Entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito, previstos na Constituição de 1988, estão a cidadania e a dignidade da pessoa humana, vivendo em uma sociedade livre, justa, equânime, solidária e que promova o bem de todos, todas e todes. Entre os direitos e garantias fundamentais para a plena cidadania estão o acesso a um conjunto integrado de ações que envolvem tanto o Poder Público quanto a Sociedade, assegurando de forma universal uma vida digna.
Anunciada como a “salvação econômica do Brasil”, a PEC 06/2019 é uma proposta tão fake quanto a campanha eleitoral de 2018 e as alterações feitas na legislação trabalhista pelo (des) governo de Temer que garantia gerar mais de dois milhões de empregos formais, com carteira assinada e contribuindo para a previdência. Cabe resgatar também os efeitos nefastos da Emenda Constitucional 95 (EC 95) e o não investimento por 20 anos em políticas públicas, já perceptíveis em todos os municípios brasileiros.
Quando o Congresso Nacional “legalizou” o trabalho informal, pejotizado e intermitente, optou por reduzir a arrecadação previdenciária e excluir milhões de trabalhadores e trabalhadoras do direito de acessar o sistema de proteção social, em benefício do empresariado.
De acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) quase metade (46,9%) da população preta ou parda está na informalidade, 40,7% das trabalhadoras estão sem registro. Em algumas atividades como a agropecuária, 75,5% das mulheres não têm registro, e nos serviços domésticos, 71,2% das mulheres estão sem carteira assinada. Com relação a renda das trabalhadoras sem carteira assinada, em média, é de 73% de um homem na mesma condição.
A importância de resgatar tais elementos no debate sobre a “Nova Previdência” está em demonstrar que tal proposta já não atinge quase 50% da população que sobrevive de um trabalho socialmente desprotegido e sem qualquer perspectiva de garantias para um futuro seguro. Salvo se conseguir poupar, mas com uma média mensal de rendimento em torno de R$1.000,00, fica impossível. O Banco Mundial afirma que “os brasileiros de todas as idades parecem ocupados demais com seus problemas no presente e não estão se preparando para a velhice”, que nos apresentem a fórmula de multiplicação.
A proposta é de subir a idade mínima de aposentadoria para mulheres (62 anos) e homens (65 anos) e a obrigatoriedade de 40 anos de contribuição, para ter direito a uma aposentadoria de 100% sobre a média salarial de todas as suas contribuições. Neste contexto de trabalho precarizado e sem vínculos, é importante frisar que uma trabalhadora que inicie trabalho formal aos 18 anos terá que trabalhar e contribuir mensalmente com a previdência por 44 anos. Ou seja, registrar e contribuir sobre salário minimo, e ficar doente ou desempregada, nem pensar.
Ora, se o que vale hoje nas relações de trabalho, é o trabalho informal e a terceirização irrestrita, onde há elevada taxa de rotatividade, com trabalhadores e trabalhadoras permanecendo em média 2,7 anos no emprego intermediado, teremos que trabalhar para muito além dos 80 anos. Importante considerar que somos um país onde o setor que mais emprega é o de comércio e serviços, em que as condições de trabalho são favoráveis a acidentes e ao desenvolvimento de doenças.
Com a EC 95 – teto dos “gastos” públicos, o governo disse em alto e bom som: “Mulheres, voltem para as cozinhas e senzalas, não envelheçam e parem de parir por 20 anos”, na ausência de políticas de cuidados para as crianças, idosos, pessoas com deficiência ou adoecidas, recai à mulher a responsabilidade deste cuidar. Aprofundando ainda mais a divisão sexual e social do trabalho, a feminização da pobreza e as dificuldades em se manter em um emprego formal.
Diante desta PEC, as mulheres que cuidaram filhos, netos, bisnetos e não conseguiram contribuir com a Previdência, serão cuidadas por outras mulheres, sem qualquer proteção do Estado, até completarem 60 anos e terem o direito de receber R$ 400,00 mensais, por uma vida dedicada a fazer aquilo que o Estado se negou a fazer e a Sociedade e a própria família não reconhecem.
A população de idosos no Brasil (entre 2012 e 2017) saiu de 25,4 milhões para mais de 30,2 milhões, vivendo em abrigos públicos em total situação de abandono, há 60.939 pessoas com 60 anos ou mais. A estimativa é de que em 2030, o número de idosos ultrapassará o total de crianças entre zero e 14 anos.
Com relação a pensões e a redução do acúmulo de benefícios (pensão mais aposentadoria), cabe registrar que de acordo com o Anuário Estatístico da Previdência Social (2015), do total de pessoas que receberam pensão por morte, 84% (ou 6,2 milhões) foram mulheres. Apenas 2,3 milhões (8% do total de beneficiários de previdência) acumularam benefícios de aposentadoria e pensão, sendo 84% mulheres. A importância das pensões por morte para as mulheres na faixa etária de 60 anos é essencial a sua vida e a dos seus, apesar de três quartos das pensões por morte recebidas pelas mulheres não ultrapassarem dois salários mínimos.
A proposta que o Congresso Nacional terá que debater, ignora totalmente as desigualdades de condições de trabalho e salários e as diferenças regionais, ignora o índice de desemprego e a crescente do trabalho informal, o déficit habitacional (1/3 do salário é para aluguel), o transporte público ineficiente (1/5 do salário é usado para o transporte), a inexistência de “creches” públicas em período integral. Ignora as especificidades do trabalhador rural e na pesca artesanal, em especial das trabalhadoras, onde 70% das mulheres começam a trabalhar antes dos 14 anos.
Tal proposta não reconhece as diferenças entre os setores público e privado, em especial, das mulheres na educação e segurança. Que os Benefícios de Prestação Continuada, aposentadorias, pensões, benefícios previdenciários e acidentários e o Abono Salarial geram importante movimentação na economia local – apenas 6% dos atuais beneficiários do Abono Salarial continuarão a receber.
Implementar um regime de capitalização nas condições postas, é “suicidar” a população mais vulnerável e que precisa que a Seguridade Social (saúde, assistência, previdência) mantenha seu caráter público, universal, solidário, com o objetivo de reduzir desigualdades. As ruas do Brasil já estão repletas de trabalhadores e trabalhadoras excluídos do acesso a direitos previdenciários, através da MP 871/2019 editada em janeiro, blindaram o acesso a benefícios por afastamento do trabalho ou aposentadoria por invalidez.
Se recusam a debater a necessidade de mudanças urgentes na Lei de Execução Fiscal e nos instrumentos legais que prestigiam o mau pagador, fraudador, sonegador. Devido a desvios, sonegações e dívidas, nos últimos 20 anos, deixaram de entrar nos cofres da Previdência mais de R$ 3 trilhões. Esse valor atualizado passaria dos R$ 6 trilhões (dados do Relatório da CPI da Previdência), entre fraudes e sonegações, os números ultrapassam os R$ 100 bilhões.
A PEC 06/2019, cria as condições necessárias para excluir definitivamente quase 50% da população que ainda mantém algum vínculo empregatício e está segurada por um Regime Próprio, Regime Geral ou Regime Especial. Servindo como uma transição para a “carteira de trabalho verde e amarela – laranja” e a privatização total da Seguridade Social. Não por menos, há a compreensão de que, pela complexidade e amplitude da proposição, esta é uma reforma constitucional, mas sem constituinte.
Schirlei Azevedo é Vice Presidenta do PT Floranópolis e do Coletivo de Formadoras da Escola Nacional de Formação do PT