Mídia, transnacionais e direita refinaram, no país, novo modelo para derrubar líderes populares latino-americanos. Que devemos aprender com isso?
Texto e Fotos de Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá*.
Cooptar e seduzir militares nacionalistas contra o “perigo vermelho” já não é mais condição sine qua non para um bem sucedido golpe político na América Latina. Depois do fracasso contra o governo venezuelano de Hugo Chávez em 2002 e o longo impasse causado pelo refúgio na Embaixada Brasileira em Tegucigalpa, capital de Honduras, pelo presidente Manuel Zelaya em 2009, as forças conservadoras de sempre (oligarquias rurais e industriais, cúpula da Igreja Católica, mídia hegemônica monopolista e interesses comerciais estadunidenses) conseguiram refinar o novo modelo para a derrubada de líderes progressistas populares: o golpe parlamentar/midiático. Antes de tirar o mandatário eleito do poder é preciso desconstruir sua imagem pública por meio de denúncias, verdadeiras ou não, nos grandes meios de comunicação. Ao mesmo tempo, alicia-se os parlamentares com participação nos lucros de negócios internacionais desregulamentados para garantir um “verniz” de legalidade ao processo.
A primeira vítima desse novo tipo de golpe de estado foi o presidente Fernando Lugo, um ex-bispo ligado à Teologia da Libertação, que havia conseguido mais de 40% dos votos paraguaios em 2008 para tirar do poder, após seis décadas incluindo os 35 anos do ditador Alfredo Stroessner, o Partido Colorado. Em visita ao Brasil para a Rio+20, Lugo foi surpreendido pela abertura de um processo de impeachment (o 24º que se tentou em quatro anos) que o apeou do poder em 22 de junho, em cerca de 36 horas.
As acusações contra o presidente são surreais, indo da “má gestão de instalações militares” (devido à cessão de um quartel em 2009 para a realização de um evento da juventude) ao incitamento de invasão de terras, apoio a guerrilhas de esquerda e “atentado contra a soberania” na assinatura do novo tratado de uso da energia de Itaipu (bombardeado no Brasil pela imprensa hegemônica tupiniquim). E, o pior, não precisam ser comprovadas por serem “de notoriedade pública, […] conforme o ordenamento público vigente”, segundo documento do Parlamento.
O impeachment viola claramente os artigos 16 e 17 da Constituição Paraguaia, que regulamenta os processos legais e o direito de defesa. Como não obteve resposta da Suprema Corte do país, Lugo deve recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Mas as possibilidades reais de retomada do governo são mínimas.
A questão agrária
Apesar da execução relâmpago, no entanto, o processo que levou à queda do presidente democraticamente eleito vinha sendo gestado desde sua posse. De acordo com telegramas diplomáticos vazados pelo Wikileaks, a embaixada estadunidense em Assunção já reportava à Washington movimentos nesse sentido desde o início de 2009. Contando com uma ampla mas frágil coligação de partidos, Lugo jamais teve maioria no Congresso, o que explica em parte a votação de 39 a quatro no Senado por sua destituição sumária. Seu vice, agora empossado como presidente de facto e com quem ele havia rompido politicamente, Federico Franco, faz parte do Partido Liberal Radical Autentico (PLRA), que era a principal legenda“oposicionista” aos colorados antes da ascensão do ex-bispo.
Com isso, várias importantes promessas de campanha, como a reforma agrária, não puderam ser realizadas, levando à divisão do apoio dentro dos movimentos sociais. A questão agrária, aliás, é central na política paraguaia. País essencialmente rural, tem uma das piores distribuições de terra do continente. 80% das areas cultivadas estão nas mãos de 2% da população, sendo 25% das terras de propriedade de apenas 0,005%. As chácaras com menos de 5 hectares (40% das propriedades), normalmente dedicadas à agricultura familiar e, portanto, aos alimentos consumidos pela população local, representam menos de 1% da area cultivada, o que leva muitos indígenas como o senhor Emílio Aquino, artesão da região Chamacoco (que não fala espanhol), e camponeses a incharem as favelas de Assunção.
Foi ao lado de um desses grandes latifúndios, com boa parte dos 70 mil hectares entregue graciosamente pelo governo Stroessner ao senador e ex-presidente do Partido Colorado Blas Riquelme, na região conhecida como
Curuguaty, que em 15 de junho um contingente da Polícia Nacional altamente treinado (segundo consta, por militares estadunidenses na Colômbia) foi “emboscado” por sem-terras (os “carperos” assim chamados por viverem sob as lonas pretas – carpas) resultando na morte de seis policiais, incluindo um irmão do chefe da segurança de Lugo. Em “reação ao ataque”, os policiais mataram 11 sem-terras e feriram mais 50. As responsabilidades pelas mortes fazem parte das acusações contra Lugo, mas a comissão de investigação do massacre foi suspensa assim que o novo governo tomou posse.
Os latifúndios midiáticos
Nos latifúndios, as principais culturas legais (para não falar da maconha paraguaia) são a soja e o algodão para exportação. Os ministros do governo Lugo, no entanto, haviam barrado a entrada de novas sementes transgênicas, levando a uma forte reação dos três maiores jornais do país, que haviam convocado um “tratoraço” para fechar as rodovias paraguaias em 25 de junho. Com a queda de Lugo, o protesto perdeu razão de ser e foi suspenso.
Um desses jornais, o ABC Color, pertence ao Grupo Zucolillo, sócio da transnacional Cargill no Paraguai e tem entre seus diretores Héctor Cristaldo, presidente da Unión de Grêmios de la Producción (UGP), a principal entidade ruralista do país. O presidente do grupo, Aldo Zucolillo, por sua vez, é dirigente local da Sociedade Interamericana de Prensa (SIP).
A entidade promove estudos e seminaries sobre “liberdade de expressão” para condenar os ataques à “imprensa livre” na Venezuela, Argentina, Cuba, Equador e Brasil. Mas não diz uma palavra sobre o corte de energia à TV Pública do Paraguai, ocupada por manifestantes pró-democracia e única a abrir um microfone para a população e próprio presidente deposto, nem sobre o anúncio de corte na concessão de 200 rádios comunitárias feito pelo novo chefe da Comissão Nacional de Telecomunicações, Carlos Gómez Zelada.
Segundo o jornalista Washington Uranga, do diário argentino Página 12, “dezenas de repórteres, comunicadores sociais e produtores estão sendo demitidos da Rádio Nacional, da Televisão Pública, da agência de notícias oficial IP Paraguay e da Secretaria de Informação e Comunicação (Sicom)”. Outras informações dão conta que somente na segunda semana de setembro, 28 profissionais da TV Pública teriam perdido seus cargos. A mídia, que já era hegemônica, tornou-se uma única voz.
Com a imagem desgastada pelas constantes denúncias de filhos feitos quando ainda era bispo (nas ruas muitos o chamam de “padre pedófilo”) em um país profundamente católico (o Vaticano foi o primeiro Estado a reconhecer o “novo governo” paraguaio), o apoio dividido nos movimentos populares e a traição de antigos correligionários no parlamento, não houve como Lugo reverter a situação e retomar o mandato. O golpe, contudo, gerou reações inesperadas e novas correlações de forces dentro e fora do Paraguai.
Consequências do golpe
A ação rápida, unânime e forte do Mercosul e da Unasul (mesmo sem uma posição da OEA) sinalizou claramente que países não-democráticos serão isolados e poderão perder a chance de negociar com um bloco que, com o ingresso da Venezuela, se tornou a 5ª maior economia do planeta. Ao mesmo tempo, uma delegação de deputados da União Europeia visitou o Paraguai após o golpe e montou um relatório que pode levar à interrupção de acordos comerciais e de apoio ao desenvolvimento se não houver uma volta à democracia.
O processo de regulamentação da mídia, que anda a passos largos na Argentina, também deve se intensificar no continente. O Equador recentemente anunciou que vai deixar de publicar anúncios na mídia comercial para forçar a aprovação da lei que prevê a distribuição igualitária dos canais de rádio e TV entre emissoras comerciais, públicas e comunitárias.
Ainda assim, várias iniciativas empresariais de interesse de empresas transnacionais foram rapidamente implantadas, revertendo bloqueios do governo Lugo. A primeira foi a liberação dos plantios de sementes transgênicas de algodão e de milho da Monsanto pelo novo ministro Enzo Cardozo. A segunda foi a retomada das negociações para a instalação da produtora de alumínio canadense Rio Tinto Alcán que teria capacidade de absorver metade da energia paraguaia de Itaipu a preços subsidiados (Franco chegou a ameaçar o Brasil e a Argentina a não mais “ceder” a eletricidade excedente que comercializa com os dois países, quebrando os contratos existentes).
Em seguida, foi fixado um novo compromisso de não taxar a produção de soja e encerrada a auditoria sobre as origens e a propriedade das terras usadas para plantação do grão pelo “brasiguaio” Tranquilo Favero, o Rei da Soja. Há, ainda, a ameaça de vender “a preços de mercado” as terras que seriam para a reforma agrária, a queda da legislação que proíbe estrangeiros de possuir fazendas a menos de 50 quilômetros da fronteira e a possibilidade da implantação de uma base militar estadunidense no país.
Internamente, o golpe reaglutinou as forças populares ao lado do presidente eleito. A Constituição Paraguaia garante aos ex-presidentes um cargo de senador vitalício, mas proíbe a reeleição. Como Lugo não terminou o mandato, isso o coloca juridicamente fora das duas situações. Portanto, teoricamente existe até a possibilidade dele se candidatar à presidência em abril de 2013.
Em passagem pelo Brasil na primeira semana de agosto, ele visitou o ex-presidente Lula e conversou com jornalistas da imprensa alternativa. Disse que desistiu de se aposentar da política e que hoje é “mais um soldado pelo processo de mudanças no Paraguai”. No final do mês de agosto, um Fórum Social foi realizado no país, atraindo atenção dos ativistas mas sem repercussão alguma na mídia hegemônica dentro ou fora do Paraguai.
Lugo ainda não tem claro se seria mais interessante disputar novamente a presidência ou, mais provavelmente, um cargo de senador. Contudo ele afirma que o movimento do qual faz parte, a Frente Guasú, nunca esteve tão forte, integrando atualmente 12 partidos políticos e oito movimentos populares. Para fechar, Lugo faz um alerta: “Hoje, depois do que ocorreu no Paraguai, creio que qualquer país deve estar atento. Quando houve o golpe em Honduras me disseram que o próximo seria o Paraguai. A direita internacional não tem limites”.
A VOZ DAS RUAS EM ASSUNÇÃO
Assim que houve o anúncio do impeachment, a TV Pública do Paraguai, inaugurada por Lugo em 2011, foi ocupada por seus trabalhadores e a rua recebeu um acampamento de estudantes tornando-se o ponto de encontro de manifestantes a favor do presidente deposto. Foi do Micrófono Abierto, instalado pela TV Pública em frente ao prédio da emissora, que ele convocou a população a resistir de maneira pacífica em um discurso emocionante na madrugada de 24 de junho.
Nas ruas adjacentes, no entanto, as opiniões divergem, mostrando a divisão na sociedade paraguaia. “O que aconteceu foi um golpe de Estado e não se pode negar, afinal não houve tempo para a sua defesa”, afirma Patrício Salerno, artesão. “A Igreja Católica não aceita a Teologia da Libertação, a opção pelo pobre. Esta talvez seja a razão da perseguição a ele”.
“Creio que esse senhor, vai fazer uma nova campanha para a Presidência, mas não houve nada? Massacres, mortes? Quem responde por isso?”, questiona Celeste Ramos Arias, dona de casa e guia turística. “O secretário do Mercosul renunciou porque Dilma recebeu a colônia de brasiguaios, mas eles são os que realmente vieram trabalhar no Paraguai, que trabalham 24 horas na terra, cujos filhos estão nos tratores… A Venezuela e Argentina estão tranquilas porque têm petróleo. E nós seguimos dividindo nossas riquezas”.
LUGO FALA
Poucos dias depois do golpe, enquanto tentava montar um “governo paralelo” com os ministros destituídos, ainda sob o impacto dos acontecimentos e em meio a reuniões e telefonemas urgentes, Lugo recebeu essa reportagem por alguns minutos. “Qualquer cientista político pode analisar que não houve argumentos factíveis que justificassem a retiradado cargo”, disse indignado. “Há, ainda, o desrespeito flagrante ao princípio constitucional do direito de defesa. Não houve um tempo mínimo para responder às acusações. Se há um acidente de moto aqui, o responsável tem mais tempo para responder do que o presidente da República, que teve apenas duas horas para apresentar sua defesa no processo”.
Ele acredita que quando surgirem as provas do que realmente aconteceu no confronto que levou à morte de 11 camponeses e seis soldados da Polícia Nacional em Curuguaty, principal acusação do processo de impeachment, o fato “vai pegar muito mal na opinião pública nacional e internacional”. Em nova entrevista para os veículos da mídia alternativa brasileira em agosto, contudo, ele já dava sua volta ao poder antes das eleições de 2013 como um “milagre”.
Segundo Lugo nos contou, “a ruptura da ordem democrática no Paraguai é uma grande decepção”, mas de forma alguma é surpreendente. “Enfrentei um pacto de partidos tradicionais aqui do país. Eles não podiam aguentar um ‘sopro de renovação’. Jamais aceitaram que alguém que nunca atuou na militância política tradicional, de fora das oligarquias paraguaias, pudesse ocupar a cadeira de presidente da República”.
Ele justificou também a não convocação imediata do povo às ruas para resistir ao golpe (coisa que faria apenas na madrugada do domingo 24 de junho por meio do “microfone aberto” da TV Pública do Paraguai) como estratégia para evitar a morte de civis alvejados por atiradores posicionados nos telhados do Congresso. “Já vimos em 1999 o que poderia acontecer”, lembrou referindo-se ao assassinato de sete manifestantes na Praça Cívica durante o processo de renúncia do presidente Raúl Cubas Grau, acusado de tramar a morte de seu vice-presidente Luis Maria Argaña.
Por outro lado, na véspera da reunião do Mercosul que definiu a suspensão do Paraguai nas decisões do bloco devido à quebra da “cláusula
democrática” do Protocolo de Ushuaia que o criou, Lugo absteve-se de dar opiniões sobre como deveriam se portar os governantes de Brasil, Argentina e Uruguai. “Como cidadão paraguaio, não gostaria de ver prejudicados os pequenos produtores de banana, laranja ou pinha de meu país”, afirmou. “Mas sei que existe uma pressão grande sobre os presidentes da região. Assim, espero que eles decidam livremente, com base na suas consciências e nas informações reais que possuem, para determinar se devem ou não aplicar sanções democráticas ao nosso país”.
O Congresso que cassou Lugo era o único a impedir a entrada plena da Venezuela no bloco. Com a suspensão do Paraguai, o Mercosul finalmente ampliou-se além do Cone Sul para uma integração econômica e social que aponta para a Grande Pátria sonhada por Bolívar. Por conta da necessidade de sua presença no país naquele momento para organizar a resistência ao golpe, no entanto, Lugo acabou recusando os convites para participar da reunião, assim como não pode ir à Venezuela na semana seguinte para o encontro do Fórum de São Paulo, entidade que reúne partidos e movimentos de esquerda do continente.