Por Ernesto Germano Parés.
Essa é uma lembrança que me apaixona e me leva para uma viagem ao final da minha adolescência, a estreia do Show Opinião, uma resposta quase imediata ao golpe militar. Poucas pessoas conhecem a beleza e a profundidade daquele show e menos pessoas ainda conhecem sua origem.
A política dos militares começava ampliar a censura e a repressão a todos os que se opunham a eles. Em algumas cidades brasileiras começam a surgir grupos de resistência, grupos que debatiam política e a situação nacional. Um desses grupos, talvez o que teve mais destacado papel na organização dessa resistência cultural, foi o CPC (Centro Popular de Cultura) da União Nacional dos Estudantes, a UNE.
Augusto Boal, diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta brasileiro, havia ido para Minas Gerais depois da dissolução do Teatro de Arena de São Paulo (que depois volta a se reunir). Mas logo se muda para o Rio de Janeiro onde tem conhecimento de um grupo de resistência que se reunia no restaurante Zicartola, mantido por Cartola e sua mulher, Dona Zica. O local era o ponto de encontro de sambistas de destaque, dentre eles Nara Leão, Zé Ketti e João do Vale.
De certa forma, era um ponto de encontro dos que resistiam à ditadura e ao início da invasão da música importada.
Dos muitos encontros e conversas no grupo, foi brotando a ideia do Show Opinião. O roteiro praticamente já nascia do próprio encontro. Os cantores iriam apresentando as músicas enquanto contavam as suas histórias, as histórias de suas vidas. Tudo era uma grande “colagem” com músicas, notícias, livros conhecidos na época e depoimentos pessoais.
Em sua autobiografia, Augusto Boal fala da ideia básica: “Nosso show-verdade era diálogo: João (João do Vale) lia a carta que escreveu ao pai, ao fugir de casa, menino; lia para Nara (Nara Leão), lágrimas rolando, lágrimas que vestiam suas palavras. Nara respondia com ternura, olho no olho, carinhosa: “Carcará. Pega, mata e come”.
A estreia do show foi no teatro do Shopping Center Copacabana, sede do Teatro de Arena no Rio de Janeiro, e logo se tornou em uma referência, talvez a principal, do que veio a ser chamada depois de “música de protesto”.
Todo o Show durava menos de uma hora e as músicas iam desfiando uma história da realidade brasileira, do morro carioca ao sertão nordestino. A música que talvez seja o grande marco do show, cantada por Nara Leão, é um convite à resistência: “Podem me prender / Podem me bater Podem até deixar-me sem comer / Que eu não mudo de opinião. / Daqui do morro / Eu não saio, não / Se não tem água / Eu furo um poço Se não tem carne / Eu compro um osso E ponho na sopa / E deixa andar (repete) / Fale de mim quem quiser falar / Aqui eu não pago aluguel/ Se eu morrer amanhã, seu doutor / Estou pertinho do céu”. (Opinião, Xé Keti)
Ao final da música Carcará, de João do Vale, Nara Leão cita um trecho da dura vida do imigrante nordestino em busca de vida melhor no sul do país.
Semanas depois da estreia do show, Nara Leão precisou se afastar por problemas de saúde. Para substituí-la fez questão de apresentar uma cantora que havia conhecido na Bahia, durante um show: ninguém menos do que Maria Bethânia, que veio para o Rio de Janeiro para o show. Mas, uma curiosidade: a mãe de Bethânia, Dona Canô, só permitiu que a filha viesse se o irmão a acompanhasse. E o irmão era Caetano Veloso.
De certa maneira, podemos dizer que conhecemos Bethânia e Caetano por “obra” da Nara Leão.
No ano seguinte, o mesmo grupo apresentou a peça “Liberdade, Liberdade”, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, tendo no elenco Nara Leão, Paulo Autran, Tereza Raquel e Oduvaldo Vianna Filho.
Pessoalmente, pude assistir aos dois grandes shows. O “Opinião”, duas ou três vezes, incluindo uma já com a Bethânia. “Liberdade, Liberdade” creio que apenas uma vez. Mas tenho a gravação de ambos!
“Podem me prender / Podem me bater / Podem até deixar-me sem comer / Que eu não mudo de opinião”!
SIM, TIVEMOS ARTISTAS QUE RESISTIRAM E NÃO SE VENDERAM.
VIVA A RESISTÊNCIA ARTÍSTICA!