Com o objetivo de contribuir para os programas de prevenção à COVID-19 entre os povos indígenas, cientistas de quatro universidades brasileiras – Unicamp, USP, UFF e UFRJ – avaliaram informações demográficas, infraestruturais e geográficas e reuniram suas considerações no estudo que acabam de publicar: Análise de Vulnerabilidade Demográfica e Infraestrutural das Terras Indígenas à Covid-19.
“A ideia é que o material ofereça subsídios para as ações das próprias comunidades e organizações indígenas e do governo para o atendimento à saúde indígena nesse período de pandemia que estamos vivendo no Brasil”, afirmam, no documento, Marta Azevedo (UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas), Fernando Damasco (UFF – Universidade Federal Fluminense), Marta Antunes (UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro), Marcos Henrique Martins (USP – Universidade de São Paulo ) e Matheus Pinto Rebouças (UFF).
A análise partiu de dados já publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com o Censo Demográfico 2010 e “desagregáveis por Terras Indígenas por estado”, que foram traduzidos em tabelas, gráficos e mapas.
Como não há dados do censo da última década – sua publicação foi adiada para 2021 em decorrência da pandemia -, 29 das 471 Terras Indígenas reconhecidas pelo Estado, regularizadas após a publicação do último censo, ficaram de fora do estudo.
Mais: a análise não conta com o processamento de dados epidemiológicos do avanço da COVID-19 no país, o que demandaria outras fontes de informação ainda não registradas pelo Ministério da Saúde, que deu início a um estudo em parceria com a Universidade Federal de Pelotas, com base no teste de 100 mil pessoas de forma a municiar as autoridades com dados mais precisos sobre o avanço do coronavírus.
Fatores e variáveis: a metodologia
Antes de conhecer o resultado do estudo, é importante compreender a metodologia adotada pelos cinco pesquisadores para traçar o perfil de vulnerabilidade da população indígena. Eles adotaram seis variáveis:
– percentual de pessoas idosas na TI (PI);
– média de moradores por domicílio da TI (MEDMOR);
– existência de banheiro de uso exclusivo ou sanitário nos domicílios da TI (SEBX);
– rede de abastecimento de água nos domicílios da TI (SRED);
– localização da TI em relação aos municípios com disponibilidade de leitos em UTI (MUTI) e
– estado da situação de regularização da TI (SITTI).
E cruzaram essas variáveis com fatores como:
– comportamento da transmissão do vírus,
– riscos associados à letalidade,
– capacidade de manter o isolamento social e rotinas de prevenção, e
– segurança da situação de regularização das TIs.
A situação de cada Terra Indígena (TI) foi classificada em uma das quatro categorias (explicadas no próximo parágrafo), que foram definidas a partir de dados oficiais do IBGE e de dados complementares, tais como registros produzidos pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). Com isso, os pesquisadores criaram um índice para medir o grau de vulnerabilidade das TIs contempladas no estudo.
Tal índice pode variar em uma escala de 0 a 1, sendo que os valores mais próximos de 1 indicam maior vulnerabilidade e quanto mais próximo de 0, mais moderada a vulnerabilidade. Eis as quatro categorias para classificação do grau de vulnerabilidade:
– Crítica (superior a 0,5);
– Intensa (entre 0,4 e 0,499);
– Alta (entre 0,3 e 0,399); e
– Moderada (abaixo de 0,3).
A partir dessa metodologia, os pesquisadores identificaram:
– 13 TIs com vulnerabilidade crítica ao Covid-19, sendo a Terra Indígena Enawenê-Nawê (MT) é a mais vulnerável de todas, com índice de 0,611;
– 85 Tis com vulnerabilidade intensa;
– 247 TIs com alta vulnerabilidade e
– 120 Tis em estado moderado.
Falta de estrutura e baixa imunidade
Martha Peixoto Azevedo, demógrafa, antropóloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó da Universidade Estadual de Campinas (NEPO/UNICAMP), destaca que a falta de estrutura dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIS), responsáveis pelo atendimento aos povos indígenas, é um fator agravante para a alta vulnerabilidade de seus territórios. Soma-se a esse cenário, a baixa imunidade das populações indígenas à infecções respiratórias agudas, como fator preocupante.
“Eles moram em lugares onde o atendimento à saúde é específico e feito pelo Ministério da Saúde por meio das equipes dos DSEIS. Elas ficam nos polos-base ou postos de saúde nas comunidades e não contam com boa estrutura: carecem de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), meios de transporte como barcos, voadeiras, caminhonetes, carros… Na TI do povo Yanomami, por exemplo, só se chega de avião! Esse serviço de saúde não tem esses meios de transporte ou muito pouco e, neste momento, vão precisar de muito mais”, destaca a pesquisadora.
O estudo indica que a região Norte do país é a que apresenta a situação mais grave, sobretudo o estado do Amazonas. As terras Acapuri de Cima e Balaio estão em situação crítica outras 38 TIs em situação de vulnerabilidade intensa. Quando somadas às TIs com risco alto (70), o estado totaliza 110 TIs em estado de perigo. Rondônia (15), Acre (26), Roraima (30), Pará (40), Amapá (4) e Tocantins (8) apresentam valores muito inferiores ao Amazonas, onde a soma de todas as suas categorias se iguala aos números desse Estado.
Agora, veja a comparação da situação na região Norte com a das outras regiões, que também registraram TIs em estado crítico ou alto:
– 43 no Nordeste;
– 14 no Sudeste;
– 27 no Sul; e
– 70 no Centro-Oeste.
Nesta última região, só o estado do Mato Grosso responde por 50 dos 70 casos confirmados.
Sobre o Amazonas, a demógrafa Marta Peixoto afirma que a concentração dos leitos de UTI em Manaus, capital amazonense, “é um absurdo!”. A centralização da infraestrutura de saúde em um estado de grandes dimensões como esse é um dos principais fatores de maior vulnerabilidade das comunidades indígenas.
“O Amazonas é o estado com maior vulnerabilidade por conta da inexistência de leitos de UTI, que estão concentrados em Manaus. É um estado enorme, mas nem as cidades grandes do Estado oferecem esse tipo de atendimento, nem nos hospitais regionais, digamos assim. São Gabriel da Cachoeira tem um hospital regional gerido pelo exército, em parceria com o SUS, mas que não tem esse tipo de infraestrutura. Então, o que eu penso, é que a gente tem que se precaver logo, pra ontem”.
E completa: “Primeiro, é preciso oferecer meios de transportes das Terras Indígenas até as cidades regionais mais próximas e a instalação de leitos de UTI nessas cidades regionais do estado do Amazonas, e não deixar tudo em Manaus. Há cidades grandes como Tefé, Tabatinga, Benjamin Constant, São Gabriel da Cachoeira, enfim, muitas cidades nesse estado que podem receber essa infraestrutura, assim como treinamento dos profissionais de saúde pra manuseá-la”.
A pesquisadora vai além e também defende a importância da participação das organizações indígenas no planejamento e execução de ações de prevenção contra o coronavírus.
“São essas organizações que estão fazendo a prevenção do seu território. São atores principais, não apenas sujeitos de programas de prevenção. São as pessoas que fazem todo tipo de prevenção que consideram adequada depois de obterem todas as informações a respeito do COVID-19. Então, qualquer providência para melhorar e mitigar a vulnerabilidade das terras indígenas à doença tem que ser feita e pensada em conjunto com as organizações indígenas”, conclui.