A carga pesada dos médicos da linha de frente: escolher quem morre e quem vive

Sem protocolo oficial, hospitais se organizam por conta própria para orientar médicos sobre o que fazer quando não há vagas nas UTIs.

Foto: Marcello Casal/ Agência Brasil

Por Joana Suarez.

Sofia teve que escolher quem salvaria entre seus dois filhos pequenos, em um campo de concentração nazista polonês, durante a Segunda Guerra Mundial. A história, narrada no romance A escolha de Sofia, tornou-se conhecida pelo filme de Alan Pakula, premiado com um Oscar em 1983.  A partir daí a expressão passou a ser usada quando se tem que tomar decisões profundamente dolorosas, quase impossíveis.

Na pandemia do coronavírus, o termo voltou à tona para se referir à escolha de a quem dar acesso a um disputado leito de terapia intensiva; em uma situação em que um respirador pode determinar quem morre e quem vive. Internacionalmente, há estudos até para avaliar o compartilhamento de um mesmo equipamento de ventilação para dois ou mais pacientes, o que nunca foi testado em humanos e ainda está fora de cogitação pelo risco que oferece.

Com um número insuficiente de leitos de UTI, desigualmente distribuídos pelo país, são as equipes médicas que acabam obrigadas a optar entre os pacientes que terão prioridade. E pelo visto terão que fazer isso sozinhas, já que não há protocolos definidos pelo Ministério da Saúde e pelas secretarias estaduais sobre como agir nesses casos.

Talvez para evitarem falar da morte, um risco inerente à pandemia, as autoridades estão deixando mais essa carga aos médicos da linha de frente. Discute-se o aumento de recursos para atenuar o problema, mas não se fala de quais seriam os critérios para essa difícil escolha, que deveriam ser transparentes para a população. Nisso concordam médicos, entidades e especialistas em fim de vida, os paliativistas. Segundo eles, apenas hospitais isolados e a Associação Brasileira de Medicina Intensiva (Amib) tomaram iniciativas de elaborar protocolos e recomendações.

“O que está acontecendo hoje é que cada hospital está criando seu protocolo, e aí a gente pode começar a ter uma desigualdade entre os serviços, porque não é uma política pública. O Ministério da Saúde não criou um protocolo e o Conselho Federal de Medicina não se manifestou sobre isso”, pontua a advogada Luciana Dadalto, doutora em ciências da saúde, que lida com a temática da bioética na medicina há 12 anos.

Luciana cobra: “É preciso que fique claro para a sociedade quais serão as premissas adotadas durante a pandemia”.

A advogada lembra que, ao contrário da Itália e de outros países que tiveram que fazer essas definições em meio ao caos, o Brasil teve tempo para planejar medidas e cuidados antes do avanço dos casos de covid-19. Já se sabia, por exemplo, que a criação de leitos de UTI dificilmente superaria o ritmo da pandemia.

De acordo com o Imperial College London, que publicou os números previstos para os desfechos da pandemia em todos os países, em um cenário com distanciamento social de toda a população, o Brasil terá 831 mil pessoas precisando de UTI, enquanto dispomos de pouco mais de 55 mil vagas. Além disso, mais de 80% das regiões de saúde (grupos de municípios que compartilham a mesma rede) não atingiam o parâmetro de 1 a 3 leitos para 10 mil pessoas – o mínimo recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) –, como apontou há mais de um mês a reportagem o Brasil vive um deserto de UTIs, da Agência Pública.

“Estamos perdendo tempo e vamos ser engolidos pela necessidade de tomar decisão, sem ter conseguido padronizar algumas coisas”, preocupa-se Luciana.

Em capitais como Manaus a crise se instalou já no início de abril, quando a ocupação dos leitos totais chegou a 95%. O número de mortos no dia 21 de abril foi de 193, segundo boletim da Secretaria de Estado de Saúde, e câmaras frigoríficas foram instaladas nos hospitais da capital amazonense, depois de fotos nos jornais terem mostrado corpos ao lado de pacientes vivos. Três médicos morreram.

Uma situação já excessivamente cruel para os profissionais de saúde, que não devem ser submetidos a mais sofrimento, como diz José Bernardes Sobrinho, presidente do Conselho Regional de Medicina do Amazonas (Cremam): “É uma situação degradante para o médico. Ele não tem esse poder de decidir quem vai viver, quem vai morrer. Isso não deveria acontecer”.

Os protocolos dos hospitais e Associação de Medicina Intensiva

Pública entrou em contato com o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Ministério da Saúde há duas semanas e, apesar de pedidos de resposta insistentes, não obteve retorno sobre a existência de protocolos que orientem os hospitais sobre os critérios de prioridade. O que se tem até o momento é o documento da Associação Brasileira de Medicina Intensiva (Amib), feito com o objetivo de amparar os médicos. Intitulado “Princípios de triagem em situações de catástrofes e as particularidades da pandemia covid-19”, o artigo indica os parâmetros de admissão de pacientes em UTIs, baseados na resolução 2.156 do CFM, de 2016.

A gravidade do quadro clínico atual do paciente e a probabilidade de sobrevivência são os principais pontos para definir a prioridade entre os doentes, conforme o artigo (veja os detalhes abaixo). A Amib também recomenda que as decisões sejam coordenadas com diretor técnico hospitalar e autoridades de saúde em nível local, regional ou nacional, além de documentadas no prontuário de cada paciente. “As equipes de triagem para cuidados intensivos devem ser compostas, no mínimo, por três pessoas, dois médicos e um outro profissional de saúde, experientes no cuidado de pacientes graves, especialmente com disfunção respiratória”. São elas que devem decidir juntas, baseadas em critérios previamente definidos para priorizar pacientes.

A maior preocupação é evitar decisões subjetivas, relacionadas com o status social do paciente, por exemplo. A idade também não pode ser o primeiro critério, e sim o último, num possível desempate. “Independentemente da situação, todas as pessoas são dignas. Não é possível tolerar qualquer forma de discriminação”, aponta o artigo da Amib.

Os critérios da AMIB

Níveis recomendados

– Prioridade 1: pacientes que necessitam de intervenção imediata, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de recursos curativos (podendo receber todas as intervenções para serem salvas). Exemplo: uma pessoa com uma pneumonia grave, com necessidade de ventilação mecânica, sem doenças prévias ou com doenças que não limitam a expectativa de vida (asma, hipertensão controlada, diabetes controlado…);

– Prioridade 2: pacientes que necessitam de monitoramento intensivo, com alto risco de precisarem da intervenção imediata, e sem nenhuma limitação de suporte;

– Prioridade 3: pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, mas com baixa probabilidade de recuperação ou com alguma limitação terapêutica;

– Prioridade 4: pacientes com limitação de intervenção terapêutica, como os que têm câncer avançado, doença cardíaca e pulmonar avançadas – nesses casos, as intervenções avançadas podem ser fúteis e não indicadas;

– Prioridade 5: pacientes com doença em fase terminal, sem possibilidade de recuperação.

Situação do paciente

Serão avaliados: quadro clínico atual; presença de comorbidades (mais de uma doença); comprometimento irreversível de funções cognitivas; e fragilidade.

Não discriminar

As decisões não devem levar em consideração: idade, religião, etnia, sexo, nacionalidade, cor da pele, orientação sexual, condição social, opinião política ou deficiência.

FONTE: AMIB – PRINCÍPIOS DE TRIAGEM EM SITUAÇÕES DE CATÁSTROFES E AS PARTICULARIDADES DA PANDEMIA COVID-19 (março de 2020)

Protocolos em Minas Gerais

Hospitais públicos e privados de Belo Horizonte e de algumas cidades de Minas Gerais também fizeram um protocolo conjunto para situações extremas. O documento é baseado em publicações internacionais anteriores que previam critérios de atendimento em grandes catástrofes, como terremotos e o atentado do World Trade Center, em Nova York.

A ideia é salvar o maior número de vidas e priorizar aqueles que parecem ter maiores condições de sobrevivência, explica a médica Maria Aparecida Bicalho, do serviço de geriatria do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que participa da feitura do protocolo. Os critérios serão reavaliados a cada plantão de 12 horas. É uma equipe, com um número ímpar de profissionais, que decide. “Não nos baseamos na idade, mas na gravidade. Pacientes com falência de três órgãos vitais [coração, pulmão e rim] têm a prioridade reduzida por ter uma chance muito pequena de recuperação”, explicou a geriatra. As comorbidades também são observadas: “Se tem um câncer de metástase, a chance de viver mais de um ano é pequena”.

Aparecida esclarece que um idoso pode ter uma expectativa de vida maior quando comparado com um jovem que tem doenças graves, embora seus pacientes mais velhos estejam apreensivos com a possibilidade de não serem atendidos. “A discussão está sendo feita aqui para não sermos pegos de surpresa, mas é difícil a população entender isso”, afirmou.

Consequências psicológicas e legais

Boa parte dos médicos intensivistas brasileiros que trabalham no sistema de saúde pública, muitas vezes sobrecarregado, já teve que tomar decisões ditadas pela escassez de recursos. Mas em uma situação de pandemia, em que esse sistema será pressionado ao máximo, a disputa por ventilação mecânica é quase inevitável. São os respiradores que auxiliam o corpo a obter oxigênio e liberar dióxido de carbono quando os pulmões são afetados, e seu uso pode ser determinante para o desfecho de cada caso. “No momento, ninguém quer falar disso, mas quando acontecer, se tiver que sobrar para alguém, é o profissional da ponta que vai arcar com todas as consequências”, destaca o intensivista Cristiano Augusto Franke, um dos autores do documento da Amib.

Podíamos estar mais preparados, defende Franke, “promovendo a discussão [sobre esses critérios] com toda a sociedade, médicos, juristas, bioeticistas, filósofos, líderes religiosos…”. Ele sugere que o debate poderia ocorrer em uma audiência pública, no Congresso Nacional, no Ministério Público, em reuniões pautadas pelo Ministério da Saúde ou pela própria OMS.

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