É, tem três técnicos de enfermagem que são contratados pela Terra Indígena Yanomami, mas o número é muito baixo. Parece que vai chegar mais reforço de profissionais de saúde.

Quantos profissionais de saúde seriam necessários, neste momento, para dar conta desse caos sanitário? 

Nós precisamos de mais de 200 profissionais, entre médicos, enfermeiros, técnicos de laboratório para fazer de tudo para salvar o povo Yanomami.

E também estrutura de saúde…

Estrutura… principalmente de comunicação, porque não tem nenhuma estrutura, só tem uma dessa aqui [cabana] para cuidar 15.000, de 180 comunidades. Imagina chegando todos os dias pacientes graves. Imagina o psicológico dos profissionais que estão aqui. Muitos também adoecem.

Você estava falando sobre a malária, como ela se espalhou pela Terra Yanomami de uma maneira terrível. Ela foi levada pelos garimpeiros para a região. Como tratar dessa doença, agora que os olhos estão voltados para a Terra Yanomami, e tentar erradicá-la dessa região?

Sim, como tu falou, a malária chegou através dos garimpeiros. Porque a malária nasce nos buracos que os garimpeiros fizeram, na água parada, na água suja. Então, muito rapidamente a malária se espalhou para todas as comunidades. Onde não existia a malária, ela chegou.

Para acabar com a malária, a gente tem que ter um planejamento muito forte, estratégico, com recursos, profissionais, fazer borrifamento nas comunidades. Se não tiver isso, a malária vai acabar com o povo Yanomami. A malária tem cura, a malária tem remédio, a malária tem como acabar se a gente trabalhar com a comunidade, com educação nas comunidades, ela acaba.

Tem uma comunidade onde vivem 100 Yanomami, por exemplo. Nessa comunidade, 99 pessoas estão com malária. Quase 100% das comunidades estão contaminadas, estão fracos.

Esse trabalho de combate à malária ainda não começou, né? 

Não começou ainda. Estamos atendendo as urgências e emergências. Recebendo, atendendo e removendo os pacientes para Boa Vista. É isso que a Força Nacional do SUS está fazendo agora. Mas estamos planejando.

Outro problema levado pelo garimpo – como se não bastasse a quantidade deles – é o impacto do mercúrio utilizado para retirar as pedras preciosas da terra. Sem água potável, sem peixes nos rios, aumenta ainda mais a vulnerabilidade da população Yanomami?

Com certeza. Onde tem grandes garimpos, nas comunidades onde a gente faz resgates, as crianças não tem cabelo. Segundo especialistas, a Fiocruz por exemplo, fala que esses cabelos estão caindo porque estão contaminados pelo mercúrio, através da amamentação, através dos peixes contaminados que eles comem.

É uma tragédia muito grande, os rios estão todos contaminados. A única alimentação que a gente tinha acabou. Porque a natureza nos oferecia esses recursos, de alimentação para as comunidades, mas os invasores expulsaram nossa alimentação. A alimentação de proteína, a caça, está cada vez mais afastada, mais longe, porque os motores dos equipamentos do garimpo é muito forte e fica ligado 24 horas.

Edição: Rodrigo Durão Coelho

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